Ataques acontecem nas redes sociais, mas também incluem a falta de apoio financeiro e político às suas candidaturas

ATENÇÃO: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento nas redes, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, quais termos são frequentemente utilizados e como podemos identificá-la.

O apelo à diversidade na política e à ampliação das vozes nos espaços de poder tem tensionado a política partidária e escancarado inúmeras formas de violência de gênero no Brasil, especialmente contra candidaturas que carregam no corpo e na fala essa pauta. No primeiro turno em Santa Catarina, o MonitorA, observatório de violência de gênero da Revista AzMina junto ao InternetLab, mostrou que cinco das nove candidatas de partidos como PT, PSOL, NOVO, PCdoB e MDB monitoradas foram alvo de xingamentos na rede. O Portal Catarinas também entrevistou 36 candidatas a vereadora, prefeita e vice-prefeita no Estado e ouviu que 69% delas já sofreram violência por serem mulheres, 61% já sofreram ou sofrem violência política de gênero e 47% sofreram esses ataques na internet.

Dentre as violências relatadas, a maior parte está relacionada ao machismo vivido fora das redes sociais, tanto dentro quanto fora dos partidos, manifestado por meio de assédios, ameaças, deslegitimação de seu lugar na política, e falta de apoio – financeiro e político – do partido às suas candidaturas. 

“Sou operadora de roçadeira na prefeitura de Biguaçu, onde moro e fui candidata. Por ser a única mulher no cargo, diariamente sofro assédio, ouvindo dos comentários mais nojentos possíveis e a chefia ignorando totalmente o fato, e fazendo de conta que não é nada. Além de ouvir que não sou competente por ser mulher, e que não deveria me candidatar porque política é pra homem”, conta Caroline Hodel (PSOL), candidata à vereadora em Biguaçu.

Carolina Rosa Listone (PCdoB), vereadora mais jovem da Câmara de Chapecó, suplente em 2019, aos 23 anos, e candidata em 2020, também relatou ser alvo de diversos tipos de violência, que vão de assédio dentro e fora da coligação a ataques em plenárias online, com reprodução de vídeos nazistas e pornográficos, entre outros. “Quando assumi, eu e minha família sofremos ameaças; já me mandaram ir para casa cuidar da minha filha. Enfim, todo dia é uma forma diferente de ouvir que a política não pertence a nós, mulheres. Todo dia é uma luta pra provar que ‘sim’”, relata. 

Nas redes sociais, segundo levantamento do MonitorA, a candidata mais atacada no Twitter durante o primeiro turno em Santa Catarina foi Carla Ayres (PT), mulher branca e lésbica, eleita vereadora em Florianópolis. Foram 2.234 mensagens analisadas pelo monitoramento (mais que dois terços do total de mensagens de todas as candidatas), e 103 foram caracterizadas como xingamentos (4,6%). Entre os termos mais usados, a palavra “sapatão” foi mencionada 56 vezes, em uma vã tentativa de ofendê-la. A própria candidata se autointitula “sapatão” e destaca que não há caráter de xingamento no uso e repetição deste termo. Outras ofensas faziam a referência a seu partido e a seu posicionamento político.

“Muitas vezes se referem a mim no masculino, como se isso de alguma forma me desqualificasse enquanto mulher lésbica. Também atacam o fato de eu ser de esquerda, dizem que eu não deveria me posicionar como sapatão, enfim. Tem também um pessoal que me ataca quando trato de algum assunto econômico, que é uma pauta que a direita tem um apreço singular. Há quem ataque o partido e também há os que, evidentemente, nos atacam por eu ser mulher, lésbica e ativista dos direitos humanos”, conta Carla.

Mas os ataques se estenderam a outras redes e chegaram até ao estelionato. Foram os amigos de Mariana Franco (PCdoB), mulher trans, candidata à vereadora em Florianópolis, que lhe falaram da existência de um perfil com seu nome no aplicativo de relacionamentos Tinder. Como ela não usava essa rede, foi investigar. A descrição do perfil falso dizia que ela era atriz de filmes adultos e insinuava que era “acompanhante”. 

“Em todas as minhas redes acontece isso, de xingarem e fazerem comentários bobos. Diariamente recebo mensagens com conteúdo sexual, não só escritas, mas com fotos. Quando isso acontece em mensagens privadas eu acho muito mais violento, porque está sendo mais direcionado a ti mesmo”, relata a candidata. 

Além do machismo e misoginia, Mariana Franco também é alvo de transfobia, e os comentários direcionados a ela geralmente envolvem a sexualização de seu corpo. “Fico preocupada por ser uma pessoa trans, porque a sociedade já sexualiza os nossos corpos, já nos coloca sempre nas esquinas. Então, se você divulga isso, coloca nas redes, já é criticada, porque as pessoas não olham pelo lado do assédio sexual. Dizem: ‘você está expondo o homem, você está agindo incorretamente, que política você quer ser?’. Então, eu fico pensando nesse contexto político, sofrendo violência enquanto candidata, e o prefeito acusado de estupro é visto como ‘garanhão’”, analisa.

Mariana refere-se à acusação de estupro contra o atual prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), pela ex-servidora Rosana Ursa. Ele foi eleito no primeiro turno. “A acusação de estupro ao Gean teve o efeito de torná-lo mais ‘másculo’. Eu tive o cuidado de ouvir alguns eleitores e eleitoras dele, oriundos de camadas populares. Alguns diziam que achavam que Gean, por sua voz diferente, não fosse tão ‘macho’. Outras pessoas argumentavam que aquilo não era estupro”, analisa Joana Maria Pedro, historiadora e pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (IEG/UFSC). 

De acordo com a historiadora , a tradição de calar as mulheres é antiga em lugares de fala como a política é antiga, e o teor das ofensas também é uma forma de deslegitimar as mulheres que ocupam esse espaço. “Interessante que homens são gordos, novos, velhos, feios, mas este xingamento não é feito a eles, a aparência não importa. Para nossa cultura ocidental eles estão no seu lugar: o espaço público. Quando chamam as mulheres que estão em cargos de poder no masculino estão dizendo que, em nossa cultura, nenhuma mulher ‘de verdade’ deveria estar nestes lugares”, aponta a pesquisadora. 

Racismo: uma das marcas da violência política em SC

Se o fato de ser mulher já é suficiente para tornar-se alvo de violência nos espaços políticos partidários, ser mulher negra é ainda mais desafiador. No estado que se autodeclara mais branco do país, segundo o último Censo do IBGE, duas vereadoras, entre as sete mulheres pretas eleitas no pleito em 2020, foram vítimas de ataques racistas e misóginos em suas redes sociais. 

A professora aposentada Ana Lúcia Martins, a primeira mulher negra eleita em Joinville, Norte do Estado, sofreu ataques racistas e chegou a ser ameaçada de morte por perfis falsos. Alguns destes perfis se diziam organizados, com outras pessoas do Estado, em um grupo chamado ‘Juventude Hitlerista”. As ameaças demonstravam ódio pelo fato de ela, uma mulher negra, ter sido eleita. 

“As tentativas de silenciamento das nossas vozes, a interdição dos nossos corpos e da nossa imobilidade social são constantes e têm origem histórica do processo de escravização de pessoas negras e negros. A subjugação e os estereótipos negativos reforçam essas estratégias de apagamento e tentativa de invisibilidade. Precisamos nos opor a essas práticas, não podemos recuar”, afirma Ana Lúcia.

Para a vereadora, a visibilidade do caso e o apoio público recebido se somam às vozes e à luta histórica das organizações de mulheres negras e do movimento negro brasileiro. Segundo ela, a luta antirracista deve ser uma luta de toda a sociedade.

Em 2019, Santa Catarina registrou aumento de mais de 60% em notificações de injúria racial em relação a 2018, com 1086 casos contra 1794, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2020. Já em ocorrências de racismo, houve redução de quase 30%, passando de 238 para 175 casos notificados. O estado ocupa a segunda posição em registros de injúria racial com uma taxa de 25 casos para cada 100 mil habitantes, atrás apenas do Rio Grande do Norte que tem uma taxa de 50,3, enquanto a média nacional é de 6 casos.

Além disso, Santa Catarina é o segundo estado em grupo nazistas identificados em fóruns na Internet, segundo estudo publicado este ano. Em 1928, antes de Hitler tomar o poder, a primeira célula do partido nazista no Brasil foi fundada em Timbó (SC) e chegou a ter 528 filiados. Blumenau foi a cidade mais hitlerista do Brasil na época da guerra. E foi justamente nessa região, em Brusque, que a pedagoga Marlina Oliveira conquistou o mesmo feito inédito de Ana Lúcia Martins. Desde então, passou a sofrer ataques racistas.

“Uma reportagem de um jornal local que falava da importância de uma mulher negra ocupar esse espaço teve mais de 200 comentários questionando a necessidade de falar sobre isso, dizendo que era um ‘mimimi’. Houve muitos questionamentos sobre isso também em uma matéria que saiu numa rádio local”, conta.

Em 2020, apenas 27 mulheres assumiram as prefeituras em cidades de Santa Catarina, o que representa 9,1% do total. As mulheres também estão sub representadas nas câmaras municipais: em 2016 somente 389 mulheres chegaram à vereança (13%), em comparação a 2.509 vereadores (87%). Já em 2020, foram 506, o que equivale a 17,5% do total de vagas.

O MonitorA é um observatório de violência política contra candidata nas redes, um projeto da Revista AzMina e do InternetLab, com parceria do Instituto Update. A ferramenta de análise de dados foi desenvolvida pelo Volt Data Lab e os glossários de termos pesquisados foi desenvolvido pela pesquisadora em discurso de ódio Yasmin Curzi. 

O MonitorA conta ainda com a parceria de veículos locais que produzem reportagens sobre violência política com o recorte de seus territórios. Esta matéria, sobre o cenário de Santa Catarina, foi produzida pelo Portal Catarinas. Participam do MonitorA ainda o Marco Zero (BA), a Agência Mural de Jornalismo das Periferias (SP), a Amazônia Real (PA) e o BHAZ (MG).

Pelo InternetLab, o MonitorA é uma das frentes do projeto Reconhecer, Resistir e Remediar, uma parceria com a organização indiana IT for Change, financiada pelo IDRC (International Development Research Center), para pesquisar manifestações e problemas no enfrentamento ao discurso de ódio online contra mulheres no Brasil e na Índia.

Expediente da reportagem:
Redação: Morgani Guzzo
Produção: Inara Fonseca, Juliana Rabelo, Morgani Guzzo e Vandreza Amante
Revisão/Edição: Paula Guimarães

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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