Mesmo sem haver crime a ser investigado, Mirela Dutra Alberton decidiu averiguar ‘causa da morte’ após aborto legal. Essa matéria é uma parceria com o Intercept.

A promotora Mirela Dutra Alberton, que se opôs ao aborto legal da menina de 11 anos estuprada em Santa Catarina, começou uma investigação para determinar a “causa que levou à morte do feto” após o procedimento – embora, pela lei, não haja nenhum crime a ser averiguado. O aborto em caso de estupro é permitido desde 1940 e, como a menina tem menos de 14 anos, não há dúvidas de que foi vítima de estupro de vulnerável. Segundo informou a assessoria do Ministério Público de Santa Catarina, a promotora está afastada do caso desde 30 de junho, quando alegou impossibilidade de continuar por suspeição, já que sua conduta está sendo investigada pela Corregedoria-Geral do Ministério Público de Santa Catarina.

Em 24 de junho, Alberton pediu que os restos fetais fossem recolhidos por policiais do Instituto Geral de Perícias no Hospital Universitário da UFSC para a realização de uma necrópsia. No mesmo dia, véspera da alta da menina, o juiz José Adilson Bittencourt Junior afirmou em despacho que não se opunha ao requerimento, nem ao acesso a informações médicas da paciente.

Tivemos acesso ao requerimento da promotora, enviado ao perito-geral da polícia científica de Santa Catarina, Giovani Eduardo Adriano. Em ofício com o título “urgente”, Alberton pediu que fosse feito “exame pericial” para identificar “a causa que levou à morte do feto”. A promotora busca confirmar, em especial, se houve a aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos ainda no útero, ou seja, se foi realizada a assistolia fetal. 

“No tocante ao requerimento de autorização para que o IGP possa buscar e efetuar necropsia do corpo de delito (feto), bem como o acesso do prontuário da paciente, não há óbice deste juízo, pois tais órgãos (MPSC e IGP) possuem competências que o autorizam a assim proceder”, afirma o juiz no despacho. A decisão afirmava que o HU havia sido intimado a encaminhar “toda a documentação e relatório médico detalhado” sobre a realização do aborto em até 48 horas.

Como informamos quando a menina teve alta, o procedimento foi feito por meio de medicamentos, de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos cardíacos. A criança ficou na companhia da mãe durante todo o processo. De acordo com o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e diretor do Cisam, hospital referência em aborto legal no Recife, para casos acima de 22 a 24 semanas de gestação, é recomendada a indução de assistolia fetal antes da indução do aborto. “Induz ao óbito do feto intra-útero para não ocorrer sofrimento”, explicou. 

Mirella Alberton, lotada na 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas, é a promotora que, na mesma audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou induzir a menina a desistir do aborto legal, propôs que a criança mantivessse a “barriga” por mais “uma ou duas semanas”. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele…”, ela disse à criança. A conduta da promotora é investigada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

Procurada, a polícia científica disse que não irá se pronunciar “até a finalização dos procedimentos médico-legais, devido às repercussões e por estar tramitando em segredo de justiça” e que, quando finalizado o procedimento, o resultado será enviado à vara criminal responsável.

O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina também afirmou não poder fazer “manifestações públicas sobre o assunto”, porque a apuração de “qualquer caso envolvendo atuação médica” ocorre de forma sigilosa no órgão. O CRM-SC acrescentou, no entanto, que está apurando o caso.

Já o Hospital Universitário da UFSC disse que “as informações confidenciais sobre o caso da menor apenas foram compartilhadas com órgãos que detêm poder requisitório previsto em lei, em autos sob sigilo” e que se “solidariza com a criança e seus familiares, bem como com a sua equipe assistencial”. 

Não há crime a ser investigado

Para fontes ouvidas pelo Intercept e pelo Portal Catarinas, a investigação que Alberton deseja iniciar não tem fundamento legal, já que a garantia do direito ao aborto nos casos previstos em lei não pode ser criminalizada. “É um delírio, porque é uma excludente de ilicitude, não tem nenhum indício de crime”, analisa a criminalista Marta Machado, professora FGV São Paulo e pesquisadora da Afro Cebrap — Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial.

“Ela está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação ideológica dela, contra a lei. Está violando o princípio da legalidade, que é o direito ao aborto legal”.

Na avaliação da criminalista, a investida de Alberton amplia a revitimização da menina e sua família. “Ela está instrumentalizando o estado para perseguir um crime que não existe. Está claramente abusando do poder dela. Além disso, viola o direito à intimidade da menina”, avalia.

Perguntamos à promotora Mirela Dutra Alberton quais as justificativas para seu requerimento e que leis ampararam seu pedido, levando em conta que o aborto foi realizado de forma legal. Questionamos também qual o crime a ser investigado e quem seriam os possíveis suspeitos. A assessoria de imprensa do Ministério Público respondeu, porém, que não poderia se manifestar, já que o processo corre em sigilo.

As mesmas perguntas foram feitas ao juiz José Adilson Bittencourt Junior, via assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Por e-mail, o TJSC disse que “são inverídicas as informações de que o juiz autorizou o recolhimento do feto e deferiu a disponibilização do prontuário médico”. Por telefone, a assessoria acrescentou que “o magistrado tão somente se manifestou no sentido de que não caberia a ele decidir sobre tal pedido”. A assessoria também afirmou que, em uma decisão posterior, o juiz recusou o pedido de recolhimento do prontuário da menina. O Intercept não teve acesso a esse documento.

Na prática, foi o despacho do juiz, contudo, que possibilitou que os restos fetais fossem recolhidos. O IGP foi ao hospital na tarde de 24 de junho e o hospital se recusou a fazer a entrega. De noite, contudo, os policiais retornaram com um novo documento e foram liberados os restos.

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A promotora de justiça Fabiana Dal’Mas, presidente da Comissão de Saúde Reprodutiva da Fédération Internationale des Femmes des Carrières Juridiques [Federação Internacional das Mulheres de Carreira Jurídica, em tradução livre], explica que a equipe médica não pode ser investigada por garantir o exercício do direito da criança. Ela lembra que os profissionais estão respaldados pelo artigo 128 do Código Penal e pela própria recomendação do Ministério Público Federal para que o hospital realizasse o aborto na menina vítima de estupro. “O que a gente vê é que há uma tentativa do estado brasileiro como um todo de impedir o acesso das meninas e mulheres aos seus direitos sexuais e reprodutivos, inclusive o direito ao aborto legal”, contextualiza.

A procuradora do Ministério Público Federal Daniela Escobar, que recomendou ao hospital da UFSC que fizesse o aborto na menina, disse desconhecer os processos que correm na justiça estadual. “Sequer sei os fundamentos jurídicos que embasaram um pedido destes. Nossa atribuição como MPF foi atuar para garantir o acesso a um direito daquela criança, um serviço de saúde prestado pelo HU. Saiu dessa esfera, não tenho conhecimento quase nenhum sobre o caso”, ela afirmou.

A constitucionalista Eloisa Machado, professora da FGV em São Paulo, considera que a investigação da “causa da morte” do feto, após a garantia do direito da menina, é grave. “Caso o sistema de justiça continue perseguindo a menina e sua mãe pela busca do exercício regular de seu direito, teremos uma situação ainda mais grave. A tentativa de transformar o aborto legal, previsto em lei desde a década de 1940 em um crime de homicídio, é algo inconstitucional, inconvencional e ilegal”, afirmou.

Para Machado, o acesso a dados pessoais, sensíveis, da menina e da mãe – como os expostos no relatório médico a que Alberton conseguiu acesso – só podem ser disponibilizados se houver devido processo que “afaste qualquer possibilidade de que isso seja mais um capítulo na terrível violência institucional a que elas foram submetidas”.
Machado assinala que a atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, frente à “gravíssima violência institucional” por parte da promotora e da juíza Joana Ribeiro Zimmer, que estava à frente do caso, será decisiva. “Não só para promover uma devida responsabilização nesse caso, mas também para sinalizar para todo o sistema de justiça que uma menina vítima de violência sexual que busca a interrupção da gestação tem que ter o seu direito garantido”.

Atualização: 7 de julho, 12h25
Este texto foi atualizado para incluir a informação, enviada pelo TJSC, de que o juiz indeferiu o pedido de acesso ao prontuário em decisão posterior à mencionada neste texto. Atualizamos também a informação enviada pela assessoria do MPSC sobre o afastamento da promotora.

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  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

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