Visibilizar a memória lésbica a partir da investigação e construção de um banco de dados sobre o assassinato de mulheres lésbicas no país tem sido a motivação das pesquisadoras Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe Soares e Maria Clara Dias para a elaboração do primeiro Dossiê sobre o Lesbocídio no Brasil, lançado este ano. “Por meio deste trabalho pretendemos destacar mais um aspecto fundamental na luta pela visibilidade, o direito de  continuar existindo e, com isso, de ser e fazer parte da história”, afirmam elas na publicação.

O termo lesbocídio utilizado no estudo é definido como a morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e discriminação contra a existência lésbica. Todo o lesbocídio é um feminicídio, mas nem todo o feminicídio é um lesbocídio, ressaltam as autoras do Dossiê, destacando a importância desta especificidade ser tratada com atenção. Segundo dados do relatório, entre 2014 e 2017, 126 mulheres lésbicas foram assassinadas e 33 suicidadas no país. A pesquisa, que segue em andamento, já contabilizou até julho de 2018, 91 mortes no ano, demonstrando que o contexto de violência não apenas continua, mas tem aumentado.

O assassinato de Luana Barbosa, em 2016, enquanto levava seu filho para a aula se tornou um caso emblemático ao demonstrar a brutalidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil. O caso foi o ponto de partida para a criação do projeto de pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, responsável pelo Dossiê e dedicado a resgatar informações e histórias sobre outras Luanas, mulheres lésbicas assassinadas e que pouco ou nunca se escuta falar. A iniciativa é vinculada ao Núcleo de Inclusão Social – NIS e do Nós: dissidências feministas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ao apontar números, a publicação construída a partir de dados divulgados pela mídia e por redes sociais não representa necessariamente o quantitativo real das mortes desta parcela específica da população, mas se mostra impactante e consistente ao demonstrar a necessidade de mecanismos que garantam direitos de sobrevivência das mulheres lésbicas no Brasil, como aponta o próprio Dossiê. Outro ponto importante destacado pelas pesquisadoras diz respeito a invisibilização na cobertura da mídia, principalmente de mulheres lésbicas negras e indígenas, refletindo a prevalência de matérias sobre o assassinato de mulheres brancas. Os locais das mortes e o perfil dos assassinos também são contemplados no estudo, oferecendo um panorama para a compreensão do contexto dos lesbicídios.

As pesquisadoras e autoras do Dossiê, Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe Soares e Maria Clara Dias, responderam em entrevista ao Portal Catarinas sobre a importância de tirar da invisibilidade os casos de lesbocídio no Brasil.

Portal Catarinas: Como surgiu a proposta de realizar um mapeamento sobre as mortes de mulheres lésbicas no Brasil e a partir de qual necessidade o projeto se consolida?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – A Milena Carneiro, fundadora do projeto é a pessoa que teve a ideia inicial de começar tudo isso. Após o contato com a Suane e com a Maria Clara o projeto se tornou institucional. A demanda surgiu a partir da identificação de que não havia um trabalho específico sobre os dados das mortes das lésbicas no Brasil. O ponto de partida foi a morte brutal da Luana Barbosa que chocou a todas nós, em especial à Milena que começou a procurar quem eram as outras Luanas.  O Dossiê foi o resultado dos dados coletados e analisados no primeiro período da pesquisa. Identificamos que as informações precisavam ser apresentadas sob a forma de um documento que fosse capaz de fundamentar teoricamente e de comparar qualitativamente os dados numéricos que tínhamos em mãos. Uma publicação era necessária naquele momento. Além disso, constatamos que há uma ausência de Dossiês como o que produzimos sobre o tema das mortes das lésbicas ligadas à lesbofobia e buscamos contribuir para o preenchimento desta lacuna.

Portal Catarinas -Tirar esses números da invisibilidade também se refere a um engajamento político em prol da visibilidade lésbica?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – Certamente. Acreditamos que a invisibilidade lésbica é reforçada por meio da subnotificação. Se a sociedade não tem a oportunidade de ficar de luto, um luto político e social, por estas mortes não há elemento de mobilização em torno da segurança, da vida e da resistência das lésbicas. O dia 29 de agosto foi escolhido no Brasil como o dia nacional de visibilidade lésbica em comemoração ao primeiro SENALE (Seminário Nacional de Lésbicas), hoje SENALESBI (Seminário Nacional de Lésbicas e Bissexuais), ocorrido em 1996, no Rio de Janeiro/RJ.  Este dia se tornou para as lésbicas uma importante data de comemoração da existência e da resistência lésbica anti-lesbofobia. Entretanto, a condição das lésbicas no ano de 2018, no Brasil, não é das melhores. Os índices de lesbocídios, mortes de lésbicas marcadas pelo determinante da lesbofobia, aumentam a cada ano e, até o mês de agosto de 2018, já tivemos mais casos registrados do que em todo o ano de 2017. O que parece, de fato, motivo de comemoração é a amplitude que a pesquisa tem tomado e interesse que ela desperta na comunidade lésbica, que têm buscado maior proteção e conscientização, em organismos promotores dos Direitos Humanos e das Políticas para LGBTI+. A nossa pesquisa é a única no Brasil que busca compreender as especificidades das violências lesbocídas, apesar de ser algo muito triste, se torna uma ferramenta de luta e de mobilização no combate a esse tipo de violência.

Portal Catarinas – Qual a importância de nomear esses casos como lesbocídio e como vocês definem esse termo?
 Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – É fundamental entender o lesbocídio como um fenômeno social e um componente fundamental do patriarcado. A figura da lésbica é alguém sem lugar nesta sociedade. É importante nomear os casos como casos de lesbocídio para que tenhamos a dimensão dos efeitos da lesbofobia, para que não sejam mais divulgadas estatísticas erradas sobre nossas mortes e sobre as violências que sofremos. Milena encontrou este termo solto em algumas publicações de uma coletiva do Chile, mas nós criamos a definição justamente porque percebemos ser um termo que é fácil de compreender e de utilizar.

O termo lesbocídio, dentre outras motivações, é proposto por nós como forma de advertir contra a negligência e o preconceito da sociedade brasileira para com a condição lésbica, em seus diversos âmbitos, e as consequências, muitas irremediáveis, advindas do preconceito em especial a morte das lésbicas por motivações de preconceito contra elas, ou seja, a lesbofobia. Assim, definimos lesbocídio como morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e discriminação contra a existência lésbica.

Portal Catarinas – A partir da pesquisa realizada, quais características foram observadas entre os casos de lesbocídio?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – As formas de violência contra as lésbicas não costumam ser tratadas com a seriedade necessária, o direito das vítimas por justiça e por memória que lhes é negado. As investigações sobre os casos não costumam ser consistentes, os dados disponíveis costumam estar incompletos e há um profundo descaso em todas as esferas para com estas mortes. Tal panorama dificulta e, em muitas situações, impossibilita o registro e o acompanhamento dos casos assim como inviabiliza a homenagem às memórias das lésbicas mortas.

Todo lesbocídio é um feminicídio, mas nem todo feminicídio é um lesbocídio, vale frisar. Talvez a principal diferença seja que os lesbocídios não possuem hegemonicamente a característica da violência doméstica, como ela é normalmente caracterizada, ou seja, não é o marido o assassino, mas sim alguém próximo à vítima. Muitas vezes um familiar da namorada, um colega.  Outra questão é que muitos lesbocídios são assassinatos brutais em que a morte em si é marcada por componentes alarmantes de crueldade e tortura.

Portal Catarinas O Dossiê, que mapeou 126 casos de mulheres lésbicas assassinadas e 33 suicidadas no País entre 2014 e 2017, traz indicativos sobre como a sexualidade se intersecciona com outros marcadores sociais e diferentes contextos de violência. Como vocês interpretam os percentuais que demonstram a prevalência de assassinatos entre mulheres jovens (até 24 anos), moradoras do interior e assassinadas, em sua maioria, no espaço público por homens?Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – Algumas considerações sobre estes dados podem ser feitas, mas uma amostra temporal maior é necessária para a construção de parâmetros mais complexos de estatísticas. Por enquanto, acreditamos que a juventude é um elemento de fragilização, ou seja, as lésbicas jovens são pessoas que ainda não possuem uma rede de cuidados e de apoio forte. Precisamos lembrar que a família, normalmente encarada como espaço de proteção para heterossexuais, no caso de lésbicas, recorrentemente é um dos primeiros espaços de opressão. A violência familiar é muito comum. Assim, as ruas podem tornar-se espaços de destino certo para lésbicas jovens que não têm para onde ir, tanto enquanto pessoas que ficam em situação de rua, quanto para jovens que evitam ao máximo estar em família. Por outro lado, são os locais em que estas mulheres estão sob a atenção de estranhos.

Os espaços públicos são perigosos e frequentados principalmente por homens. As cidades interioranas são locais em que todas as pessoas se conhecem e a lésbica fica visada. Os homens são os principais agressores devido às características próprias da sociedade em que vivemos na qual a existência de lésbicas é sempre vista pela ordem heteropatriarcal como uma afronta.

Portal Catarinas – Um dos recortes destacados no Dossiê é que, pelos dados coletados, a maioria das mulheres lésbicas assassinadas são brancas, mas possivelmente esse resultado esteja relacionado com uma invisibilidade maior das mortes de mulheres negras. Como vocês analisam a cobertura da mídia e como isso impactou nos resultados do estudo?
 Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio –

A mídia no Brasil e no mundo é feita por e para as elites, isto marca um denominador comum de racismo, classismo, capacitismo, entre outros. Acreditamos que as mortes das mulheres brancas são temas que vendem mais para mídias sensacionalistas e que as mortes de lésbicas indígenas e negras podem ser mais facilmente subnotificadas. A cobertura da mídia é um problema fundamental da nossa pesquisa já que ela necessariamente agrega este viés às nossas fontes primárias.

Portal Catarinas – Outra questão importante trazida no Dossiê diz respeito ao perfil das mulheres lésbicas assassinadas, que em sua maioria não correspondiam ao estereótipo de feminilidade esperado pela sociedade. De que forma podemos refletir sobre essa articulação entre sexualidade e gênero?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – Chamamos de lésbica não-feminilizada a lésbica que não corresponde aos estereótipos de feminilidades socialmente definidos às mulheres na sociedade ocidental. No Dossiê abordamos algumas ponderações sobre como a questão da feminilidade pode estar ligada à tipificação do assassinato ou do suicídio, a grosso modo, inferimos que as lésbicas não-feminilizadas são as que mais recebem a lesbofobia da sociedade de forma explícita, ou seja, são discriminadas de forma instantânea quando entram em um espaço, são interpeladas nas ruas etc. O rompimento com as expectativas sociais para as mulheres – lésbicas ou não – são sempre motivos de retaliação. Acreditamos que o maior índice de assassinatos de lésbicas não-feminilizadas está ligado a isso.

Portal Catarinas – Vocês incluíram na pesquisa os casos de suicídios de mulheres lésbicas. Como esse contexto social de exclusão e preconceito impacta nas situações de suicídio?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio –

A condição lésbica é bastante complexa e trata-se de uma condição sociocultural, política e econômica que perpassa todos os indivíduos, pois vincula-se à manutenção de uma sociedade pautada por um modelo hegemônico heterossexual. Assim, o preconceito expresso em palavras e atos é a parte visível de valores e estruturas que sustentam a comunidade da qual as lésbicas serão sempre forasteiras.

Ser lésbica é compreender que não existem espaços feitos para você e que sua existência nunca será validada pelo entorno social. Ao contrário, existirá sempre a necessidade de provar-se útil, íntegra e capaz, apesar da sua condição lésbica, pois há uma falsa crença de que a homossexualidade é uma expressão de uma perversão de caráter, um desvio existencial que se expressa por meio da sexualidade fora do padrão. O suicídio é um fenômeno social complexo que não pode ser relacionado apenas ao quadro de opressões e aumento da lesbofobia, entretanto identifica-se que a população lésbica é marcada por altos números de suicídio e que as coisas estão conectadas. A impossibilidade de encontrar-se em sociedade e de possuir qualquer espaço de amparo e sociabilidade são fatores que podem contribuir para esses índices além do agravo de adoecimentos mentais que não necessariamente levam ao suicídio, mas que podem colaborar com o quadro.

Portal Catarinas – Quais políticas públicas vocês vislumbram para garantir a proteção e a valorização da vida das mulheres lésbicas no País?
Pesquisadoras da Equipe Lesbocídio – Acreditamos que o lesbocídio é um fenômeno social e, como tal, requer atenção para além do momento da morte em si, mas também o mapeamento dos ciclos de violências que culminam em mortes para a adoção de medidas efetivas que cessem estes ciclos. Existem duas formas de pensar a questão das políticas públicas. A primeira é retificar políticas já existentes que, em teoria, contemplam lésbicas. Neste conjunto podemos citar todas as políticas e leis que são direcionadas ao combate da violência, do suicídio, da exclusão social e, em especial, aquelas ligadas às minorias: indígenas, negras, LGBTI+, mulheres e população de baixa renda. Há de se identificar quais são as formas de modificar desde o texto até a ponta, ou seja, atendimento e implementação, além da distribuição e alocação de verbas e recursos para cada fase do ciclo da violência lesbocída. A outra forma é a pressão social, política e científica para a criação de políticas públicas específicas para lésbicas. Políticas estas que podem ser desde políticas de visibilidade, como a PL da Visibilidade, proposta por Marielle Franco, até outras mais específicas, relativas à morte de lésbicas em contextos de lesbofobia. Esta segunda forma requer uma articulação minuciosa e respeitosa entre políticos preocupados com a causa, o movimento de lésbicas e as pesquisas sobre o tema que podem fornecer dados e prever melhores formas de aplicações.

*Jéssica é feminista, lésbica, jornalista e doutoranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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