Em conversa com Catarinas, a integrante do Movimento Nacional da População de Rua falou sobre a Portaria Nº 13/2021 do Ministério da Saúde, que torna pública a oferta do implante contraceptivo para populações específicas, que historicamente têm sido alvo de políticas de controle de natalidade.

Pela primeira vez, depois de anos vivendo nas ruas, a agente social Alessandra Martins Cordeiro, 40 anos, experimenta ocupar um teto ao lado dos cinco filhos e do companheiro. Organizada junto a dezenas de famílias, há quatro anos vive na Ocupação Anita Santos, em um estacionamento abandonado, em Belo Horizonte (MG). “Tudo nasce dentro de um lar, ter um lar é fundamental, é estrutura para qualquer ser humano, um lugar onde deitar e sonhar com o dia de amanhã”, afirma em entrevista ao Catarinas. 

A possibilidade de sonhar tem ampliado a perspectiva política de Alessandra e há um ano ela passou a integrar o Movimento Nacional da População de Rua, formada, em sua maioria, por homens. Desde a última semana, a entrevistada atua em articulação com mulheres de outros movimentos sociais em protesto à Portaria Nº 13/2021 do Ministério da Saúde, publicada em 19 de abril. A normativa instituiu o implante subdérmico de etonogestrel como estratégia de prevenção da gravidez indesejada através do Sistema Único de Saúde (SUS). Gera revolta o fato da oferta do método, ainda pouco conhecido, ser destinada somente a mulheres que vivem em situação de rua, com HIV/AIDS, privadas de liberdade e trabalhadoras do sexo.

Em uma carta conjunta, 30 organizações protestaram contra o caráter eugênico da Portaria por sugerir o controle de natalidade de populações historicamente estigmatizadas. “Pra gente que já vive em vulnerabilidade nos coloca em alerta. É uma portaria suspeita porque já vem com endereço. Não podemos ser submissas a essa portaria e outras que virão com esse sentido de controlar nossos corpos. Se não articularmos agora, não sabemos onde vai parar, a maneira que vai se dar na vida das pessoas”, afirma ela.

Mãe de três filhos e duas filhas, Alessandra sofreu dois abortos espontâneos e, aos 28 anos, decidiu fazer uma laqueadura, cirurgia que promove a esterilização definitiva. A decisão de não ter mais filhos não muda o fato de ela ainda travar uma luta pelo exercício da maternidade, pela possibilidade de dar dignidade aos filhos. 

“Luto pelo direito de ter moradia digna, pelo direito de ser mãe […] Essa minha força me deu o direito de vivenciar toda essa luta por ter uma moradia digna, na defesa dos direitos dessas outras mulheres, direito de estarem com a sua família, de ter os filhos na quantidade que desejam”. 

Atualmente, Alessandra organiza um coletivo de mulheres que, como ela, sabem o que é viver nas ruas. Publicamos a entrevista na íntegra.

Foto: arquivo pessoal.

Como você percebeu a portaria?
Fomos pegas de surpresa. Pra gente que é um pouco antenada, que corre atrás das políticas públicas, de direitos, é muito suspeita a portaria, porque veio voltada para um público, não é universal. Quando é universal, a gente se iguala, tem o direito de opinar se quer ou não. Pra gente que já vive em vulnerabilidade, já nos coloca em alerta. É uma portaria suspeita porque já vem com endereço. 

Quais são as principais pautas do movimento hoje?
Eu venho de uma trajetória de vivência nas ruas de quase 20 anos, então sou mãe, tive que lutar para ser mãe nas ruas, tive cinco filhos e dois abortos espontâneos. Tenho cinco filhos, vivos e com saúde, graças a Deus. Sou mulher, sou negra e venho desta trajetória de vivência nas ruas. Hoje, moro e sou representante da ocupação porque a gente espera uma oportunidade de ser reconhecida, uma lei que seja efetiva. Luto pelo direito de ter uma moradia digna, pelo direito de ser mãe. Os equipamentos que temos em Belo Horizonte, para mães puérperas, gestantes, não atende todas as mulheres. Eu também sou agente social, trabalho em frente comunitária, faço abordagem nas ruas. Com esse agravamento da pandemia, a gente se depara com várias famílias que tiveram que buscar abrigo e sustento nas ruas. Temos um lema: a gente não está na rua porque quer. Então, são várias pessoas e histórias. Uma coisa que temos em comum é que todas essas histórias estão sendo contadas nas ruas. Essa minha força de estar aí na defesa dos direitos dessas outras mulheres me deu direito de vivenciar toda essa luta de ter uma moradia, de estar com a sua família, ter os filhos e a quantidade que deseja ter. Estar com eles e ter uma vida digna. A gente vem de uma Constituição de 1988, lá atrás eles falavam que a gente tinha direito à moradia, através de grupos mobilizados, organizados, que conseguiram esse decreto [nº 591/1992] que nos garantiria moradia, saúde, segurança, dignidade. 

Como vocês têm enfrentado as restrições impostas pela pandemia e omissão do governo federal?
A gente vem chegando em 2021 enfrentando uma pandemia, com uma desigualdade social enorme, onde não se cria política verdadeira para poder garantir a dignidade humana dessas pessoas, e vem essa portaria para descredibilizar a nossa imagem enquanto mulher. Essa pandemia deixou a saúde mental das mulheres devastada por causa das crianças que estão fora da escola. Essa pandemia pode ser chamada de universal porque em todo o mundo tem pessoas afetadas.

Aí vem esse governo, que eu não sei como chamá-lo, com essa portaria, quando as mães clamam para ter uma condição de vida melhor. Não sabemos como serão as nossas vidas na pós-pandemia. A gente não sabe se vai ter a garantia de ter um emprego, um sustento, como vamos levar nossas vidas. 

Moro na ocupação Anita Santos, em Belo Horizonte, Minas Gerais, com mais 20 famílias. Anita era uma militante de esquerda, que fez muito pela população em situação de rua de Belo Horizonte. Uma mulher negra que veio das ruas, que viveu em prol dos nossos direitos e de sensibilizar as pessoas. Esses direitos não nos são dados de graça, há pessoas que vieram na nossa frente pra lutar e deixar o legado e consciência de que a gente tem que permanecer no vínculo, na luta, para que sejamos mais fortes, para a efetivação das leis.

Foto: arquivo pessoal.

Quanto tempo de ocupação?
São quatro anos na ocupação. Em Belo Horizonte são várias ocupações, porque as pessoas cansaram de permanecer nas ruas e esperar pelo direito à moradia. São prédios, áreas desocupadas. Aqui em BH, tem muito mais imóveis desocupados do que moradores em situação de rua. É muita casa sem gente e muita gente sem casa. Nossa luta política é por moradia. Tudo nasce dentro de um lar, é fundamental, é estrutura para qualquer ser humano, lugar onde deitar, sonhar com o seu dia de amanhã. Estando nas ruas a gente não tem isso, mal se tem noite. 

Onde fica a ocupação?
É uma área que eles não aproveitaram da linha férrea, onde passa a linha de metrô. Era um lugar abandonado, onde funcionava um estacionamento, e a gente se organizou lá. Há um processo em curso, corremos o risco de sermos despejadas em plena pandemia. Não só nós, mas várias estão sofrendo despejos durante a pandemia. Além de tudo isso, a gente tem que se preocupar com a saúde, em se manter viva, porque vacina não tem pra gente. Tem que ter cuidado também para manter os filhos vivos, porque um adulto ainda tem ou deveria ter consciência de se cuidar, mas as crianças precisam ser alertadas todo o tempo. Você, mulher, precisa ter toda essa estrutura para cuidar de você e da sua família. Ainda tem toda essa pressão de ser despejada. Existe a lei do CNJ “Despejo Zero”, que foi criada justamente para que as famílias não fossem despejadas nesse contexto de pandemia. Só que aqui em Belo Horizonte, e Minas como um todo, as pessoas estão sendo despejadas da sua casa sem que o Estado ofereça recurso, política de moradia. Porque a política que nos oferecem são os abrigos que servem para pessoas solteiras ou, em último caso, vai acomodar, mas eu, por exemplo, tenho cinco filhos e meu companheiro. Quando se chega nesses espaços com a família, o abrigamento não é familiar, cada um vai para uma ala, aí se rompe o laço familiar. 

Como vocês criaram as ocupações?
Somos pessoas que viemos da trajetória das ruas. Há 17 anos sou acompanhada pela Pastoral de Rua de Belo Horizonte, neste período conheci as Brigadas Populares, em que a Bella Gonçalves, uma das lideranças, nos apoiou quando fizemos a ocupação. Há mais de cem ocupações em Belo Horizonte, cada uma com suas representantes. Onde moro, eu faço essa parte de tentar organizar o espaço e conscientizar as pessoas do coletivo para que a gente consiga viver bem entre nós. A gente faz reuniões e vamos mobilizando, olhando os espaços que podem ser ocupados. A cidade está cheia de imóveis desocupados que poderiam ser utilizados para fazer política pública de moradia. Enquanto não pensam dessa maneira, vamos nós com a pressa de morar, com essa necessidade, porque mais uma vez vou repetir: ninguém está nas ruas porque quer. Esperei por política de moradia por quase 20 anos da minha nas ruas. É uma luta diária em todos os sentidos.

Você é agente social, como é o seu trabalho?
Trata-se de um projeto do estado, que nasceu do Centro Nacional da População de Rua, que ficou ativo por três anos. Esse que trabalho é projeto de um ano, vai se encerrar agora. Pode ser renovado, mas não sei se terá continuidade. É um trabalho formal, carteira assinada, para qual passei por processo de qualificação, de aprendizado, tive que fazer formação para isso. A trajetória do agente social vem da vivência nas ruas, somos nós que fazemos abordagem e serviço de campo. Nós escutamos as demandas, tentamos selecionar. Usamos o sistema ‘Sima’ para fazer registro de violações de direitos, conscientizamos as pessoas para buscarem os direitos. Muitas vezes, a gente vive dias, vidas, pessoas se perdem, anos se passam e a gente deixa de reivindicar essa igualdade que a gente sonha, que a cada decreto, portaria como essa, vai tirando. A gente fica pensando se realmente essa igualdade um dia vai chegar. 

Como foi ser mãe nas ruas? Você sofreu algum tipo de pressão para evitar a gravidez?
Eu iniciei muito nova, minha primeira gestação foi com 14 anos. Fiz uma laqueadura há 12 anos, quando estava privada de liberdade. Hoje, às vezes eu penso que poderia ter esperado, mas eu já tinha filhos suficientes, na verdade sou mãe de sete filhos, dois abortos espontâneos, cinco vivos. Eu tive muita hérnia durante a gravidez. Aos 28 anos eu já estava exaurida, meu corpo não suportava mais. Diziam que o companheiro tinha que assinar e eu bati o pé e consegui fazer sem a assinatura dele. Ali estavam falando que o meu companheiro é que mandava no meu corpo. Foi uma coisa que eu quis. Se o implante fosse oferecido de maneira universal, como a laqueadura, não haveria problemas, se fosse escolha. E a laqueadura não é fácil de conseguir, você tem que fazer planejamento familiar, tem que ter idade, é toda uma burocracia tremenda. Mesmo a gente querendo fazer de imediato, não consegue ter acesso. 

Eu quero entender mais, participar dessas conversas, porque a portaria pegou um grupo bem específico. O que querem com isso? É preciso haver informação sobre como é a reação no corpo humano. Antes da laqueadura, eu tentei o DIU por três vezes, o meu organismo expulsou o método.

Não podemos ser submissas a essa portaria e a outras que hão de vir com esse sentido de controlar nossos corpos. Não estão falando de corpos das filhas deles, mas de nós, seres humanos, mulheres com condições de optarem pelo que querem sobre nossas vidas e corpos.

A portaria nos deixa na dúvida se podemos ter poder sobre nós, nossos desejos. Sejam portadoras de HIV, situação de rua, ou privadas de liberdade, somos nós que dizemos. Não está escrito que será compulsório, mas também não está escrito que não vai ser. Se não articularmos agora não sabemos onde vai parar, nem a maneira como isso vai ser tocado na vida das pessoas. 

Como estão lidando com a fome?
Aqui é um ajudando o outro. Às vezes ganha cesta básica, verduras, e a gente vai dividindo entre si, vivendo no coletivo, porque o mais importante é a união, solidariedade, e se preocupar com o próximo. Tem pessoas em situação muito pior que a gente. Eu vim das ruas, trabalho nas ruas e vivencio até hoje o que as pessoas passam. 

Você foi para a rua com quantos anos?
Desde quando engravidei, aos 14 anos, de um namoradinho de infância. Minha mãe era solteira, meu pai faleceu quando eu era muito nova. Minha mãe era muito nova, sem recursos. Ela via esperança na gente, de seguirmos os estudos. Ela ficou angustiada quando eu engravidei por ser muito nova. O bairro inteiro me viu com maus olhos, fiquei com vergonha de ir à escola, minha mãe me expulsou de casa, tive que buscar um rumo e o primeiro que achei foi o das ruas.

Foto: arquivo pessoal.

Como está sendo viver fora das ruas?
Estou renascendo agora. Antes, nas ruas, eu não tinha um pingo de curiosidade por política pública. Eu não tinha tempo, pressa, eu não acreditava, isso retardou bastante o processo da minha vida. Eu tive a oportunidade para me atentar ao que está acontecendo na minha vida e das pessoas. Eu mesma me vetei, em vez de ter ido buscar. Sei que é uma burocracia falar o tempo todo de política, mas é fundamental para gente que vive essa situação desumana, porque se dorme e se faz as necessidades no mesmo lugar, é assim que vivem as pessoas na rua, não têm banheiro decente. Falam que as pessoas têm que se isolar, fazer higiene para se proteger do vírus, eu pergunto como? O único lugar para onde eles mandam é o abrigo, como se isolar se tem 100 pessoas no local?

É muito desrespeitosa essa portaria. Com tantas políticas a serem feitas, porque não disponibilizam vacinas para as pessoas? Métodos contraceptivos já existem vários, não precisamos desse agora não, porque nossa pressa é de vacina, de morar, de se alimentar com dignidade. 

Como foi a sua inserção no movimento?
São poucas mulheres no movimento, fui chegando e me inteirando. Hoje, participo de várias rodas de conversas, debates, nem que eu vá para escutar, mas, muitas vezes, as pessoas querem escutar a gente porque não é todo mundo que tem vivência das ruas. É cada um com sua vivência e história. Quando eu chego, as pessoas querem entender como é ser mãe e mulher nas ruas, a vida uma mulher que viveu esse tanto de tempo nas ruas e está sob risco de voltar às ruas, porque ainda não tenho garantia da minha casa própria.

Tenho um coletivo de mulheres. Toda semana falamos de um tema: agressão física, verbal, doméstica; mulheres e políticas públicas; saúde e cuidados. Vou levar esse debate sobre essa portaria que foi criada sorrateiramente. Estou fazendo várias pesquisas, depois eu faço um resumo e levo para elas entenderem e terem voz própria no sentido de saberem o que querem.

O que a vida política trouxe e o aonde você quer chegar?
O meu propósito desde que cheguei foi entender o sentido do direito de morar, as políticas, qual o caminho a seguir, como fazer. Só que quando você é uma mulher, aparecem vários outros temas, como esse da portaria. Então, é isso, a gente vai se juntando e misturando. 

A rua traz questões específicas para as mulheres, outras demandas, como você colocou…
A cada dia o grupo vai se surpreendendo. As mulheres chegam contando das violações, outras pedem ajuda. Algumas chegam depressivas, quietinhas, são mulheres que agora estão com um ‘vozerão’, com autonomia. 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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