O termo heterossexualidade compulsória gerou debates nas redes sociais a partir de uma das tramas da terceira temporada da série Heartstopper, da Netflix. A personagem Imogen Heaney (Rhea Norwood) desabafa como sente que nunca gostou de garotos, mas que precisava da atenção deles e de ter um namorado, porque era o esperado.

“Eu acho que eu me sentia pressionada para ter um namorado, porque eu era uma garota descolada e garotas descoladas namoram, né? Eu acho que gostava da atenção dos garotos. Eu me sentia importante, como se eu tivesse ganhado na vida. Eu acho que nunca gostei de um garoto, na verdade”, disse ao personagem Nick Nelson (Kit Connor) no último episódio da temporada.

Ao longo dos episódios da terceira temporada, Imogen se relacionou com Sahar Zahid (Leila Khan), garota bissexual e sua melhor amiga de infância. No final do desabafo com Nick, Imogen diz que não sabe quem é, indicando que sua trama irá continuar na próxima temporada. Nas redes sociais, a cena e a personagem geraram comentários sobre a heterossexualidade compulsória.

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Comentários na rede social X (antigo Twitter). Hetcomp e comphet são siglas usadas para se referir a heterossexualidade compulsória | Crédito: reprodução X.

A partir dos debates, conversamos com Jussara Doretto Benetti do Prado, psicóloga clínica desde 2018. Ela é qualificada em Saúde Transdisciplinar LGBTI+ e Terapia Afirmativa, especializanda no Atendimento Clínico das Diversidades Sexuais e de Gênero e, há 3 anos, gestora da Autenticah – Saúde Transdisciplinar LGBTQIAPN+. Jussara venceu o Prêmio João W. Nery, do Conselho Federal de Psicologia, com o projeto “Ser Homem, Ser Trans, Transcender: Experiência Com Um Grupo Terapêutico Online Para Homens Trans”.

Acompanhe a conversa:

O que é heterossexualidade compulsória?

O conceito de heterossexualidade compulsória foi introduzido pela escritora e teórica feminista Adrienne Rich, em 1980, na publicação Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence (Heterossexualidade compulsória e existência lésbica).

Esse termo se refere à ideia imposta pela sociedade, de que a norma e a expectativa padrão para todas as pessoas, principalmente mulheres, seja a heterossexualidade – e aqui podemos incluir também a cisgeneridade [quando a pessoa se identifica com o gênero atribuído no nascimento, é o termo referenciado ao usar “cis” ao longa da conversa] como norma.

Esse processo acaba sendo sustentado por normas culturais, sociais e institucionais que reforçam a ideia de que as relações (cis)heterossexuais são as únicas válidas ou desejáveis, invisibilizando, marginalizando e violentando outras formas de sexualidade.

Quais fatores sociais, culturais e políticos contribuem para a existência da heterossexualidade compulsória?

A heterossexualidade compulsória é sustentada por diversos fatores sociais, culturais e políticos que reforçam a ideia de que a heterossexualidade é a norma padrão, e até a única forma legítima de orientação sexual. Tais fatores operam em diversos níveis da nossa sociedade, moldando comportamentos, expectativas e leis.

O patriarcado e o controle de gênero acabam sendo um desses fatores, sustentando um sistema social que privilegia homens (cis), subordinando as mulheres e todas as outras minorias de gênero. Dentro desse “Cistema”, a heterossexualidade nos é apresentada como uma ferramenta para a manutenção da hierarquia de gênero, onde as relações cis heterossexuais são vistas como a forma “natural” e “correta” de relacionamento, mantendo os papéis de gênero tradicionais: homem dominante e racional, mulher submissa e emocional, por exemplo.

Historicamente, o controle masculino sobre as mulheres foi reforçado pelo capitalismo e cristianismo, onde as leis e normas se aplicavam com o intuito de preservar os bens de um homem, chefe de família, dentro da sua própria linhagem – por isso as mulheres não herdavam os bens, precisava-se de um filho homem para repassar as posses e para esse filho ser legítimo a mulher deveria casar virgem.

Qual a influência das religiões?

A Religião é outro fator extremamente importante na manutenção de tais normativas. Religiões Abrâmicas, como Cristianismo, Islamismo, Judaísmo, e em várias vertentes de tais religiões, a heterossexualidade é apresentada como um mandamento divino, e outras orientações são muitas vezes vistas como pecado ou desvio moral. Infelizmente, tais crenças influenciam em legislações, políticas e atitudes sociais em diversas partes do mundo, principalmente em países onde o Estado é laico!

Na Bíblia católica, por exemplo, encontramos trechos que citam sobre o adultério, mas tal adultério só é aplicado para as mulheres, seguindo essa lógica patriarcal capitalista. E até em trechos que comentam sobre relações entre homens, já podemos ver a invisibilização das relações entre mulheres: “como não é uma relação válida, não existe, nem precisamos comentar”.

Cena da série Heartstopper | Crédito: reprodução Netflix.

Qual o impacto desses fatores?

Toda essa estrutura influencia na educação e socialização ainda na primeira infância, quando há a socialização de gênero, onde muitas crianças são ensinadas a internalizar tais normas através da educação formal e informal, como: que tipo de brinquedo é ou não apropriado para menino e/ou menina, cor das roupas, forma de se comportar, falar e se expressar.

Livros, filmes e brincadeiras promovem a ideia de que o destino “natural” de meninos e meninas é crescer, namorar, casar, formar famílias cis heterossexuais, expressar ou não suas emoções, sentar de pernas cruzadas ou não, etc.

A Heteronormatividade como regra, também ajuda a sustentar a heterossexualidade compulsória, organizando a vida social em torno da suposição de que as pessoas devem ser heterossexuais e seguir as normas tradicionais de gênero.

E tais normas são propagadas não só em contextos religiosos ou familiares, mas também através da mídia e representações. A maioria das representações na mídia, como filmes, livros, publicidade e séries de TV giram em torno de romances heterossexuais. O que leva no fortalecimento da invisibilidade de outras formas de sexualidade. Por isso que sentimos nosso coração quentinho, quando vemos personagens fora de tais normativas, como representatividade desse leque infinito de possibilidades que é a sexualidade humana.

Leis e políticas públicas têm historicamente privilegiado relações cis heterossexuais e marginalizado outras formas de ser, viver, expressar e se relacionar. Em muitos países, relações entre pessoas do mesmo gênero/sexo foram ou ainda são criminalizadas. Até nos países onde foram descriminalizadas, as leis geralmente não oferecem a mesma proteção ou reconhecimento para casais LGBTQIAPN+, reforçando a heterossexualidade como norma legal e social.

Políticas de Saúde e Educação também fazem parte desta equação, onde o foco é exclusivamente voltado para a saúde reprodutiva ou em educação sexual voltada para relações cis heterossexuais. Tal estrutura forma profissionais despreparados para lidar com pessoas dissidentes de tais normativas, como pessoas LGBTQIAPN+, marginalizando as necessidades de saúde deste público, que acaba por evitar buscar ajuda profissional na área da saúde, por medo do tipo de profissional que poderá encontrar.

Não só o patriarcado, a religião, as leis, a pressão social, a educação, o gênero, mas também a heteronormatividade, a heterossexualidade compulsória e até a monogamia, trata-se de construções sociais, que, infelizmente, afetam tanto a formação da identidade de gênero e orientação sexual, a expressão da sexualidade; quanto a saúde integral (física, mental, etc.) das pessoas, principalmente em pessoas LGBTQIAPN+.

A pressão social para se conformar às normas cis heterossexuais nos forçam a seguir um roteiro da vida – namorar pessoa do gênero/sexo oposto, se casar, ter filhos – e muitas vezes sem ao menos cogitar ou considerar outras possibilidades.

Se uma pessoa está lendo este conteúdo e acredita que está passando por heterossexualidade compulsória, qual seu conselho para ela?

Se você que está lendo este conteúdo acredita estar vivenciando uma heterossexualidade compulsória, seja você homossexual, bissexual ou pansexual, saiba que é importante reconhecer que essa experiência pode ser emocionalmente desafiadora. Mas, também, representa uma oportunidade de autodescoberta e crescimento.

Entender que seus sentimentos de dúvida, desconforto ou questionamento sobre seu gênero e/ou orientação sexual são válidos, é muito importante. Então, se permita explorar suas emoções, não se apresse em rotular sua experiência, gênero ou orientação sexual. Se dê um tempo e um desconto, para poder refletir sobre suas experiências e sentimentos sem julgamentos. 

Saiba que você não é a única pessoa no mundo a passar por isso. É completamente natural se sentir em meio a uma confusão e incertezas, afinal, somos criades para seguir um roteiro específico e completamente inadequado e desencaixado no filme da nossa vida.

Se permita questionar as normas impostas pela sociedade, busque entender através de perguntas como “o que eu realmente quero?” ou “este caminho que estou seguindo, é o que eu quero e o que faz sentido para mim, ou é o que a sociedade espera e cobra da minha pessoa?”.

Se permita também explorar sua identidade e sexualidade de forma autêntica. Não sinta que precisa tomar decisões definitivas, até porque a sexualidade humana é fluida e ela pode se transformar ao longo do tempo, vivências e experiências. Entenda também, que nem todas as respostas vão ser encontradas de maneira rápida e fácil, tudo isso é um processo, e processos levam tempo e investimento de energia e afeto.

E por último, mas não menos importante, se estiver difícil ou confuso para fazer todo esse percurso solo, procure a ajuda de profissionais capacitados para lhe atender de forma respeitosa, ética e afirmativa. Existem diversos profissionais da Psicologia e Psiquiatria habilitados, versados e capacitados em questões de gênero e sexualidade e que não patologizam a identidade LGBTQIAPN+.

Heartstopper

Inspirada nos quadrinhos e livros da autora Alice Oseman, que também é produtora da série, a trama é protagonizada por Charlie Spring (Joe Locke), um aluno muito dedicado e que tem sofrido bullying na escola desde que se declarou gay, o que resultou em uma personalidade insegura; e Nick Nelson, jogador de rugby popular na escola. Quando os dois começam a sentar próximos todas as manhãs, eles desenvolvem uma amizade intensa que evolui para um romance.

A série também acompanha os amigos dos protagonistas, como Elle Argent (Yasmin Finney), adolescente trans que sonha em ser artista; Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell), casal lésbico que vive os próprios desafios; e Isaac Henderson (Tobie Donovan), adolescente assexual fascinado pela literatura. A série trata de temas como sexualidade, saúde mental e bullying.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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