O ano de 2024 tem sido marcado por ataques aos direitos reprodutivos das meninas, mulheres e pessoas que gestam no Brasil. A legislação brasileira sobre aborto está entre as mais restritivas do mundo e, atualmente, o procedimento não é considerado crime em três situações: risco de morte para a gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal (má-formação do cérebro). Em todos esses casos, a interrupção pode ser feita em qualquer momento da gestação. No entanto, neste ano, duas propostas que tramitam na Câmara dos Deputados foram alvo de protestos contrários por buscarem restringir e inviabilizar as possibilidades previstas em lei.
De um lado da balança, o Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas (cerca de 5 meses e meio) de gestação ao crime de homicídio simples no Código Penal brasileiro, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro (com possibilidade de prisão de seis a 20 anos). Do outro lado, a Proposta de Emenda Constitucional 164/2012, que pretende alterar o artigo 5º da Constituição para determinar que a inviolabilidade do direito à vida se aplica desde a concepção. Apesar do retrocesso que ambas as propostas representam aos direitos arduamente conquistados ao longo de mais de 80 anos, a balança sempre pesa mais para um lado do que para outro.
Enquanto o Projeto de Lei 1904/2024, também conhecido como PL da Gravidez Infantil ou PL do Estupro, quer restringir o tempo para realizar o aborto, a PEC 164/12 é ainda pior, porque impõe a proibição em todas as circunstâncias, prejudicando também outros direitos reprodutivos.
De acordo com Clara Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o PL 1904 afeta um público específico, especialmente meninas, o que motivou o lançamento da campanha ‘Criança Não é Mãe’. “O principal prejuízo proposto pelo PL é retroagir com o direito ao aborto legal em caso de violencia sexual para meninas, mulheres e pessoas com gestação acima de 22 semanas”, aponta.
A campanha “Criança Não é Mãe” foi lançada por organizações de mulheres e feministas, em junho deste ano, após a bancada evangélica e a extrema direita brasileira articularem uma manobra política para aprovação da proposta sem restrições. Naquele mês, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), realizou uma votação relâmpago computada como “simbólica” que aprovou a tramitação em regime de urgência. Isso significa que a proposta não precisaria passar pelas comissões democraticamente constituídas.
Após esse ato, uma série de protestos eclodiu por todo o país, movimentando as redes, com o envolvimento de personalidades públicas, celebridades e páginas de fãs-clubes. Sob pressão, Lira adiou a discussão do PL que foi apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) com coautoria de outros 32 parlamentares.
Embora a série de protestos tenha conseguido retardar o andamento, Wardi alerta que a proposta ainda representa um grande perigo, já que pode voltar a tramitar a qualquer momento. “Apesar de ter havido um arquivamento simbólico, em termos legislativos o PL 1904 pode entrar em pauta a qualquer momento”, diz.
“Já a PEC retroage com o direito ao aborto legal em sua integridade, ou seja, significa um retrocesso de direitos imenso e uma ameça democratica, ja que impende mulheres, meninas, pessoas que gestam vitimas de estupro de recorreram ao aborto legal em qualquer periodo gestacional, em situação de risco de vida e também em caso de feto anencéfalo”, pontua.
PEC do Fim da Vida
O texto, proposto em 2012 pelos então deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e João Campos (PSDB-GO), foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em 27 de novembro, por 35 votos a 15. Agora, a matéria seguirá para análise em comissão especial que ainda será formada, que inclusive terá autonomia para alterar o texto original.
Somente após essa etapa, poderá ser levada ao plenário da Câmara, aso o presidente da Câmara decida incluí-la na pauta. Para ser aprovada no Plenário e ser levada ao Senado Federal, precisará dos votos favoráveis de pelo menos 308 parlamentares, em dois turnos. Se chegar ao Senado, precisará do aval de pelo menos 49 dos 81 senadores para ser promulgada. Caso haja alterações, a matéria voltará para a Câmara, para nova votação.
“A admissibilidade foi aceita pela CCJ, ou seja, foi decidido ali pelos parlamentares e pelas parlamentares da comissão de que a PEC é ‘constitucional’, que tem um respaldo jurídico e, agora, o próximo passo é a criação de uma comissão especial para debatê-la antes que seja levada ao Plenário. Essa comissão especial não é só restrita à CCJ, ela contempla quaisquer outros deputados e deputadas da Câmara. É formada pelo presidente da Casa e se orienta pela proporcionalidade dos partidos”, completa Wardi.
No entanto, não há previsão para que esta comissão seja criada. “O que a gente sabe é que neste ano é muito difícil de acontecer. A formação dessa comissão especial pode ser também que nunca seja formada”, ressalta. No último caso, a PEC ficaria estagnada, já que os debates sobre ela não avançariam no legislativo.
Reprodução assistida
A PEC, se aprovada, pode trazer implicações às técnicas de reprodução assistida (RA), como inseminação artificial e a fertilização in vitro, que envolve a combinação de óvulos e espermatozoides em laboratório para criar embriões. Os futuros reveses no campo da fertilização preocupam o médico Alvaro Pigatto Ceschin, presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
“A PEC fala que concepção seria o início de uma vida e aí vem o questionamento, quando inicia a vida? Então, talvez aí seja a questão mais importante que precisamos discutir. A questão da vida porque, se você coloca um espermatozoide morto em um óvulo vivo, não gera embrião. A mesma coisa que o óvulo também tem que ter vida para viabilizar com que o espermatozoide forme o embrião”, argumenta.
O especialista explica que os procedimentos de reprodução humana assistida são organizados e legislados por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), ou seja, não existe uma lei específica que defina regras e estipule limites. “Essa é uma demanda antiga que existe, mas não existe uma legislação federal e a gente entende que essa legislação do Conselho Federal de Medicina é que nos norteia em todos os procedimentos de reprodução humana do Brasil”, pontua.
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O fato é que a reprodução assistida vem ajudando a realizar o sonho de um número cada vez maior de pessoas. Dados divulgados em 2019 pela Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida (Redlara) apontam que o Brasil é o líder no ranking de fertilização in vitro (FIV), inseminação artificial e transferência de embriões, além de concentrar 40% de todos os centros de reprodução assistida da América Latina. Conforme a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram realizados 56,6 mil procedimentos de produção laboratorial de células germinativas e embriões humanos ao longo de 2023, um número 36% maior do que em 2020.
“O fato é que 15% da população tem dificuldade para engravidar. Muitos casais vão engravidar de maneiras mais simples, mas muitos vão viabilizar a gestação através da fertilização in vitro. Então, é bastante expressivo o número de pessoas que vão demandar dos métodos […] Tirando ainda a questão da produção independente ou homoafetiva, porque esses 15% da população seria só de casais que tentam engravidar naturalmente”, diz o médico.
Ceschin argumenta que é importante entender que em tratamentos de fertilização ocorre o chamado funil da ‘fertilidade’ ou da ‘reprodução’, uma metáfora para facilitar a compreensão das etapas do tratamento. Ao longo desse processo, o número de embriões potencialmente viáveis é reduzido até chegar ao embrião que será implantado no útero. As perdas no caminho são extremamente normais, naturais e esperadas. “Nem todo óvulo fertiliza, nem todo embrião se desenvolve, existe como se fosse um funil reprodutivo. Cerca de 80 a 90% dos óvulos fertiliza-se, 50 a 60% dos embriões evoluem”, informa.
No dia 29 de novembro, a SBRA divulgou uma nota em que manifesta preocupação com os potenciais impactos da PEC. “As técnicas envolvem processos cuidadosos que, em alguns casos, incluem a necessidade de unir os óvulos com espermatozoides em laboratório a fim de formar embriões e transferi-los para a cavidade uterina, viabilizando a gestação”, diz um trecho da nota.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Redirection International, o setor da medicina reprodutiva do Brasil deve crescer em média 23% ao ano até 2026. Em nota, a SBRA reafirmou o compromisso em defender uma abordagem que preserve o equilíbrio entre os avanços científicos, o planejamento familiar e os direitos reprodutivos. “Ressaltamos que qualquer medida que limite ou inviabilize a formação de embriões pode impactar negativamente os resultados e a eficiência dos tratamentos de reprodução assistida. Tal restrição não apenas comprometeria avanços científicos, mas também poderia inviabilizar o acesso de muitas famílias a esses tratamentos”, pontua a SBRA.
Pesquisas com células-tronco embrionárias
Como bem destacou a deputada Sâmia Bomfim (Psol), outro campo atingido será o do desenvolvimento científico, com a inviabilização das pesquisas realizadas a partir das células-tronco. Iniciados no país em 2001, esses estudos são responsáveis por inúmeros avanços no tratamento de doenças como câncer, mal de Parkinson, mal de Alzheimer, patologias degenerativas e cardíacas.
“A gente está falando do impedimento de pesquisas embrionárias, que salvam vidas no Brasil. Estamos falando de exames pré-natal em embriões, que salvam vida de muitas crianças ao longo do desenvolvimento. Portanto, essa PEC é uma atrocidade, é um crime, é ódio contra as mulheres e é a demagogia daqueles que dizem defender a vida”, afirmou Sâmia durante sessão na Câmara.
Em entrevista ao Portal Catarinas, Lygia da Veiga Pereira, professora associada e chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), da Universidade de São Paulo, lembra que, nos anos 2000, só era possível produzir células-tronco pluripotentes — aquelas que podem se transformar em qualquer tipo de célula do corpo humano, com exceção da placenta e dos anexos embrionários — a partir do uso de células-tronco obtidas em embriões humanos. Elas são encontradas no interior do embrião, no estágio de blastocisto, que ocorre entre 4 e 5 dias após a fecundação.
“Na época, a decisão entre poder usar ou não aqueles embriões para pesquisa era fundamental, se não pudesse a gente não ia poder fazer esse tipo de pesquisa aqui no Brasil. Em 2007, 2008 foi desenvolvido uma metodologia que permite a gente pegar uma célula de sangue ou pele e programá-la para virar essa célula-tronco pluripotente coringa”, explica.
Com isso, nos últimos anos, de acordo com a pesquisadora, o uso de embriões humanos em pesquisa diminuiu no país. “De qualquer jeito, por exemplo, nos Estados Unidos e em outros países, as pessoas seguem usando alguns desses embriões da fertilização in vitro para pesquisas que visam entender como o ser humano é formado, como é que aquela primeira célula que a gente já foi se transforma numa pessoa. Então, para que a gente possa estudar o início do desenvolvimento, ainda é preciso usar alguns embriões humanos”, exemplifica.
Impacto maior em crianças negras, pobres e indígenas
A advogada Beatriz Galli, integrante do Cladem e assessora do Ipas, reforça que a PEC é uma forma de violência baseada em gênero, que levará a um risco maior de sequelas e mortes evitáveis. “Estas leis restritivas afetam todas as mulheres, mas têm um efeito maior em crianças e adolescentes negras e indígenas que vivem em áreas mais isoladas do país, impondo gravidezes forçadas para vítimas de violência sexual e risco de vida, em uma situação equivalente à tortura”, pontua.
O Brasil registrou um crime de estupro a cada seis minutos em 2023. Com um total de 83.988 casos de estupros e estupros de vulneráveis registrados e um aumento de 6,5% em relação a 2022. Os dados são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2024, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A publicação também apontou o perfil das vítimas: são meninas (88,2%), negras (52,2%), de no máximo 13 anos (61,6%).
“A proposta cerceia não só o direito das meninas negras maiores violadas, mas também de outras mulheres negras, de mulheres pobres, periféricas. As que correm maiores riscos de vida, que sofrem com cardiopatia ou com outras doenças que são agravadas na gestação e não poderão ter a possibilidade de escolher seguir ou não com uma gestação que é possível que leve à morte”, reforça Mariane Marçal, Assistente de coordenação de projetos e incidência política da Criola.
Esse conteúdo é apoiado pelo Fundo de Ação Urgente da América Latina e Caribe.