Na Noite de Natal, a juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi foi morta com facadas desferidas pelo ex-marido, em frente às três filhas. Na tarde de Natal, Antonia Leuda de Sousa foi assassinada com facadas pelo marido. A três dias da virada do ano, Camila Miranda Bandeira foi morta a facadas na frente das quatro filhas. Há também os abusos sexuais: no Amapá, um militar abusou de uma menina de 12 anos na madrugada de Natal. Essas são apenas as violências que foram noticiadas – imaginem o sem-número de mulheres que sofreram as mais variadas violências neste Natal.

Não há como negar: a família brasileira está doente. A pergunta é se vamos encarar esse desastre que assola milhares de casas ou se vamos varrer para debaixo do tapete.

A palavra “família” deveria trazer um conforto para todas as pessoas. Deveria ser um lugar de proteção, de amor e respeito. A Família deveria ser composta por pessoas que se amam, se cuidam e convivem. Deveria ser desprovida de julgamento e de opressão. Mas, a família perfeita brasileira não é assim, infelizmente.

Desta forma, uma família que não se mantém unida pela compreensão, diálogo e respeito, se mantém “unida” por meio da linguagem e comportamento violentos. Sim, precisamos falar desta violência familiar que tem por objetivo “não destruir família”.  Um casamento que se desfaz, mesmo de maneira amigável, é lido como uma falha familiar: uma mulher que não soube cuidar da família e um homem que não soube mantê-la.

Ao passo que para milhares de mulheres recomeçar a vida após uma separação é muito difícil, para os homens é um atentado às suas virilidades. Isso porque homens criados nesse mundo machista e patriarcal não podem ser desafiados. Falhar não é uma possibilidade para os homens.

Me causa uma enorme revolta que justamente nesse período festivo, no qual tanto se fala de paz, união, amor e alegria, feminicídios ocorram com tanta frequência. Contudo, não me causa espanto. 

A pressão patriarcal pela família de bem, que reforça a tradição e que expressa o poder e a propriedade dos homens, faz com que a frustração do papel social de homem-provedor cause reações violentas. E justamente violentas, porque a nossa socialização familiar é na base do medo, da ordem e da violência. Assim, quando uma mulher dá um basta a qualquer situação de abuso, esse homem se vê impelido a manter o controle da situação, mesmo que para isso seja necessário matar a mulher.

Não é à toa que, na semana das festas, estouraram os casos brutais de feminicídio: o peso da frustração da “família perfeita e de bem” está nas costas das mulheres.

Se a família não está em volta da mesa, comendo a comida que a mulher fez e se a “noite perfeita de Natal” se torna “imperfeita”, a raiva que a sociedade tem de mulheres que dizem basta se expressa por meio desse tipo de crime. Em outras palavras, o Natal é o grande teste anual para ver se a família está bem, independentemente de esse “estar bem” ser mantido à base de sofrimento e opressão.

Você pode me questionar se os homens não sofrem violências. Sim, sofrem homicídios, assaltos… Mas você já reparou que essas violências acontecem na rua, cometidas por pessoas que, na maioria das vezes, são desconhecidas ou não são próximas às vítimas? Já as mulheres podem estar dormindo com seus algozes, que poderão despertar na Noite de Natal ou na virada do Ano Novo.

Assim, a maneira mais eficaz para destruir a família é não reconhecer o sem-número de problemas que uma cultura de violência doméstica causa em cada lar. Não falar disso, não denunciar, garante que percamos mais mulheres para a pior violência que se conhece: aquela que acontece dentro de casa. Sim, o feminicídio é a forma extrema das pequenas violências diárias a que mulheres são submetidas em nome da família “perfeita”: a violência psicológica, moral, patrimonial, sexual e física.

A pergunta que faço é: amamos as nossas famílias ou a ideia de “família perfeita” – família esta que, se for preciso, é defendida com violência e até com morte?

Está na hora de amarmos as pessoas que compõem a família. Amarmos as mulheres que sofrem violência, amarmos as crianças que sofrem abusos físicos, sexuais e sociais. Amar a família não basta, enquanto nossas mulheres continuarem a serem mortas na Noite de Natal.

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  • Simony dos Anjos

    Antropóloga e doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Integrante da Rede de Mulh...

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