Por Anahí Guedes de Mello, Edu O. e Manoella Back.

Somos todas, todos e todes defiças LGBTI e nesta data, comemorativa do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, nós nos juntamos para prosear sobre o Teleton. Portanto, pega um banquinho aí e senta que lá vem história!

A designação Teleton vem da junção de “tele” de televisão, e “ton” de maratona. Ou seja, trata-se de uma “maratona televisiva”, geralmente com duração de mais de 20 horas e que tem como objetivo arrecadar somas vultosas de dinheiro – da ordem de dezenas de milhões de reais – para determinadas “causas sociais”, valendo-se do apelo à lástima, à dor, ao sofrimento e à superação de seus exemplos, não necessariamente todos na mesma ordem ou no mesmo pacote. Sua origem remonta aos Estados Unidos, quando o primeiro Teleton foi transmitido em 1949, angariando fundos para a Damon Runyon Cancer Research Foundation, uma organização sem fins lucrativos voltada a pesquisas sobre o câncer.

Posteriormente, o Teleton tornou-se um fenômeno cultural naquele país, especialmente sob a liderança do ator e comediante Jerry Lewis, bastante conhecido por seu programa beneficente anual em que foi anfitrião de 1966 a 2010, o Jerry Lewis MDA Telethon, visando a arrecadação de fundos para ‘ajudar’ no ‘tratamento’ de crianças com distrofia muscular atendidas pela Muscular Dystrofy Association[1] – ele mesmo foi pai de um menino com distrofia muscular. No auge de sua popularidade, o programa atingiu um público de 100 milhões de telespectadores maravilhados com o show midiático promovido pelo espetáculo da deficiência.

Com um formato de captação de recursos exportado para países de praticamente todo o globo terrestre, o Teleton se configurou em um fenômeno global, ora sob os aplausos de boa parte de seu público-alvo e com o apoio de uma plateia benévola para com os corpos defiças, ora sob o ceticismo e as críticas de pessoas com e sem deficiência posicionadas como anti-Teleton. Na América Latina, o primeiro Teleton aporta no Chile em dezembro de 1978, em plena ditadura de Augusto Pinochet. No Brasil começa a ser ‘celebrado’ nos dias 16 e 17 de maio de 1988, nos estúdios da emissora SBT de Silvio Santos, levantando milhões de reais para a financiar a pesquisa, o ‘tratamento’ e a ‘reabilitação’ de crianças com deficiência física atendidas nas unidades da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).

À esquerda vemos Mike Oliver, pai do que se convencionou chamar ‘modelo social [britânico] da deficiência’, segurando um cartaz onde está escrito “Teleton nos oprime”. A foto foi exibida na exposição ‘Disability Discrimination Act’, em Manchester, Reino Unido, e mostra parte dos manifestantes do protesto informal ‘Block Telethon’ em 1992, em Londres, com a participação de mais de mil pessoas com deficiência contra os estúdios ITV Telethon. O protesto culminou, em 1992, no fim da série Teleton no Reino Unido.

Devido à pandemia da Covid-19, a 23ª edição do Teleton deste ano, ocorrida em 7 de novembro último, se deu sob o horário reduzido de 10 horas e, mesmo sem uma meta estipulada, conseguiu arrecadar cerca de 26 milhões de reais em doações de pessoas físicas e jurídicas. Apresentando o capacitismo como tema de sua campanha pecuniária televisiva, fez isso em nome de todas as pessoas com deficiência, supostamente com a pretensão de aumentar a consciência pública sobre esse termo como sendo a discriminação contra pessoas com deficiência. Artistas globais, cantoras e cantores, ‘digital influencers’ defiças, dentre outras celebridades, atenderam ao convite da AACD-Teleton e compareceram, presencial ou virtualmente, ao estúdio da emissora SBT.

Teleton como projeto capacitista neoliberal

Podemos dizer que o Teleton é o templo do capacitismo e, como tal, é impossível a sua cura (só para utilizarmos termos próximos ao seu próprio discurso em relação à deficiência) para transformar-se em agente anticapacitista.

Consideramos que não existe a possibilidade dessa transformação, porque um programa como esse parte de uma estrutura internacional maior do que imaginamos e que só existe para ser capacitista. Se deixasse de ser capacitista, ele próprio deixaria de existir. Desse modo, vimos que não há mudança quando em um evento em que deveríamos ocupar todos os espaços, somos preteridas em função de interesses capitalistas.

Para promover a comoção pública e conseguir as doações financeiras destinadas à AACD, é preciso apelar para a imagem fragilizada, dependente e da superação da deficiência, a fim garantir o resultado do lucro pela caridade. Esse é o cerne da existência de projetos como esse. E essa é uma questão estrutural. A AACD precisa da nossa caridade pela falta de políticas públicas que garantam, de fato, nossos direitos em diversos âmbitos, como o direito à saúde, à assistência social, à moradia, à educação, à cultura, à mobilidade urbana, ao emprego e renda e à alimentação.

O projeto caritativo e filantrópico é um processo histórico para retirar do Estado brasileiro a responsabilidade de investir nessas áreas e passar a responsabilizar a sociedade civil com aquilo que deveria ser responsabilidade do Estado. Para isso, utiliza-se do discurso da compaixão e da culpa de quem conseguiu ter mais do que o coitadinho que precisa da sua ajuda. E, se este for acometido pela tragédia da deficiência, só te resta mesmo contribuir.

Neste ano, a produção Teleton investiu massivamente na narrativa anticapacitista, apregoando o protagonismo de pessoas com deficiência ao convidar e anunciar como destaques da programação aquelas que são influencers digitais e youtubers com número significativo de seguidores defendendo essa pauta em suas redes sociais. De fato, a presença de pessoas com deficiência na grade de programação não é uma novidade. Pelo contrário, sempre utilizaram imagens de crianças e jovens com deficiência em situações, muitas vezes, vexatórias e comoventes, a fim de sensibilizar o público e, assim, aumentar o número de doações. Porém, o que aconteceu neste ano foi a manipulação das imagens de ativistas defiças de redes sociais, a fim de reforçarem a mensagem de que “Agora eles estão querendo mudar o discurso”.

Parece-nos difícil não cair no canto das sereias em tempos de algoritmos, likes e visualizações. O chamado pareceu prometer o que não pôde cumprir, e algumas pessoas se deixaram levar acreditando que poderiam promover mudanças culturais, como se fosse possível um shopping center – templo do capitalismo – deixar de ser o que é porque em um determinado dia nos convidou para falarmos sobre como sermos anticapitalistas.

Inclusive o que foi proposto no convite feito a essas ativistas não se concretizou no todo. Algumas delas não puderam falar por causa do atraso nas apresentações e, pela falta de tempo, priorizou-se a participação de artistas famosos sem deficiência para animarem a festa capacitista. Desse modo, vimos que não há mudança quando em um evento em que deveríamos ocupar todos os espaços, somos preteridas em função de interesses capitalistas.

Se a intenção era, em termos de mídia, tornar-se anticapacitista, deveríamos começar pelo fim do Teleton e nos engajarmos em outros espaços para que as discussões protagonizadas pelas próprias pessoas com deficiência tenham verdadeira visibilidade. Assim, talvez utopicamente, poderíamos promover uma mobilização para mudanças políticas efetivas, não mais reforçando princípios caritativos que nos inferiorizam e mantém a lógica excludente do capacitismo.

Caridade, patriarcado e espetacularização da deficiência

Embora reconheçamos a importância do papel da AACD no atendimento e  cuidados médicos a pessoas com deficiência, oferecidos por seus diversos profissionais da saúde, como os médicos e médicas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, dentre outros, entendemos que, a partir de nossa consciência crítica e as leituras mínimas dos estudos sociais da deficiência que realizamos, a filantropia – esta palavra lindinha –,  não ocupa apenas a História do Serviço Social no nosso país, mas também os nossos corpos. 

A tal filantropia tem suas bases nas religiões católica e protestantes. Na década de 1930, período em que a classe trabalhadora reivindicava melhores condições de vida e justiça social, a Igreja Católica oferecia formações específicas para que as moçoilas de famílias abastadas pudessem conduzir ações sociais, obviamente sem esquecer dos dogmas da própria igreja.

Noções como pureza, sagrado, perigo, profano, pecado, colonialidade e culpa sempre estiveram e ainda estão aí quando se trata de pensar a deficiência sob os auspícios do “bom pobre” que merece a salvação final. Afinal, a fantasia solidarista da caridade diz que “Se não fizeres caridade, tu não tens lugar no céu!”.

Para nós é evidente que tal sentimento ainda permanece na sociedade brasileira e que os corpos com deficiência são os maiores reféns. Guy Debord, um dos grandes teóricos da comunicação, afirma que o espetáculo e a vida estão interligados, e isso se aplica a cenas de corpos defiças sendo levadas ao delírio coletivo das massas, mostrando que tudo o que se vive é ligado a uma representação.

O Teleton é um desses vetores que, além de tudo, transforma as pessoas com deficiência em uma forma contemporânea de freak show negativo, ao espetacularizar as nossas existências dissidentes ou singularidades corpóreas, aliando-as às questões mercadológicas e afagando os corações de quem doa dinheiro porque precisam do status, reconhecimento ou do indulto de seus pecados para chegar na seara do divino.

A caridade também costuma ser artimanha pudica do patriarcado. Como dito, na deficiência é explicada no modelo religioso, ou seja, a deficiência é vista como castigo divino. Por isso, repetimos, o patriarcado usa as pessoas com deficiência como ‘expiadoras de culpas alheias’.

Sendo o templo do capacitismo, o Teleton é o maior exemplo de expiação dos pecadores e pecadoras do patriarcado, especialmente quando este se vale das armadilhas do paternalismo.

O paternalismo é essa forma exacerbada de cuidado dispensado à pessoa com deficiência, a qual excede suas necessidades e sabota o seu direito à vida ordinária, além de confundir deficiência com (in)capacidade.

Não! Nossos corpos não devem servir a isso!

O Teleton é um completo desserviço porque sempre contou nossa história por nós. Porque nossos corpos não são vitrines. Porque músicas de tom emotivo não são os únicos panos de fundo das nossas histórias de vida. Porque nós, pessoas com deficiência, não estamos em um espaço de ‘meio-termo’ ou consideradas seres humanos.

Sociedades capacitistas gostam tanto de nos colocar nesses espaços de exotização, ora como “pobres coitadas”, ora como “exemplos de superação”, da mesma maneira como o machismo divide as mulheres em “santas” ou “putas.”

Gostamos de utilizar o exemplo das feministas, quando mostraram os enquadramentos sexistas dos corpos das mulheres em revistas masculinas e femininas voltadas ao culto ao corpo perfeito e do padrão de beleza para explicar o quão danoso são os corpos com deficiência no Teleton. Ou seja, nós, pessoas com deficiência, também não somos corpos para o seu entretenimento ou para que “agradeças a vida que tens”.

Não doem para o Teleton. De que vale doar para o Teleton se temos pessoas com deficiência sem trabalho ou sem conseguir dar um rumo à própria vida neste momento? Se não vale a sensação de se sentir com a “alma lavada” ao saber que nossos corpos não estão inseridos nem mesmo nos protocolos de enfrentamento à pandemia da Covid-19, como então repensar políticas públicas adequadas? Vale ainda doar para o Teleton se você elege figuras públicas que respaldam que minorias se curvem às maiorias? Caso contrário, talvez você deva seriamente considerar a hipocrisia do Teleton de pensar o capacitismo na perspectiva da “não superação” da deficiência. Ou seja, capacitismo é não superar a deficiência, a fim de promover a “independência” e a “a inclusão” da pessoa com deficiência, o que, aliás, está bem alinhado com a noção liberal de sujeito universal.

Autoras e autor Anahí, Manoella e Edu/Foto: arquivo pessoal

ParaTodosVerem: Da esquerda para a direita temos imagens da Anahí, Edu e Manoella. A primeira mostra o perfil de uma mulher surda, cis, branca, cabelos compridos castanhos lisos, usa óculos de grau vermelho. Usa uma blusa branca e está sorrindo com o rosto um pouco inclinado para a direita, mostrando a orelha esquerda com brinco verde. A segunda está em close e mostra um homem branco, careca, sobrancelhas grossas, com barba e bigode grisalhos, seus olhos fecham-se levemente por causa do sorriso. Ele usa camiseta preta e está encostado no canto de uma parede branca. E a terceira uma mulher de pele clara, cabelos curtos e escuros. Ela está com o rosto virado para o lado e sorri. Usa batom roxo e óculos de grau com armação vermelha. Fim da descrição.

***
Anahí Guedes de Mello é antropóloga, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ativista feminista surda e lésbica da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), foi fundadora e presidenta do Centro de Vida Independente de Florianópolis (CVI-Floripa) entre 2004 e 2008. Atualmente é pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED) da UFSC; pesquisadora associada da Anis – Instituto de Bioética, com sede em Brasília; e membro do Grupo de Estudos Antropologia e Deficiência (GEAD), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É também coordenadora do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e membro do GT Estudios críticos en discapacidad do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

Edu O. é dançarino, performer, escritor, professor da Escola de Dança da UFBA, diretor do Grupo X de Improvisação em Dança e colíder do Grupo de Pesquisa PORRA. Doutorando em Difusão do Conhecimento (DMMDC), mestre em Dança (PPGDANCA/UFBA) e graduado em Artes Plásticas (UFBA).

Manoella Back tem paralisia cerebral e foi “criança da AACD”. É formada em Jornalismo pelo Ibes/Sociesc, especialista em Cultura e Literatura e pós-graduada em Direitos Humanos e Relações Étnico-Sociais com extensão em Gestão e Sustentabilidade das Organizações Feministas e das Mulheres. Trabalha como redatora e como mediadora literária. Atualmente está envolvida com os movimentos feministas em torno de sua região, Blumenau, e nacionalmente milita no Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência. Acredita na arte como verdadeiras terapêuticas para lidar com as mazelas das vidas tão devastadas pela desigualdade social que assola o país.


[1] Associação de Distrofia Muscular.

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