A Justiça do Estado do Rio de Janeiro suspendeu, em decisão liminar, a Lei Municipal 8.936, sancionada em 12 de junho, que obriga unidades de saúde do município a exibirem cartazes com mensagens falsas e condenatórias sobre aborto. A decisão da juíza Mirela Erbisti responde a uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Na decisão, a magistrada afirma que a medida afronta direitos constitucionais e representa uma forma de violência. Foi fixada uma multa diária de R$1 mil por estabelecimento de saúde que exibir os cartazes e o mesmo valor em caso de cobrança do município para o cumprimento da lei. O município tem o prazo de 30 dias para contestar a decisão.
“A narrativa alarmista, parcial e potencialmente desinformativa da Lei n. 8936/25 omite dados científicos e jurídicos em clara propaganda ideológica contrária aos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, a liberdade de consciência e crença e o direito à informação livre, além de violar o princípio da separação entre Estado e religião (laicidade). A imposição da afixação de cartazes com narrativa ideológico-fundamentalista causa sofrimento desnecessário às mulheres em situação de vulnerabilidade obstétrica e viola diversos dispositivos constitucionais já assinalados”, argumenta a juíza na decisão.
O que diz a decisão da justiça do RJ
A Justiça determina que, em prazo de 24 horas, o município do Rio de Janeiro deve:
– Deixar de fixar cartazes da Lei 8.936/2025 em hospitais, postos ou qualquer unidade de saúde da rede pública, independentemente da forma de gestão;
– Parar de exigir o cumprimento da lei em todos os estabelecimentos de saúde do município;
– Deixar de aplicar punições previstas na lei para unidades de saúde ou gestores que não fixem os cartazes.
Negar o acesso ao aborto legal é violência obstétrica
A decisão destaca que a lei configura violência obstétrica, considerando que, após serem vítimas de violência sexual, as mulheres seriam revitimizadas ao buscar o serviço de saúde. Nesse sentido, a juíza cita o caso de Alyne Pimentel, que ocorreu no Rio de Janeiro, primeiro a resultar na responsabilização do governo brasileiro por um órgão internacional de direitos humanos em razão de uma morte materna evitável.
Alyne da Silva Pimentel Teixeira, mulher jovem, negra, moradora de Belford Roxo (RJ), mãe de uma criança de 5 anos e grávida de seis meses, morreu após uma sequência de negligências médicas. No dia 11 de novembro de 2012, ela buscou atendimento em uma unidade de saúde do município, mas foi medicada e liberada sem exames. Dias depois, retornou ao hospital com o quadro agravado, e foi constatada a morte do feto.
Mesmo assim, Alyne esperou mais de sete horas para a indução do parto, que fracassou. Sem melhora, ela aguardou por horas uma curetagem, impedida de receber visitas da família. Após a liberação para vê-la, parentes encontraram Alyne em estado grave. A transferência para o Hospital Geral de Nova Iguaçu só ocorreu oito horas depois, por falta de ambulância. Em coma, ela morreu em 16 de novembro de 2022. A autópsia apontou hemorragia digestiva. Segundo médicos, a permanência do feto morto no útero foi a causa da morte.
“Alyne não abortou. Alyne simplesmente não foi bem atendida no serviço público de saúde e em razão do grave erro cometido, perdeu a chance de viver. Talvez – nunca saberemos – Alyne fosse um caso de gravidez que devesse ser interrompida como única forma de salvar sua vida. Se fosse hoje, no entanto, ao chegar ao posto de saúde Alyne se depararia com um cartaz dizendo que se optasse por manter a própria vida em detrimento da vida do feto, o nascituro seria descartado no lixo hospitalar e ela poderia, ainda assim, vir a morrer, deixar de ser fértil ou sofrer comprometimento psicológico”, argumenta a juíza Mirela Erbisti.
Leia mais
- Virtuosas, premiado em Cannes, expõe o terror por trás do coach cristão para mulheres
- Antonieta de Barros volta ao centro de Florianópolis pela artista Gugie Cavalcanti
- Criança não é mãe: campanha avança no Congresso pelo fim da maternidade infantil
- Homens trans e pessoas transmasculinas engravidam e abortam, mas o sistema de saúde não os reconhece
- Rede antiaborto pressiona adolescente de 13 anos a ter filho do estuprador e depois a abandona
A decisão judicial também destaca que a lei 8.936/2025 ignora a decisão do Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU), que fez recomendações ao Estado brasileiro por não prestar atendimento adequado à Alyne Pimentel.
“Apesar da decisão internacional de imposição de melhoria do atendimento às gestantes, o Município do Rio de Janeiro, por meio da lei sub judice, na contramão da Cedaw, optou por constranger as mulheres grávidas, comprometendo a neutralidade dos espaços de saúde, em especial os públicos, violando a dignidade da pessoa humana, a liberdade de consciência e crença, a liberdade de informação científica e médica e a laicidade do Estado de direito”, critica a magistrada.
A juíza Mirela Erbisti enfatiza ainda que o direito das mulheres a uma vida livre de violência de gênero está intrinsecamente ligado a outros direitos humanos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à liberdade, à segurança pessoal, à igualdade e à proteção contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Ela também ressalta que o Poder Judiciário brasileiro deve observar os tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo país, aplicando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) e realizando o controle de convencionalidade das leis, conforme orienta a Recomendação nº 123/2022 do Conselho Nacional de Justiça.
Nesse sentido, destaca a importância da Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), ratificada pelo Brasil em 1984, como instrumento central na promoção da igualdade de gênero e na responsabilização de Estados e instituições por práticas discriminatórias.
A juíza também menciona a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — conhecida como Convenção de Belém do Pará — como instrumento fundamental no compromisso dos Estados com a garantia de uma vida livre de violência para as mulheres. Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994, é parte integrante do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
“A mensagem passada pela lei, embora se revista de um cunho aparentemente neutro, em verdade visa a incutir culpa, ressentimento e arrependimento de caráter fundamentalista e totalmente dissuadido do direito às mulheres vítimas de estupro, que conceberam fetos anencéfalos ou que optaram pelo aborto como única forma de salvar suas próprias vidas. Trata-se de mulheres já vitimizadas, envoltas em julgamentos próprios, de familiares, e eventualmente até dos companheiros, que não necessitam que o Estado, que as deveria proteger, as submetessem a uma revitimização”, afirma a magistrada na decisão.
Lembre o caso
A lei, de autoria dos vereadores Dr. Rogério Amorim (PL), Rosa Fernandes (PSD) e Marcio Santos (PV), obriga as unidades de saúde a fixarem cartazes com três mensagens:
– Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito;
– Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?;
– Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!.
Na ação, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro argumentou que a lei municipal tratou de assunto que se insere na competência legislativa da União, Direito Civil e Penal, além de criar empecilhos ao acesso do artigo 128 do Código Penal, que estabelece que não há crime quando o aborto é necessário para salvar a vida da gestante, ou quando a gravidez resulta de estupro – e que ela viola direitos fundamentais garantidos pela Constituição, como o direito à vida, à dignidade das mulheres e ao acesso à saúde.
Acolhendo a posição do MP, a juíza observou ainda que apesar de o tema estar em debate no Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 442, ainda não houve deliberação final, justamente pela complexidade da questão, que envolve profundas reflexões sobre o início da vida e conta com ampla participação da sociedade civil, de especialistas do direito, da filosofia e da religião.
“No entanto, o Município do Rio de Janeiro, que nem é o guardião da Constituição, se antecipou ao julgamento e decidiu, por meio da norma ora em análise, que seria conveniente e adequado convencer mulheres já vitimizadas, que se encontram gestantes ou se submeteram a abortos legais (em que todas as hipóteses são extremamente dolorosas), de que a opção pelo caminho jurídico é, em verdade, uma atitude reprovável do ponto de vista moral e religioso”, aponta.