Onze ocupações denunciam violências e reivindicam manutenção do Despejo Zero em audiência pública

A situação das ocupações e das políticas habitacionais de Santa Catarina foi tema de uma audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (ALESC) nesta terça-feira (31). Representantes de onze ocupações, em sua maioria mulheres, lotaram o auditório Deputada Antonieta de Barros para denunciar a crise habitacional no estado e exigir o direito constitucional à moradia digna. Uma comunidade de Palhoça relatou receber ataques de milicianos, uma das acusações mais graves. 

De acordo com dados apresentados pela Campanha Despejo Zero, em 2019, o déficit habitacional em SC chegava a aproximadamente 261 mil moradias, conforme levantamento feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras (ABRAINC). No mesmo período, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social estimava faltar 203 mil domicílios, considerando as famílias que recebem até cinco salários Esses dados apontam que temos mais de 600 mil pessoas vivendo em condições instáveis e/ou precárias.  

“Se pensarmos em uma média de três pessoas para essas mais de duzentas mil famílias, a falta de moradia vai ser a maior cidade de Santa Catarina. É uma cidade que não vemos. A Cidade dos Sem Teto é o maior município em população do Estado hoje. É essa a dimensão do problema”, explicou Jefferson Maier, integrante das Brigadas Populares e da Campanha Despejo Zero.

Essa cidade invisível seria maior que Joinville, o município mais populoso de SC. 

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Jefferson Maier apresenta dados de déficit habitacional no estado | Foto: Vicente Schmitt/Agência AL

Três mil famílias protegidas pelo Despejo Zero

Estimativas atuais, realizadas pelo OcupaSC e pela Campanha, indicam que mais de três mil famílias que vivem em território catarinense estão sendo protegidas pela prorrogação da liminar (ADPF828) do Supremo Tribunal Federal (STF), que proíbe despejos de ocupações no país até fim de junho. Somente na Grande Florianópolis, são cerca de mil famílias, vivendo em mais de dez comunidades que se autodeterminam Ocupações Urbanas. 

Estiveram presentes na audiência diversos(as) representantes de movimentos sociais e ocupações urbanas, do legislativo de Florianópolis e do Estado, Defensoria Pública de SC e da União, Federação Catarinense dos Municípios (Fecam), Tribunal de Justiça, Secretaria de Estado da InfraEstrutura e Mobilidade, Superintendência do Patrimônio da União em SC e Conselho Estadual de Direitos Humanos. 

No entanto, foi notável e significativa a ausência de representantes dos poderes executivos dos principais municípios convocados: Florianópolis, que está sob o comando de Topázio Silveira Neto (Republicanos); São José, administrada por Orvino de Ávilla (PSD); Palhoça, sob a gestão de Eduardo Freccia (PSD).

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Moradas/es de onze ocupações lotam auditório da ALESC durante audiência | Foto: Vicente Schmitt/Agência AL

Em sua intervenção, a defensora pública Ana Paula Fisher, coordenadora do Núcleo de Habitação e Urbanismo e Direito Agrário (NUHAB), afirmou que em pouco mais de um ano impediu que mais de quinhentas famílias fossem removidas na região metropolitana de Florianópolis, garantindo assim não somente o direito à moradia, mas também à vida e à saúde dessas pessoas em um período pandêmico. Além disso, compartilhou sua angústia diante da ausência de políticas públicas habitacionais sérias e efetivas no Estado. 

“Quando tratamos de ocupações precisamos resolver definitivamente esse problema, e essa solução só vem através de alternativas habitacionais definitivas e permanentes. Enquanto forem tratadas de forma equivocada, através da remoção de pessoas, só reitera-se o ciclo de violência contra elas. As pessoas vão precisar ocupar novos lugares, continuarão sem casa e em situação de precariedade e pobreza”, concluiu a defensora, denunciando a violência autorizada pelo Estado em fazer remoções sem assentamento e acolhimento das famílias.

Ocupação contra a violência doméstica

Durante a audiência, conduzida pelo deputado estadual Fabiano da Luz (PT), líder da bancada do partido na Alesc e proponente do encontro, manifestaram-se representantes de movimentos sociais e ocupantes de diferentes comunidades da região, compartilhando suas histórias e rotinas, a precariedade e instabilidade em que vivem, as violências sofridas por parte do executivo, da Polícia e até dos vizinhos.   

Marta de Lara, integrante do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e uma das coordenadoras da ocupação Anita Garibaldi em Capoeiras, Florianópolis, fez um relato emocionante sobre como a ocupação salvou a sua vida e a dos seus três filhos. 

“Eu só aprendi sobre os meus direitos, entrando na ocupação, no MLB. Se eu não tivesse entrado, sabe onde eu estaria? Embaixo da terra, porque meu marido teria me matado, eu sofria muito abuso psicológico e apanhava. Quem me salvou? Foi a ocupação! E eu tenho certeza que não sou a única, não. Muitas pessoas têm a mesma história que eu, e eu tenho a mesma história que muitos”, declarou Marta.  

Conheça a ocupação Anita Garibaldi e algumas das suas ocupantes, incluindo Marta. 

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Filipe Bezerra, da ocupação Carlos Marighella, denuncia ataques de milícia | Foto: Vicente Schmitt/Agência AL.

Ocupantes denunciam descaso das prefeituras

O morador da ocupação Carlos Marighella, Filipe Bezerra, contou que a Prefeitura de Palhoça, através das Secretarias Municipais de Habitação e Regularização Fundiária e de Assistência Social, recusou-se a conversar com representantes da ocupação para discutir a questão da habitação. 

“A luta por moradia é uma luta por direito e por dignidade, quem fala é a Constituição brasileira deste país que não é respeitada por nenhum político”, declara Filipe. 

No dia 5 de junho, completa um mês do nascimento da ocupação construída por cem famílias e organizada pela Unidade Classista SC em um conjunto habitacional abandonado há mais de uma década. Todos os dias, por ali passam em média quinze famílias precisando de moradia. “Onde está o Estado para garantir casa e alimento?”, questiona Filipe, que está sendo ameaçado devido à sua atuação na causa.  

“A nossa ocupação vem sendo atacada todos os dias por moradores milicianos. A gente sabe quais são os policiais que estão ali dentro, sabemos que a Prefeitura é conivente. Ali temos crianças, pessoas com deficiência, grávidas, mas eles continuam nos atacando com bombas e armas letais”, denuncia.

Esses ataques estão sendo divulgados através das redes sociais da ocupação. 

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Ocupação Contestado está há dez anos sem direitos básicos garantidos, segundo Patricia Oliveira | Foto: Vicente Schmitt/Agência AL.

Patricia de Oliveira, moradora da ocupação Contestado na cidade de São José, criticou o atual prefeito do município, que desde o início do seu mandato, em 2021, não recebeu nenhuma ocupação para discutir moradia. Também denunciou a ausência de outras políticas públicas para pessoas que vivem na ocupação apoiada pelas Brigadas Populares.  

“São dez anos de ocupação sem saneamento básico; sem educação digna para as crianças, muitas de 10 e 11 anos não estão encontrando vagas no colégio; sem saúde, porque temos atendimentos negados no posto de saúde. Não é porque somos moradores de ocupação que não temos os mesmos direitos que as demais pessoas”, constata.

Ameaça de despejo

Enquanto a discussão estava em andamento, o Movimento de Mulheres Olga Benário recebeu a notícia de que a reintegração de posse da Casa Antonieta de Barros, ocupada há dois meses em Florianópolis, havia sido aprovada. O espaço, voltado ao atendimento, acolhimento e formação de mulheres vítimas de violência, ocupa uma construção abandonada há mais de dez anos e com dívidas de IPTU. 

“Já fizemos mais de dez ocupações em todo o Brasil para salvar a vida das mulheres, porque elas morrem hoje, na maioria das vezes, por feminicídio, e pela fome e falta de moradia. É por essas várias violências que acometem as suas vidas que ocupamos, porque o Estado de Santa Catarina, assim como vários outros do Brasil, não consegue lidar com o problema da violência contra a mulher”, alegou a representante do Movimento Olga Benário e da Casa Antonieta de Barros, Ingrid Marrese.

Para Ingrid, o pedido de reintegração vai contra todas as mulheres em situação de violência, contra os direitos humanos e a constituição. Em sua intervenção, a militante questionou o atraso na construção da Casa da Mulher Brasileira: “Cadê a Casa, que está há dez anos no papel e ainda não saiu? Eu quero saber o motivo de não estamos encarando a violência contra a mulher de forma direta”. 

Conheça a Casa de Referência Antonieta de Barros em reportagem do Catarinas. 

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As mulheres são a maior parte do público presente na audiência | Foto: Vicente Schmitt/Agência AL.

Carta aberta pela garantia da moradia digna

No encerramento da audiência, as ocupações organizadas apresentaram a Carta Aberta dos Movimentos de Moradia e Campanha Despejo Zero com sete propostas para amenizar os problemas relatados, lembrando do esgotamento do prazo da Lei do Despejo Zero e da falta de garantia do direito à moradia para as famílias que vivem em situação de vulnerabilidade social. Também reforçaram a importância de discutir o tema com representantes do executivo que não estiveram presentes.  

“Recorremos ao estado de Santa Catarina, que tem como função a promoção do bem-estar social, da dignidade da pessoa humana, da assistência social e da promoção e observação do direito constitucional à moradia digna, algumas propostas no sentido de garantir a dignidade às famílias das Ocupações”, manifestam em trecho da carta.

Outros encaminhamentos surgiram a partir das falas: a fiscalização dos projetos de política habitacional do Estado e municípios; a sugestão de que as emendas parlamentares impositivas possam ser destinadas à habitação; a implantação da Casa da Mulher Brasileira para atender mulheres vítimas de violência. 

O deputado Fabiano Luz, por sua vez, apresentou uma conta simples feita por ele ao longo do evento para demonstrar que a luta por dignidade ainda está começando. 

“São 260 mil casas em déficit em SC. Se multiplicarmos esse número por R$60 mil, o valor médio de uma casa básica, resultaria em pouco mais de R$14 bilhões. É quase o mesmo valor que o Governo do Estado concede em benefício fiscal todos os anos às grandes de Santa Catarina. Com o que ele entrega para as empresas todos os anos, o Governo teria condição de zerar o déficit habitacional em somente um ano”, avaliou. 

Assista na íntegra a audiência pública.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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