A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado El Salvador por violar os direitos humanos e cometer violência obstétrica ao negar o acesso ao aborto em caso de risco à vida. O caso remonta a 2013, quando Beatriz, uma jovem grávida de alto risco com diagnóstico de anencefalia fetal, solicitou a interrupção voluntária da gravidez, procedimento recomendado por médicos para preservar sua saúde. Contudo, devido à criminalização total do aborto no país, o pedido foi recusado. Organizações feministas e a família de Beatriz lutaram por anos por justiça para a salvadorenha, que morreu em 2017 após um acidente de trânsito.
“A Corte considera que a saúde de Beatriz foi colocada em risco porque não havia protocolos claros de atuação em um caso como o dela. Isso também envolveu uma situação de violência obstétrica contra Beatriz e a sujeitou a uma profunda angústia que afetou seu direito à integridade física”, diz trecho da sentença.
A sentença classifica o caso como violência obstétrica porque “Beatriz não recebeu cuidados adequados para salvaguardar sua saúde”, considerando suas doenças pré-existentes e o fato de que não havia nenhuma chance de sobrevivência para o feto. O documento também destaca que Beatriz foi forçada a esperar por decisões sobre seu tratamento, as quais dependiam de autorizações administrativas ou judiciais. Esse processo lhe gerou profunda angústia e fez com que permanecesse internada por 81 dias.
Por isso, a sentença considera que houve “tratamento desumanizado e sem uma perspectiva de gênero da paciente num momento de particular vulnerabilidade como é o atendimento de uma gravidez com alto risco à vida e à saúde”.
O caso foi levado à Corte pela Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto, pelo Coletivo Feminista para o Desenvolvimento Local (CFDL), pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e pelo Ipas – América Latina e Caribe. A família de Beatriz também participou ativamente da luta por justiça pela jovem, que faleceu em 2017, após um acidente de trânsito.
Decisão da corte
A Corte define que a falta de certeza, segurança jurídica e protocolos de ação foram as causas das violações dos direitos de Beatriz à saúde, à integridade pessoal, à vida privada e ao acesso a recursos judiciais eficazes.
“A falta de segurança jurídica quanto à abordagem da situação de Beatriz obrigou à burocratização e judicialização do seu caso”, indica a decisão. Embora não recomende mudanças na legislação de El Salvador sobre o aborto, a sentença define que o Estado deve “proporcionar diretrizes e guias de atuação ao pessoal médico e judicial diante de situações de gravidez que coloquem em risco a saúde e a vida da mulher”. O prazo para o cumprimento é de um ano a partir da notificação da sentença.
“Consideramos que a sentença fez justiça à Beatriz e sua família, ao reconhecer o sofrimento a que foram submetidos”, compartilha Morena Herrera, integrante da Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto e Coletiva Feminista para o Desenvolvimento Social.
“Na petição que enviamos à Corte, não pedimos explicitamente a mudança da legislação, mas a mudança de normativas que adequem as políticas ao guia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para atender situações relacionadas ao risco à saúde, à vida e à integridade pessoal de quem necessita de um aborto, além de garantir segurança jurídica para profissionais de saúde e pacientes”, explica Herrera.
Indenização à família
A sentença também reconhece a violação dos direitos à integridade de Beatriz, de seu padrasto, companheiro e filho. Além disso, a Corte determina que o Estado forneça, de forma imediata e gratuita, tratamento médico, psicológico e/ou psiquiátrico especializado à família, por meio de instituições de saúde.
Leia mais
- Chuva e caos: a falta de planejamento urbano e políticas de prevenção em SC
- O que é a machosfera e como ela afeta a vida das brasileiras
- PEC 164 supera o PL 1904 em ataques aos direitos reprodutivos
- A PEC 164/12 e a criminalização do aborto em todas as circunstâncias
- Filmes para debater o aborto que você pode assistir em streamings
A Corte ainda ordena que o Estado indenize a família pelos danos causados, no valor total de 75 mil dólares americanos, a moeda oficial de El Salvador, divididos entre os familiares:
- 25 mil dólares em favor de Beatriz, cuja quantia deverá ser distribuída e entregue em partes iguais à mãe e ao filho de Beatriz;
- 15 mil dólares em favor da mãe de Beatriz;
- 20 mil dólares em favor do filho de Beatriz;
- 10 mil dólares em favor do companheiro de vida e pai do filho de Beatriz;
- 5 mil dólares em favor do marido da mãe de Beatriz.
Situação do aborto em El Salvador
Catalina Martínez Coral, vice-presidenta para a América Latina e Caribe do Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights, no original), organização que atuou como amicus curiae no caso, enfatiza que a sentença reconhece o aborto em casos como o de Beatriz como um tratamento essencial.
“A corte considera que negar esse tratamento, como aconteceu com Beatriz, é uma violação aos direitos humanos, porque a expôs a uma situação de violência obstétrica e falta de acesso à saúde”, complementa.
Porém, a vice-presidenta defende que é urgente uma mudança na legislação do país.
“Os protocolos e diretrizes podem ser adequados, mas se a lei segue sendo adversa, isso seguirá sendo um obstáculo”, coloca.
El Salvador tem uma das legislações mais restritivas em relação ao aborto em todo o mundo. Em 1997, o Código Penal do país foi reformado, estabelecendo a proibição absoluta da interrupção da gravidez. Desde aquela data, organizações denunciam a perseguição de mulheres que sofrem uma emergência de saúde durante a gravidez.
Conforme o Centro de Direitos Reprodutivos, pelo menos 181 mulheres foram criminalizadas entre 2000 e 2019 em El Salvador por emergências obstétricas ou abortos. Hoje 9 mulheres continuam processadas por esses motivos e 2 delas estão presas, segundo dados do Observatório Manuela.
Impacto da decisão
O Caso Beatriz vs. El Salvador foi alvo de desinformação ao longo dos últimos anos, com mensagens que argumentavam que o caso era montado por movimentos pró-aborto. “A sentença reconhece que o caso de Beatriz é real, que não era falso como quiseram argumentar. A decisão afirma que ela esteve submetida a graves violações de direitos humanos”, destaca Herrera.
A corte é parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), integrada por 35 países, incluindo o Brasil, e suas decisões têm efeito sobre todos os países membros. Nos últimos anos, a região foi marcada por avanços e retrocessos relacionados ao aborto, como a descriminalização na Argentina e na Colômbia, e a queda do Roe vs. Wade nos Estados Unidos.
Herrera ressalta que a sentença do caso Beatriz é uma ferramenta que pode ser aplicada em outros países, principalmente como a Corte reconheceu o acesso ao aborto terapêutico como um serviço essencial de saúde.
“É sobre isso que se trata, estabelecer claramente que os abortos são serviços de saúde pública que devem ser prestados com total garantia, tanto para a equipe de saúde, como para as pessoas grávidas”, define.
História de Beatriz
Beatriz se tornou mãe aos 21 anos. De uma zona rural, a jovem vivia em extrema pobreza. A primeira gravidez foi de alto risco, devido à anemia grave, artrite reumatoide, hipertensão arterial, pré-eclâmpsia e lúpus, agravados com nefropatia lúpica. O bebê nasceu prematuro e de cesárea. Beatriz só pode conhecer o filho após 38 dias de internação.
Quando o filho tinha apenas 9 meses, Beatriz engravidou novamente. Naquele momento, o corpo da jovem era menos capaz de suportar e levar a gravidez até o fim. Além disso, desde o início, os médicos diagnosticaram que o feto tinha malformações e que não havia chance de vida após o nascimento. A equipe médica concordou ser necessário interromper a gravidez, porque todos os dias o estado de saúde de Beatriz, já prejudicada pela primeira gravidez, se agravava.
Em 2013, a história de Beatriz mobilizou a atenção pública em diferentes países e regiões do mundo, ao evidenciar a situação vivenciada por mulheres salvadorenhas. A recusa do Estado em tornar as leis relacionadas ao aborto mais flexíveis e falta de vontade política e ação imediata para evitar efeitos diretos sobre Beatriz, desencadeou pressões sociais nacionais e internacionais.
Apesar dos pareceres médicos que desde o início estabeleceram a interrupção gravidez como procedimento imediato para salvaguardar a vida de Beatriz, o Estado salvadorenho recusou-se a autorizar o aborto. Beatriz foi forçada a continuar com a gravidez inviável por quase mais 3 meses, à custa da perda de saúde.
Em 8 de outubro de 2017, Beatriz faleceu após um acidente de trânsito. As organizações que apresentaram o caso argumentaram que o estado de saúde das doenças pré-existentes agravadas pela segunda gravidez, intensificaram as consequências do acidente. Porém, a sentença considera que “não há prova clara e conclusiva que permita estabelecer um nexo de causalidade”.