Ouvimos três mulheres que representam grupos especificados na Portaria Nº 13/2021 e também duas especialistas, todas questionam a oferta do implante contraceptivo de forma discriminatória.

“A disponibilidade do implante subdérmico contraceptivo é muito bem-vinda, só não queremos que ela seja utilizada como instrumento compulsório de esterilização de grupos específicos de mulheres que já são estigmatizadas e discriminadas na sociedade”. É dessa forma que a integrante da Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/aids (RNP+ Brasil), Vanessa Campos, descreve a Portaria Nº 13/2021 publicada pelo Ministério da Saúde em abril deste ano. A proposta institui a oferta do implante subdérmico de etonogestrel na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil, delimitando as que estão em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; e trabalhadoras do sexo.

Saiba mais sobre o implante.

Conforme já publicamos nesta matéria, o método apresenta benefícios em relação aos outros disponíveis e pode ser usado por todas as mulheres. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as únicas contraindicações absolutas ao uso do implante são a gravidez e a presença de câncer de mama recente. No entanto, a sua oferta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) precisa ser disponível para todas as mulheres e não como “uma medida higienista”, como pontua a vice-presidenta da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) e coordenadora do Coletivo Rebu, Santuzza Alves de Souza. Ela ainda questiona: “Por que puta não pode parir mais? Por que as moradoras de rua tem que parar de parir? Por que as mulheres que estão em situação de privação de liberdade também não podem?”

Além disso, a portaria não explica como a política será colocada em prática, deixando pontas soltas para que os movimentos acreditem em adesão compulsória. “Se você tem a intenção de fazer uma coisa correta, você deixa tudo bem explicado. Mas não está, e muito pelo contrário, está tudo muito oculto, sem explicação, ninguém sabe dizer nada. Estamos falando de um governo fascista, não dá para confiar”, afirma Santuzza.

Sem diálogo

Santuzza destaca a falta de diálogo com os grupos envolvidos como um dos maiores problemas dessa portaria. O movimento das trabalhadoras do sexo existe há mais de 30 anos, integra três redes nacionais e, mesmo assim, foi ignorado, não só pelo governo, mas também por quem demandou o pedido desse método.

“Essas mulheres que solicitaram isso não sabem da nossa realidade, não sabem o que é o trabalho do movimento de prostituta. Não podem mais falar por nós, não podem mais nos calar”, salienta.  

A vice-presidente da CUTS analisa que a portaria foi publicada neste momento de pandemia como forma estratégica de inviabilizar o debate, já que o mundo está voltado para conter as mortes por Covid-19. Em relação a isso, além das trabalhadoras sexuais, Santuzza diz se preocupar com as mulheres que são mais vulneráveis, como as que estão em situação de rua e privadas de liberdade. “E se elas não quiserem? Quem garante que elas terão o direito de dizer não?”, questiona. Para ela, isso interfere diretamente na decisão das mulheres sobre seus próprios corpos. “Parte delas nem terão a chance de dizer não. No caso de ser uma coisa compulsória, é um grupo que não saberá nem se defender”, completa. 

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“Por que puta não pode parir mais?”, questiona Santuzza Alves de Souza (Foto: Arquivo Pessoal)

Direitos violados

Na mesma direção, a secretária de informação e comunicação da RNP+ Brasil e também representante estadual da rede no Amazonas, Vanessa Campos, que vive há 31 anos com HIV/aids, diz que essa portaria é uma violação de direitos gravíssima e um instrumento de controle sobre corpos de mulheres de populações específicas. “Na maioria das vezes é mulher que, quando chega no serviço, já é discriminada simplesmente por ser dessas populações e podem ser vítimas muito fáceis para receber esse implante”, destaca.

De acordo com Vanessa, as mulheres especificadas na portaria já têm dificuldade de acesso ao SUS e, muitas delas, não são informadas adequadamente sobre os diversos métodos disponíveis. Por isso, a probabilidade é de que, ao chegarem no serviço de saúde, sejam pressionadas a aderirem ao implante. Após o procedimento, a pergunta que fica é se elas conseguirão se livrar do método quando quiserem. “Sempre dependerá de um profissional da área para retirar e, quando a gente depende de um serviço de saúde que nos discrimina, temos mesmo que ficar com muito pé atrás e não aceitar isso”, declara.

Como exemplo dessa discriminação, ela relembra quando teve seus filhos e foi oprimida pelo serviço de saúde. Em todas as três gestações, Vanessa escutou comentários que estava louca, que era irresponsável e que deveria fazer uma cirurgia para não ter mais filhos. “Já somos muito punidas por exercermos os nossos direitos sexuais e reprodutivos pelo simples fato de vivermos com HIV”, confessa. Para ela, os critérios que foram utilizados para chegar ao grupo específico da portaria são racistas, discriminatórios, higienistas e estigmatizantes.

“Sonho com o dia em que nós, mulheres, possamos exercer nossos direitos sexuais e direitos reprodutivos com todo suporte necessário, seja do Estado ou da sociedade em geral”, completa.

Outro grupo que também foi citado na portaria são as mulheres em situação de rua e, para representá-las, conversamos com a agente social Alessandra Martins Cordeiro que, depois de anos vivendo nas ruas, experimenta agora ocupar um teto ao lado dos cinco filhos e do companheiro. A família está há quatro anos na Ocupação Anita Santos em um estacionamento abandonado, em Belo Horizonte (MG). 

Alessandra é mãe de três meninos e duas meninas, sofreu dois abortos espontâneos e, quando tinha 28 anos, decidiu fazer uma laqueadura. A agente luta para que todas as mulheres tenham o direito de escolha sobre seus próprios corpos. Em relação à portaria, ela acredita que seja suspeita, porque é voltada para um público específico. “Quando é universal, a gente se iguala, tem o direito de opinar, se quer ou não. Pra gente que já vive em vulnerabilidade, já nos coloca em alerta. É uma portaria suspeita porque já vem com endereço”, declara. Confira a entrevista completa com Alessandra.

Decisão na mão dos profissionais de saúde

Se, por um lado, há os movimentos que serão afetados pela portaria, por outro lado, há os profissionais da saúde que ainda não compreendem como essa decisão implicará na prática. A médica ginecologista, Halana Faria, entende que, para alguns grupos citados, como as mulheres com HVI em que é contraindicado o uso de método contendo estrogênio, o implante será uma opção importante para garantir contracepção para alguns grupos populacionais. “O que não pode acontecer é que isso seja feito à revelia da escolha. Sabemos como é problemática a possibilidade de um consentimento informado em termos de qualquer coisa que se refira a um corpo que menstrua. Essa problemática está dada e vamos precisar enfrentar”, destaca. 

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Para a ginecologista Halana Faria a nova portaria deixa a escolha sobre o contraceptivo na mão de médicos. Foto: Manu d`Eça

Além disso, a médica acredita que esse tema revelará problemas muito mais complexos dentro do sistema de saúde, como a contracepção na mão de médicos, a falta de profissionais de enfermagem para inserir o DIU – único método de longa duração disponível até o momento no SUS -, excesso de realização de laqueaduras e falta de planejamento reprodutivo. “Não dá para a gente continuar com consulta de contracepção voltada para o indivíduo com 15 minutos de duração. É preciso de grupos de educação em saúde para oferecer planejamento reprodutivo adequadamente”, alerta.

Halana também coloca outro ponto a ser discutido sobre o implante subdérmico de etonogestrel: os efeitos colaterais. Segundo ela, o método “promete” gerar amenorreia (ausência de menstruação), no entanto, na prática, diversas mulheres com implante relatam sangramentos irregulares.

“Você deixa de ter seu ciclo menstrual e sangra sem saber quando. Isso é horrível, é um dos principais motivos para que as pessoas queiram tirar o método”, explica. 

A ginecologista também questiona se a retirada do implante será feita quando a mulher quiser. “Na rede privada, os médicos já se recusam a tirar DIU Mirena e Implante antes da data de validade, então você imagina uma mulher que vive em situação de rua, sem acesso a serviço de saúde e começa a sangrar e não tem a quem recorrer”, indaga.

A RNP+ Brasil, a CUTS e o Coletivo Rebu fazem parte das 30 organizações e coletivos que publicaram uma nota conjunta em que exigem a revogação da portaria e pedem a oferta universal de método contraceptivo. 

Acesso universal, sim

De acordo com a nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a portaria resultou de uma Consulta Pública n.01/2021 aberta à sociedade em janeiro de 2021 pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), do Ministério da Saúde, para inclusão do implante para mulheres adultas entre 18 e 49 anos pelo Sistema Único de Saúde. O relatório inicial da Comissão não recomendou tal aprovação devido ao impacto orçamentário, considerando a ampla população de mulheres dessa faixa etária aptas a se candidatarem ao contraceptivo. 

Por isso, o laboratório farmacêutico Schering-Plough Indústria Farmacêutica Ltda./MSD, que solicitou o pedido à Conitec, indicou determinar um grupo prioritário de mulheres para receber o implante, como mostra o trecho do pedido da farmacêutica: “populações em situação de vulnerabilidade: mulheres que vivem com HIV, usuárias de drogas, mulheres que vivem em regiões afastadas de grandes centros urbanos, comunidades carentes, imigrantes ou inseridas no sistema prisional e mulheres com deficiência intelectual”.

Essa foi a segunda tentativa de solicitação à Conitec da incorporação de métodos contraceptivos de longa duração (LARC) no SUS. A primeira solicitação foi feita em 2015 pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O pedido ofertava o sistema intra-uterino com levonorgestrel (SIU LNG) e o implante subdérmico com etonogestrel para adolescentes entre 15 e 19 anos . Na ocasião, seriam beneficiados um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis”. 

Em nota, a Abrasco afirma entender que uma das principais causas de gravidez não planejada é a necessidade não atendida de anticoncepção. “Tanto a falta de métodos contraceptivos como a existência de poucas opções e o uso incorreto propiciam a gravidez não planejada […] O acesso a todos os métodos modernos disponíveis de planejamento reprodutivo faz parte da consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.”

Para a médica e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Ilana Ambrogi, qualquer justificativa para que esse método contraceptivo não seja distribuído de forma equânime e universal tem que ser escrutinada. Além do que, o próprio cálculo de custo-benefício feito pelo Ministério da Saúde para negar acesso a todas mulheres levanta dúvidas.

“Ainda que seja um método mais caro que o DIU de cobre, por exemplo, o custo-benefício pode ser evidenciado nos dados que apontam maior satisfação e continuidade de uso e redução de gestações não pretendidas. Além de uma consequente diminuição em morte materna e abortos induzidos”, evidencia. 

Ilana explica que, a médio e longo prazo, o custo dessas gestações não pretendidas superaria o investimento na disponibilização do implante para as mulheres e adolescentes que dele precisam.  No entanto, mesmo que a escassez de recursos seja um empecilho para que a distribuição do método seja feita de forma universal, as razões nunca podem ser baseadas em práticas discriminatórias. “Todos os grupos mencionados na portaria têm o direito de querer ou não engravidar, assim como qualquer outra pessoa”, salienta. Ela completa: “O embasamento de uma seleção tem que se amparar em dados e evidências consolidadas que justifiquem a proteção de determinadas populações e sua priorização.”

Chama atenção da médica e pesquisadora o fato da portaria ter um grande potencial discriminatório e possivelmente a uma maior vulnerabilidade de grupos já em situação de exclusão social. Para ela, não se pode pensar em direitos reprodutivos e métodos contraceptivos de uma maneira descolada da realidade brasileira, “na qual há uma desigualdade gigantesca e um histórico eugênico de decidir quais são as populações ou mulheres que devem se reproduzir e quais não”. 

Diante de toda essa problemática envolvendo a Portaria Nº 13/2021 e de todas as dúvidas restantes, o Portal Catarinas entrou em contato com o Ministério da Saúde na sexta-feira, dia 30 de Abril, para esclarecimentos. Entretanto, até a publicação dessa matéria, não houve retorno. Os movimentos também aguardam comunicação com o órgão e com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 

*Laura é estudante do sétimo período de Jornalismo da Univali e faz estágio no Portal Catarinas, sob supervisão da jornalista Paula Guimarães.

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