A 58ª Sessão da Comissão sobre População e Desenvolvimento (CPD) da ONU, realizada em abril, em Nova York (EUA), terminou sem a aprovação de uma resolução final. Criada para monitorar a implementação do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, a CPD é um dos principais espaços globais de negociação sobre direitos sexuais e reprodutivos.

Neste ano, o tema central dos debates foi a saúde, intitulado “Garantir vidas saudáveis e promover o bem-estar para todas as pessoas, em todas as idades”. De 7 a 11 de abril, os países se reuniram para tentar reafirmar compromissos internacionais nessa área, mas as negociações foram travadas por obstruções dos Estados Unidos e da Argentina, que demonstraram resistência a temas como direitos sexuais e reprodutivos, gênero e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A principal justificativa apresentada, especialmente pelo país norte-americano, foi a defesa da soberania nacional. Segundo os EUA, referências a direitos sexuais e reprodutivos e à Agenda 2030 comprometeriam a autonomia dos Estados e, por isso, não deveriam constar no documento final da Comissão. 

Segundo Marina Rongo, da Conectas Direitos Humanos, a decisão de encerrar a sessão sem uma resolução foi estratégica.

“Diante da possibilidade de termos uma resolução fraca, acreditamos que essa foi a melhor saída, apesar de ser frustrante lidar com visões que querem retroagir conquistas alcançadas há mais de 30 anos nesse espaço”, afirma.

A postura ultraconservadora dos dois países reflete o cenário político interno de ambos. Nos EUA, Donald Trump tem impulsionado retrocessos ao desmantelar políticas de diversidade, equidade e inclusão, com foco particular em atacar pessoas trans. Enquanto na Argentina, o governo de Javier Milei tem promovido cortes em políticas públicas de saúde e direitos das mulheres, além de rejeitar compromissos multilaterais sobre igualdade de gênero e saúde reprodutiva.

Apesar do impasse, Letícia Vella, advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, destaca a importância de manter a presença da sociedade civil nesse espaço internacional:

“A CPD é um espaço bastante estratégico para que o movimento feminista brasileiro mantenha uma atuação continuada. Não é um espaço para estar apenas em um ano; é preciso uma incidência contínua, permanente e insistente, para que a gente dispute as linguagens desses documentos internacionais, evite retrocessos e consiga algum tipo de avanço no campo dos direitos, no nosso caso, dos direitos reprodutivos”, analisa. 

Criança Não É Mãe 

A sociedade civil pode participar das sessões da CPD por meio de discursos formais — espaço que também pode ser ocupado por movimentos antiaborto. Por isso, é fundamental disputar narrativas e impedir que uma visão antidireitos prevaleça no debate.

Em sua fala, Marina Rongo chamou atenção para o cenário alarmante da gravidez infantil no Brasil, destacando, com base em dados, as barreiras no acesso a direitos e os riscos à vida e à saúde dessas meninas:

“No Brasil, mais de 13 mil meninas de 10 a 14 anos, vítimas de violência sexual, deram à luz em 2023. Os dados também revelam um trágico cruzamento entre violência sexual e racismo estrutural, já que 75% das meninas que se tornaram mães no país em 2021 eram negras. Apesar de o aborto ser legal nesses casos, estima-se que, entre 2015 e 2020, menos de 4% das meninas estupradas tiveram acesso aos serviços de aborto legal”, destacou.

O apelo foi feito em nome das organizações Conectas Direitos Humanos, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Campanha Nem Presa Nem Morta, Ipas – Parceiros por Justiça Reprodutiva, Cladem Brasil, Grupo Curumim e Portal Catarinas.

Ainda com o objetivo de dar visibilidade à essa realidade, as organizações realizaram o evento paralelo “Construindo um Futuro Digno para Meninas: enfrentando a violência sexual e a gravidez forçada no Brasil”, no âmbito da campanha Criança não é mãe. O evento discutiu o panorama da gravidez na infância e adolescência sob a perspectiva da saúde integral e dos direitos reprodutivos, além de apresentar estratégias para reduzir desigualdades no acesso à saúde.

Participaram da atividade Beatriz Galli, da Ipas, e Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta, que abordaram especificamente casos de meninas que se tornaram mães e vêm sendo acompanhadas pelas organizações, além das ações desenvolvidas pela campanha.

Também estiveram presentes Richarlls Martins, presidente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento do Brasil; Sandra Castañeda, integrante da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe (RSMLAC), que compartilhou a história da construção da sociedade civil latino-americana dentro da CPD; e Maria Fernanda Perico, do Centro de Direitos Reprodutivos, que apresentou a experiência da campanha Niñas No Madres, iniciativa latino-americana que inspirou a campanha brasileira e abre caminhos para o fortalecimento das trocas de estratégias e articulações regionais.

Comissão representa marco para movimentos feministas

A Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) é um órgão da ONU criado para monitorar a implementação do Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994. A conferência foi um marco ao deslocar o foco do controle populacional para a promoção dos direitos humanos, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos, a igualdade de gênero, a redução da mortalidade materna e infantil e o empoderamento de mulheres e meninas.

Desde então, a CPD se reúne anualmente em Nova York para:

  • Avaliar os avanços e desafios na implementação do Programa de Ação do Cairo;
  • Promover o diálogo entre Estados-membros sobre saúde, educação, migração, direitos reprodutivos e desenvolvimento sustentável;
  • Atualizar compromissos internacionais diante de novos contextos sociais e políticos.

“Sem dúvida, foi uma das maiores conquistas do movimento feminista na agenda global. É nossa responsabilidade proteger e avançar essas garantias, especialmente trazendo mais interseccionalidade e medidas antirracistas para as resoluções adotadas”, afirma Marina Rongo.

A CPD é reconhecida como um espaço estratégico para fortalecer os direitos sexuais e reprodutivos no cenário internacional. Segundo Letícia Vella, desde a Conferência do Cairo os países passaram a assumir compromissos progressistas em torno dessa pauta.

Cada sessão define um tema central para orientar os debates que são abordados de maneira transversal. Para as organizações brasileiras presentes, a conferência foi uma oportunidade de dialogar com outros países, reforçar a defesa dos direitos reprodutivos e fortalecer articulações internacionais. 

“Foi um momento importante para trocar experiências com outras organizações, não só brasileiras ou latino-americanas, mas também de outras regiões, que há bastante tempo vêm incidindo nesse espaço. Tudo com o objetivo de garantir o que a gente já conquistou desde 94, impedir retrocessos e, se possível, promover avanços”, explica Vella. 

Ela também avalia que o Brasil teve um papel de protagonismo nas negociações, com discursos progressistas em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, alerta para a necessidade de alinhar suas políticas de saúde aos seus compromissos internacionais:

“O compromisso foi assumido nos discursos, mas ainda precisa se refletir na prática. Internamente, vimos resistência do governo federal, como na votação contrária à Resolução do Conanda, que busca garantir o acesso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ao aborto legal. Se o Brasil se compromete nesses espaços, é fundamental que implemente essas políticas na vida real de mulheres, meninas e pessoas que podem gestar”, defende.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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