Ocupação Anita Garibaldi abriga cinquenta famílias em prédio abandonado do Governo de Santa Catarina  

Na última quarta-feira, 6 de abril, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a prorrogação da liminar (ADPF 828) que proíbe despejos e ocupações no país durante a pandemia de Covid-19. Os efeitos da medida cautelar foram prorrogados até 30 de junho, após intensa mobilização social em torno da Campanha Nacional Despejo Zero.  

A decisão suspende qualquer ação de despejo em ocupações anteriores a 20 de março de 2020, contemplando cerca de 132 mil famílias ameaçadas de despejo no Brasil. Também reafirma a obrigação do Estado de garantir moradia digna para as famílias que vivem em ocupações posteriores à data, como é o caso da ocupação Anita Garibaldi, localizada em Capoeiras, região continental da capital catarinense. 

Surgida em setembro de 2021, a ocupação Anita Garibaldi abriga cerca de cinquenta famílias em um prédio de propriedade do Governo de Santa Catarina, que não possuía função social há pelo menos dez anos, segundo averiguado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), movimento dedicado à reforma urbana e ao direito à moradia.

Marta participa ativamente do cuidado das crianças na ocupação, muitas delas a chamam carinhosamente de mãe. Foto: Fernanda Pessoa.

Ocupação é refúgio para mulheres vítimas de violência

Marta de Lara mora na ocupação com seus três filhos há quatro meses. Antes, vivia no Alto Pantanal. “Um lugar sem luz, sem água, sem saneamento básico, nada”, descreve. Mulher negra de 26 anos, Marta sofria violência doméstica por parte do seu marido alcoólatra. “Eu não tinha muita saída”, lamenta.

No início da pandemia, teve seu primeiro contato com o MLB e com o partido Unidade Popular, através do encontro com Júlia Andrade Ew, coordenadora estadual do MLB e presidenta da Unidade Popular (UP) em SC. O movimento e o partido fazem ações nos bairros periféricos da cidade, como doações de cestas básicas e a construção da escola popular Eliana Silva. Foi através da escola no Alto Pantanal que elas se conheceram. 

“Um dia meu marido tentou colocar fogo na casa, e eu resolvi sair. Eu sabia que tinha a ocupação e poderia ficar segura aqui, então eu vim para cá. O que me salvou na pandemia foi essa ocupação Anita Garibaldi, não só a mim como a muitas mulheres”, assegura.

Moradora da ocupação desde o primeiro dia, Elisiane Cristina Vieira, jovem negra de 16 anos, compartilha o sentimento da companheira: “Essa ocupação mudou a minha vida, faz eu ter vontade de acordar todos os dias e lutar pelos meus direitos. Eu estou aqui pelo sonho da minha mãe, o meu sonho e o sonho de todo mundo aqui dentro: ter a minha casa própria.” 

Carla ficou desempregada durante a pandemia e buscou moradia na ocupação. Foto: Fernanda Pessoa.

“Trabalhava para sobreviver, vivia para pagar aluguel”

Natural de São Paulo, Carla Cristina Antunes, mulher branca, começou a morar na ocupação Anita Garibaldi a três ou quatro dias da tomada do edifício. Aos 46 anos, ela vivia sozinha em Florianópolis. “Trabalhava para sobreviver, vivia para pagar aluguel”. Na pandemia, ela ficou desempregada e entrou em depressão, não estava conseguindo pagar a locação de onde morava. 

“Eu passei todo meu seguro desemprego em casa, em isolamento social, e isso contribuiu para a minha depressão. De lá para cá, as coisas aumentaram absurdamente. Foi muito difícil me manter sem ter com quem contar”, admite Carla.  

Foi nesta situação que conheceu a ocupação e informou-se sobre os seus direitos.

“Eu não sabia que a lei protegia nosso direito de ocupar um espaço sem função social depois de muito tempo. Nós estamos arregaçando as mangas e fazendo algo que era para o Governo estar fazendo, mas ao mesmo tempo nós também estamos exigindo que eles façam”. 

Júlia Ew se divide entre seu trabalho como psicóloga e sua atuação através do MLB e do partido Unidade Popular. Foto: Fernanda Pessoa.

Ocupação constrói Escola Popular Eliana Silva

Para Carla, junto com a moradia, a educação é um tema central. “O meu pai morreu praticamente analfabeto, ele só sabia assinar o nome e, por isso, a educação é muito importante para mim”, esclarece. Por isso, ela tomou frente na construção da Escola Eliana Silva dentro da ocupação.  

Marta, que também participa da escola, explica que o objetivo do projeto é atender toda a comunidade do entorno: 

“Se uma mãe não tem com quem deixar o filho para ir trabalhar, nós vamos estar aqui de portas abertas para cuidar dessa criança. Aqui não existem filhos de um ou de outro, todos somos responsáveis pelas crianças. Eu cuido de todas as crianças como se fossem minhas.”

A Escola Eliana Silva é construída em todo o território nacional, inspirada na Escola Itinerante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

“Assim como o MST construiu a pedagogia da reforma agrária através da realidade da luta do campo, nós queremos construir a pedagogia da reforma urbana, através da luta pela moradia, nos bairros, nas favelas, nas ocupações, queremos construir uma forma de aprender e ensinar que seja revolucionária, emancipadora, libertadora”, defende Júlia Ew, coordenadora estadual do MLB.

Marta, que é chamada de mãe pela maioria das crianças que vivem na Anita Garibaldi, prefere a escola popular, porque considera que as escolas tradicionais não ensinam a história como ela realmente foi. “Um exemplo é a gente aprender que Portugal descobriu o Brasil, como descobriu se os indígenas já moravam aqui?”

A escola da ocupação está funcionando meio período, mas a meta é que ela atenda em tempo integral. Faltam recursos financeiros e voluntários para que isso seja possível.  

Entrevistadas para a reportagem pousam para foto em frente ao mural da Anita Garibaldi dentro do prédio ocupado. Foto: Fernanda Pessoa.

A revolução da Anita Garibaldi é sinônimo de coletividade e resistência 

A ocupação urbana Anita Garibaldi, formada em sua maioria por mulheres negras, é a primeira organizada pelo MLB e a primeira em edifício público da qual se tem notícia no estado.  

“O nome da revolucionária catarinense foi definido pelas famílias em assembleia popular por simbolizar a organização e a luta do povo por justiça e independência. Além disso, em 2021 foi comemorado o bicentenário da heroína”, explica Julia Ew.

As decisões da ocupação são todas coletivas, assim como a distribuição das tarefas. Tudo é discutido nas assembleias que acontecem todas às quartas-feiras. As famílias possuem, inclusive, um estatuto com algumas regras, como a proibição de qualquer tipo de violência. 

“Aqui eu encontro uma rede de apoio e consigo ser apoio para muitas pessoas também. Eu estava num poço sem saída, com um agressor, que me prendia psicologicamente, e hoje estou aqui fazendo o que eu quero, trabalhando como posso para sustentar os meus filhos. Muita gente ajuda a ocupação e eu agradeço muito aos apoiadores, porque o governo não vem bater aqui oferecendo cesta básica”, declara Marta. 

Muito emocionada, Carla diz acreditar que a ocupação a esteja fortalecendo, fazendo dela uma pessoa melhor. “Eu gosto muito da ocupação, porque provavelmente aqui as crianças terão um futuro diferente do meu”, acrescenta. Atualmente Carla está terminando o terceiro ano para entrar na universidade. 

Júlia enaltece um aprendizado que teve com um morador da ocupação: “Nós somos mais que uma família, nós somos companheiros. Acho que tem uma sabedoria nisso, porque a família a gente não escolhe. E, quando falamos de companheirismo, temos o compromisso de dividir uma trincheira, de sermos melhores coletivamente e individualmente, acaba sendo mais profundo”. 

Elisiane conclui apontando suas referências femininas dentro da ocupação. “Eu me inspiro muito na luta da Marta e da Júlia. É maravilhoso ver as pessoas lutando pelos seus direitos. E eu fico muito orgulhosa de ter somente 16 anos e estar envolvida com os movimentos. Eu me sinto muito forte aqui dentro”, assegura. Elisiane é coordenadora do movimento Rebele-se SC, formado por secundaristas em defesa da educação.

Durante conversa, Elisiane lembrou da frase do cartaz: “até reinvindicarmos nosso direito, não vou sair daqui”. Foto: Fernanda Pessoa.

Estado pede reintegração de posse de edifício abandonado

Com 24 anos, Júlia Ew concilia sua atuação como psicóloga com as atividades do MLB e da União Popular. Ela é uma das organizadoras da ocupação Anita Garibaldi e acompanha de perto o processo jurídico, que trata a disputa do imóvel entre o proprietário, que é o Governo do Estado, e as famílias que estão vivendo ali.  

“Alguns vizinhos dizem que há 15 anos esse prédio está sem função, mas através de documentos chegamos a um abandono de cerca de dez anos. Na década de 70, ele foi uma fábrica de bicicletas que faliu, então o prédio foi comprado pelo Estado”, conta. 

De acordo com a psicóloga, o Estado pediu a reintegração de posse do imóvel, alegando que havia cedido o espaço para o Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina. “Eles tinham um plano de que aqui fosse o almoxarifado dos Bombeiros, mas a formalização disso não constava em lugar nenhum”. 

Segundo nota da Defensoria Pública de SC, a ação de reintegração de posse, que pretende reaver o imóvel público, foi deferida em favor do Estado. 

“A desocupação do imóvel está condicionada à prévia realocação dos ocupantes e inclusão em programas de habitação popular, decisão importante que reforça o dever do Estado de amparar pessoas vulneráveis e providenciar alternativas habitacionais em casos de remoções, já que situações como estas apenas ocorrem porque o poder público não efetiva políticas públicas habitacionais sérias que garantam o direito à moradia da população de baixa renda”, declara a defensora pública Ana Paula Fischer. 

Para efetivar a reintegração de posse, poder público deve oferecer soluções habitacionais para as famílias. Foto: Fernanda Pessoa.

O diretor de Habitação e Regularização Fundiária (DIRF), Leonardo Martins Machado, representante do Governo Estadual, confirmou, através de nota enviada ao Catarinas, que o papel do poder público estadual é articular e apoiar políticas públicas dos municípios. 

“Já nos colocamos à disposição de construir soluções junto com a prefeitura de Florianópolis, que está, após uma reunião realizada com a nossa equipe, formulando conjuntamente com o Governo do Estado uma proposta de encaminhamento”, escreveu. 

O município de Florianópolis, através do diretor da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU), André Vianna, no entanto, conta uma versão um pouco diferente. 

“Nós apresentamos uma série de projetos ao Estado, que contemplariam esta ocupação e outras, porém não há nada concreto sendo construído no momento. Nós temos projetos para solucionar a problemática, o entrave é definir de onde virão os recursos, como serão efetivados e criar realmente um cronograma de trabalho”, esclarece André.   

As crianças da ocupação adoram erguer os punhos para serem fotografadas. Foto: Fernanda Pessoa.

De acordo com o advogado Pedro de Melo Ruiz, em um mundo ideal deveriam existir técnicos das pastas de habitação e assistência social do município para verificar a situação de cada família. 

“O poder público tem que garantir a saúde e a integridade das pessoas, não negar atendimento no posto de saúde por falta de comprovante de residência, oferecer, se necessário, atendimento na assistência social e colocar essas famílias em algum projeto habitacional”, esclarece. 

As famílias da Anita Garibaldi garantem que nenhum representante do poder público compareceu para realizar nada do que foi pedido judicialmente até o momento. 

Procurados para prestar informações sobre o caso, a Procuradoria-Geral do Estado limitou-se, através da assessoria de imprensa, a enviar o número do processo junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina não respondeu.  

As famílias da ocupação Anita Garibaldi vivem em comunidade, dividindo as tarefas e a comida entre todos. Foto: Fernanda Pessoa.

Garantir o direito à moradia é dever do poder público 

O direito à moradia digna está reconhecido e implantado no país no Artigo 6º da Constituição Federal. O texto diz que a habitação é um direito social, equiparado à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados. 

Também se estabelece que os Estados e os Municípios devem garantir, em conjunto com a União, a gestão de programas sociais de moradia popular.

“É um direito que o Estado tem que criar políticas públicas para torná-lo efetivo, como acontece no Sistema Único de Saúde (SUS) ou na Seguridade Social. O que vemos é que isso não vem sendo instituído de maneira adequada à nível federal, estadual ou municipal”, opina o advogado com atuação vinculada aos direitos sociais, Pedro Gabriel de Melo Ruiz. 

Em agosto de 2020, o Governo Federal deu início ao Programa Casa Verde e Amarela em substituição ao Minha Casa Minha Vida, que visa proporcionar crédito imobiliário, regularização fundiária, melhoria habitacional e locação social. De acordo com dados oficiais, desde 2019 até outubro de 2021, o programa havia entregue 1,2 milhão de moradias populares. 

De acordo com Pedro Ruiz, o principal problema do programa é que ele não atinge as pessoas mais necessitadas, da faixa 1 e 2, que são pessoas com renda muito baixa. O advogado também critica o programa habitacional da gestão estadual, o SC Mais Moradias, lançado em outubro do ano passado, que prevê a construção de oito mil casas até 2026.   

“A proposta dele é dar o recurso para municípios com menor IDH do estado. Mas acontece que a questão da habitação se concentra nos locais de grande produção, em grandes cidades com IDH mais elevados, mas que possuem graves problemas de déficit habitacional. Ele não enfrenta de fato o problema”, analisa.  

MLB luta pela reforma urbana e pelo direito humano de morar dignamente. Foto: Fernanda Pessoa.

Florianópolis teve maior aumento de aluguel entre capitais em 2021

Uma das principais causas do déficit habitacional na região sul do Brasil é o valor excessivo dos aluguéis. Do déficit habitacional total, 58,1% das famílias utilizaram mais de 30% da sua renda de até três salários mínimos com a despesa do aluguel, totalizando cerca de 352 mil domicílios entre 2016 e 2019, conforme relatório Déficit Habitacional no Brasil

De acordo com o Índice de Custo de Vida (ICV) de Florianópolis, calculado por pesquisadores da Universidade do Estado de Santa Catarina (UFSC), os gastos com habitação na cidade aumentaram 15,07% no último ano. A capital catarinense, conforme Índice FipeZap+ de Locação, foi a segunda com maior aumento de aluguel residencial em 2021, entre onze capitais analisadas.   

Em entrevista, o diretor de Urbanismo da SMDU de Florianópolis, André Vianna, afirmou que o município possui um déficit habitacional entre 14 e 17 mil famílias, dados baseados no último Censo do IBGE, realizado há doze anos. “Não temos mecanismos próprios de integração de base de dados para conseguir chegar a um número mais próximo do real”, lamenta.

O gestor reconhece a necessidade de enfrentar o problema, porém coloca a falta de recursos como principal impedimento para efetivar os projetos. “Recentemente, nós aplicamos recursos para promover a regularização fundiária de alguns núcleos urbanos irregulares, mas não há programas de implementação de conjuntos habitacionais”.

A ocupação Anita Garibaldi aceita todos os tipos de doações: alimentos, roupas, livros, utensílios para cozinha, quarto, banheiro, etc.

O Catarinas está conhecendo a realidade das ocupações da Grande Florianópolis e, ao longo das próximas semanas, tratá mais reportagens sobre o tema.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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