Toda vez que Flávia Maria de Lima, atleta dos 800 metros rasos, viaja para competir, seu ex-marido usa isso como argumento para alegar abandono parental. 

Pouco antes das Olimpíadas de Paris, a velocista paranaense expôs que vive uma disputa judicial pela guarda da filha de 6 anos e revelou que o pai da criança tenta boicotar sua carreira esportiva. 

O caso chamou a atenção para o uso do conceito relacionado ao descumprimento dos deveres parentais, e o Catarinas conversou com duas especialistas para entender como o abandono parental é abordado juridicamente, especialmente em casos de guarda compartilhada.

Vídeo postado por Flávia Maria de Lima em rede social | Crédito: reprodução Instagram.

O que caracteriza o abandono parental

Damaris Drulla, advogada de família especializada na defesa das mulheres, explica que o abandono parental ocorre quando os pais negligenciam os cuidados básicos e emocionais de suas filhas e filhos, resultando em danos à saúde física e emocional da criança.

“Podemos definir o abandono parental como o descumprimento dos deveres básicos que os pais devem exercer, conforme o ordenamento jurídico,” afirma Drulla.

Ela esclarece que a falta de assistência, especialmente no aspecto emocional, pode caracterizar abandono afetivo, passível de responsabilização judicial.

Essas ações podem ser movidas pelo responsável legal da criança ou por maiores de 18 anos que se sentiram abandonados na infância. 

Vanessa Paiva, advogada especialista em Direito de Família e Sucessões, acrescenta que, embora não haja uma lei específica sobre esse tipo de abandono, o artigo 227 da Constituição Federal atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de garantir às crianças e adolescentes o direito à convivência familiar, ao bem-estar e à proteção contra discriminação, negligência, exploração e violência.

“Também temos um reforço no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Civil. Temos jurisprudências amplas e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, já reconheceu a possibilidade de indenização por abandono afetivo em algumas decisões”, acrescenta.

Processos analisam extensão do sofrimento da criança 

Os processos de abandono parental são complexos e demandam uma análise detalhada por parte dos juízes, que consideram a extensão do sofrimento da criança, a duração do abandono, seus impactos sociais e as consequências psicológicas. Segundo Drulla, essas avaliações são baseadas em estudos psicossociais e laudos técnicos de psicólogos da vara de família.

Também é comum a realização de audiências de instrução, onde testemunhas são ouvidas, são colhidos depoimentos das partes envolvidas e, em alguns casos, até da própria criança.

Vanessa Paiva acrescenta que o abandono afetivo não precisa ser declarado por um juiz. “Ele é nítido, visível e de conhecimento comum. Não é necessária uma declaração judicial para reconhecê-lo”. No entanto, quando o abandono é parcial e o pai busca a guarda, é necessária a coleta de provas, como testemunhos e evidências.

Para comprovar o abandono, é preciso demonstrar a ausência injustificada dos deveres familiares negligenciados, o que inclui distanciamento na convivência e comprometimento do desenvolvimento psíquico, afetivo e moral da criança, além da dor e sofrimento sentidos por ela. 

Reflexo de uma Sociedade Machista

Damaris Drulla observa que as acusações de abandono parental feitas por pais são extremamente raras no Brasil, onde onze milhões de mulheres criam os filhos sozinhas. “Geralmente, quem abandona afetivamente os filhos são os pais, que além de não cumprirem deveres básicos como o pagamento de pensão alimentícia, somem da vida dos filhos, causando traumas emocionais”. 

Embora esses processos possam envolver tanto homens quanto mulheres, a maioria das ações judiciais coloca os homens como réus, refletindo uma realidade onde o abandono emocional e afetivo geralmente recai sobre as mães. Como muitos desses casos correm em segredo de justiça, é difícil ter acesso a precedentes. No entanto, Vanessa Paiva destaca que há um preconceito claro contra mulheres que equilibram maternidade e carreira.

“Ele está usando isso contra ela como uma forma de perpetuar violência por meio de processos, o que chamamos de violência processual. É uma tentativa de controlar a mulher, atacando sua capacidade de ser mãe e profissional. Muitas mulheres acabam abrindo mão de promoções ou de mais tempo no trabalho por medo desse tipo de retaliação,” explica Paiva. 

Ela reforça que a lei deve focar no bem-estar da criança e punir aqueles que usam os filhos como ferramenta de controle.

Casos como o de Flávia Lima ressaltam como conciliar a rotina de atleta de alto rendimento e a vida pessoal impõe desafios ainda maiores para as mulheres. 

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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