Por Paula Sant’Anna de Souza Machado[1], Nálida Coelho Monte[2] e Ana Rita Souza Prata[3].

 

A Portaria n.º 2282 é a resposta trazida pelo governo para crianças que percorrem estados, escondidas em porta-malas.

 

Recentemente o tema aborto voltou aos noticiários, dessa vez porque uma criança de dez anos, após ser vítima de repetidas violências sexuais, engravidou e buscou exercer seu direito ao aborto, previsto em lei desde 1940, e o fora negado, sendo obrigada a buscar tutela do judiciário para fazê-lo.

É sempre importante lembrar que aborto não é punido no país, desde 1940, nos casos de gestação decorrente de violência sexual e risco de morte da gestante e, desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em casos de anencefalia.

Para um tema que normalmente é evitado pelas mídias tradicionais e pelo próprio Judiciário, foi um alento ver a empatia com que a situação da pequena menina foi tratada. Nenhuma surpresa, infelizmente, para quem atua na busca da garantia da justiça reprodutiva, os atos de repúdio ao exercício do direito à interrupção de gestação nos termos da lei, os empecilhos impostos aos/às profissionais de saúde para que exerçam seu trabalho, além das manifestações de julgamento contra uma menina e hipocrisia sobre a preocupação com a vida do feto.

Também nenhuma surpresa, agora felizmente, a luta e articulação de grupos de mulheres e rede de profissionais e ativistas para que essa criança não fosse mais uma vez vítima, agora do Estado.

O que se sabe é que, desde 1940, uma incansável resistência é responsável não só pela manutenção da previsão das hipóteses de aborto legal na legislação nacional, mas também para que esse direito se efetive, e saia do papel.

De fato, estudos demonstram que ao longo do tempo, houve muito mais propostas legislativas para diminuir esse direito do que o aumentar junto ao Congresso Nacional e legislativos locais. Ainda, apesar da vitória da ADPF 54 junto ao STF, a lentidão nas respostas da Corte faz com que muitas meninas e mulheres sejam empurradas para clandestinidade.

Não se pode esquecer que, mesmo nos casos em que a vítima de violência sexual puder realizar o abortamento legal, caso ela não tenha acesso a um serviço oficial e realize o procedimento de outra maneira – com uso de medicação ou em clínicas clandestinas – ela pode ser, e muitas vezes é, responsabilizada pelo crime de aborto.

Em um país em que[4] , no mínimo,66.041 meninas e mulheres foram vítimas de violência sexual no último ano[5], o primeiro serviço de abortamento legal foi instalado somente em 1989[6]. E até hoje, há diversos estados que não possuem nenhum serviço que garanta que mulheres e meninas possam interromper a gestação nos casos previstos em lei[7].

Os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) apontam que no primeiro semestre de 2020 houve o aumento de 21,32% de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Em contrapartida, durante a pandemia, 13 Estados e o Distrito Federal ficaram sem atendimento de aborto legal.

É importante ressaltar que de acordo com a OMS qualquer serviço de saúde obstétrico, mesmo da rede primária, poderia realizar o aborto nas hipóteses autorizadas pela lei. Não é preciso nenhuma habilidade técnica avançada, nem equipamentos caros, nem uma equipe de saúde completa (por exemplo, anestesista) para que o procedimento seja realizado.

Ainda, a OMS já reconheceu segurança e viabilidade do aborto medicamentoso em casa, podendo essa ser uma escolha mais barata, porque não exige leito, para casos de interrupção de gestações menos avançadas. O acompanhamento pode ser feito por telemedicina, prática autorizada e regulamentada no país.

O que falta é boa vontade dos governos para implantar serviços, e sobra resistência de alguns gestores e profissionais de saúde em acolher e garantir esse direito às meninas e mulheres.

É bastante comum serviços alegarem objeção de consciência e fecharem suas portas a meninas e mulheres que correm contra o tempo. Isso acontece apesar da restrição da objeção de forma coletiva e a necessidade de que, mesmo em casos que ela exista, a paciente deve ser atendida nas situações de urgência ou receber apoio caso seja encaminhada para outro local para que seja efetivamente atendida.

Essa prática, no entanto, não é debatida pelos órgãos de fiscalização, sendo aceitável que pessoa servidora pública não exerça a função para que ela fora contratada, sendo, ainda, paga com dinheiro de contribuintes.

Além da recusa no atendimento, há locais que criam exigências próprias e limitantes, embora ilegais, como o baixo tempo gestacional, apresentação de boletim de ocorrência e necessidade de autorização judicial.

Nada disso era exigido pela normativa nacional, até agora.

A resposta trazida pelo governo para crianças que percorrem estados, escondidas em porta-malas, para apenas exercer um direito, foi a edição da Portaria n.º 2282 pelo Ministério da Saúde que, dentre diversos retrocessos acerca do procedimento que deve ser realizado pelo SUS no atendimento de interrupção da gravidez, destacaremos três.

Em desacordo com o Código Penal, Código de Processo Penal, Lei Orgânica do SUS, Lei nº 12.845/2013 e Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário, a normativa torna obrigatória  a notificação à autoridade policial pelos profissionais de saúde que acolherem as pacientes dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro ferindo, em consequência, os direitos fundamentais à dignidade, intimidade, privacidade, confidencialidade, sigilo médico, autonomia e autodeterminação, bem como impedindo que o direito ao acesso a saúde seja efetivamente de cuidado, integral, universal e humanizado para vítimas de violência sexual que não desejam a denúncia criminal.

O artigo 8º da normativa ministerial também prevê a criação de uma nova etapa procedimental em que a equipe médica deverá informar e questionar sobre a possibilidade de visualização do feto/embrião, o que não encontra amparo em evidências científicas e normas sobre humanização do atendimento, editadas pelo próprio Ministério da Saúde. Além do mais, o artigo 25 do Código de Ética Médica veda a realização de práticas de tortura de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis.

Por fim, o Anexo V elenca, de forma superestimada, uma série de riscos decorrentes do procedimento, incluindo o risco de morte. Contudo, o documento da OMS que subsidia a portaria, na verdade, aponta que a interrupção da gestação é um dos procedimentos mais seguros quando se trata de intervenções na saúde reprodutiva e sexual.

Superestimar os riscos da interrupção e silenciar acerca dos riscos da continuidade da gestação é uma violação ao direito à informação, podendo viciar a declaração de vontade da mulher em realizar ou não realizar o procedimento a que teria direito. Não só, é requisito em descompasso com o conceito de atendimento humanizado, que deve ser sempre baseado nas evidências científicas e amplamente esclarecedor.

Como já descrito acima, dificultar, ainda mais, acesso e exercício do direito à interrupção da gestação, é empurrar as mulheres para clandestinidade, onde encontrarão risco de morte materna evitável ou de serem capturadas pelo sistema de justiça criminal.

A histórica Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016[8], coordenada pela Professora Débora Diniz, demonstra que as mulheres realizam e continuarão realizando abortos, com ou sem permissão legal. A escolha da sociedade e dos governantes deveria ser se essas mulheres poderão interromper suas gestações com segurança e respeito, ou de forma clandestina e insegura.

O Ministério da Saúde, em 2018, lançou estudo que mostra que, de 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas para tratar de complicações de aborto, sendo que ao menos, 4.455 delas morreram de 2000 a 2016. Do ponto de vista econômico, impressionante a cifra de R$ 486 milhões gastos pelo SUS nas internações e demais procedimentos.

Também em 2018, a Defensoria Pública de São Paulo publicou resultado de um grupo de ações de habeas corpus interpostos junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, nos quais foram localizadas ilegalidades em processos criminais de 30 mulheres criminalizadas pela prática de aborto. Algumas dessas mulheres foram presas em flagrantes e denunciadas por profissionais de saúde, que feriram seus deveres éticos de sigilo.

Esse continuará sendo o percurso de muitas meninas e mulheres brasileiras, mesmo aquelas que inicialmente poderiam legalmente interromper a gestação fruto de uma violência sexual, com a manutenção da Portaria do Ministério da Saúde.

Por isso, cada dia em que o Tribunal Regional Federal, Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional não dão respostas às ações judiciais e ao PDL (Projeto de Decreto Legislativo) que questionam a legalidade e constitucionalidade da Portaria n.º 2282, é um dia a mais em que ela poderá violar o direito à vida digna e acesso universal à saúde para inúmeras mulheres e meninas brasileiras.

Esperamos que a Portaria seja, em breve, declarada ilegal, inconstitucional ou inconvencional, ou que seja revogada, para que o percurso violento de meninas e mulheres brasileiras não seja ainda mais doloroso. Aborto seguro e gratuito para todas é o que esperamos e pelo que lutamos.

[1] Defensora Pública do Estado de São Paulo, é Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM).

[2] Defensora Pública do Estado de São Paulo, é Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM).

[3] Defensora Pública do Estado de São Paulo, é integrante do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM).

[4] Sabe-se que muitas mulheres não buscam o sistema de segurança pública para relatar violência sexual sofrida, sendo que a estimativa é que apenas 10% dos casos de estupro são denunciados. Ver aqui.

[5] Em 2019, foram registrados 66.041 estupros pelas Secretarias de Segurança Públicas. No Estado de São Paulo, em 2018, ocorreram 10.768 estupros com vítimas mulheres. Somente na Cidade de São Paulo, em 2018, ocorreram mais de 2.000 estupros.

[6] Apesar do serviço ter sido instalado, no município de São Paulo, em 1989, a primeira norma que regulamentava o procedimento de abortamento surgiu em 1999.

[7] Em 2019, iniciativa da Artigo 19 detectou que apenas 76 serviços, dos 176 cadastrados no CNES, efetivamente afirmaram realizar aborto legal. Esse número caiu para 42 em junho de 2020. Ver em https://mapaabortolegal.org/sobre-o-mapa/.

[8] “Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto no Brasil. (…): foram 417 mil mulheres no Brasil urbano em 2015, e 501 mil mulheres se incluirmos zona rural e mulheres não alfabetizadas. Ou seja, meio milhão de mulheres fez aborto no Brasil em 2015. A mulher que abortou é a mulher comum – jovem, católica ou evangélica, com filhos. A pesquisa foi realizada nos domicílios das mulheres e cobriu o Brasil urbano.” Ver a pesquisa aqui.

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