“Iemanjá vivia sozinha no Orum. Ali ela vivia, ali dormia, ali se alimentava. Um dia, Olodumare decidiu que Iemanjá precisava ter uma família, ter com quem conversar, comer, brincar, viver. Então o estômago de Iemanjá cresceu e cresceu e dele nasceram todas as estrelas. Mas as estrelas foram se fixar na distante abóbada celeste. Iemanjá continuava solitária. Então, de sua barriga crescida nasceram as nuvens. Mas as nuvens perambulavam pelo céu até se precipitarem em chuva sobre a terra. Iemanjá continuava solitária. De seu estômago nasceram, então, os orixás, nasceram Xangô, Oiá, Ogum, Ossaim, Obaluaê e os Ibejis. Eles fizeram companhia a Iemanjá.”

Trecho do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi

Iemanjá ou Rainha do Mar é considerada a mãe de todas/os/es. No dia dois de fevereiro, a orixá é homenageada em uma das festas mais importantes das religiões de matriz africana. Na capital catarinense, desde 2021, a celebração entrou para o calendário oficial do município, que também faz alusão à Nossa Senhora dos Navegantes, santa católica com a qual sofreu sincretismo em diversas regiões do Brasil. 

A praia do Campeche, no Sul da Ilha, foi um ponto de encontro de centenas de pessoas que queriam agradecer e oferecer presentes à Inaê, como também é conhecida. O evento “Presente de Iyemoja 2023”, organizado pelo Ilê Axé Omi Olodo Tolá, começou por volta das 16h com uma programação cultural que incluiu o bloco de samba-reggae Cores de Aidê, o Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô, o Samba para Iyemoja e a tradicional Feira Afro Artesanal. 

“O Presente de Iyemojá é realizado há mais de duas décadas. E, neste formato de evento, chamando todas e todos, desde 2017, ano que Iyemojá mandou chamar seus filhos e decidimos convidar os que têm a mesma frequência com o mar, as águas e o axé”, afirma a Iyaloriṣá do Ilê Axé Omi Olodo Tolá, Adriana Leke.

O ponto alto da cerimônia foi a entrega das oferendas e presentes para a orixá na praia e no mar. Ao som de sambas de terreiro e músicas populares que fazem alusão à divindade, a multidão fez um cortejo de um quilômetro até a areia da praia com o presente: um barco repleto de flores, frutas e oferendas biodegradáveis.

“Celebrar Iyemojá também é um ato político para fortalecer a luta contra o racismo e a intolerância religiosa. Chamar a sociedade para celebração e sentir alegria, harmonia e devoção nos faz sentir que estamos no rumo certo para a construção de paz entre todos os seres”, comenta a Iyaloriṣá

Nos últimos anos, uma imagem de Iemanjá localizada na praia da Armação do Pântano do Sul sofreu ao menos quatro depredações. Na última vez, em maio de 2022, a escultura foi encontrada quebrada, com a cabeça arrancada e as oferendas destruídas. Os episódios recorrentes culminaram em atos contra a intolerância religiosa.

Integrantes do Ilê Axé Omi Olodo Tolá conduziram os rituais. Imagem: Fernanda Pessoa

Homenagem à Iemanjá levanta debate sobre diversidade religiosa

A partir da justificativa da inclusão do dia de Iemanjá no calendário da cidade, através de um projeto de autoria da vereadora Carla Ayres (PT), a organização, também com o apoio do mandato da parlamentar, demandou um apoio institucional para a realização deste evento, o primeiro a ser realizado pós-pandemia de Covid e aprovação desta lei. 

“Conseguimos o apoio para as tendas, a liberação do espaço público e ajuda da guarda ambiental para colocar o presente no mar”, contou a legisladora. Ela aproveitou a oportunidade para debater com o poder executivo a importância de dar protagonismo e apoio à Festa de Iemanjá, assim como a outras festividades religiosas tradicionais, como a Procissão do Senhor dos Passos e a Festa do Divino. 

Em 2017, o estudo “Territórios do axé – Religiões de matriz africana em Florianópolis e municípios vizinhos”, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mapeou a existência de mais de duzentas casas religiosas de mari africana na região da Grande Florianópolis, 109 estavam na Capital. 

“Queremos que, cada vez mais, essas festividades cresçam e, quem sabe, possamos fazer um único ato na nossa cidade, que tenha a participação das pessoas, das cidadãs e dos cidadãos, dos populares, que seja um fato turístico, que movimenta a economia, principalmente a afrocentrada, que tenhamos isso como algo importante, como é em várias outras capitais do país, a exemplo de Salvador e do Rio de Janeiro”, diz a vereadora, que é candomblecista. 

Bênçãos e agradecimentos eram depositados junto aos presentes para a orixá. Imagem: Fernanda Pessoa

Anteriormente, o ex-vereador Lino Peres apresentou um projeto de lei propondo que a data fosse feriado municipal, no entanto a proposta foi rejeitada. Nesta quinta-feira, a vereadora Cíntia Mendonça (PSOL) anunciou ter protocolado um projeto de lei com a mesma finalidade.

“A proposta de alteração à Lei nº 832 de 27.06.67 pretende contemplar os anseios da população florianopolitana que dedica o dia 2 de fevereiro a prestar homenagens à Rainha do Mar, para uns Iemanjá e para outros Nossa Senhora dos Navegantes. Ou seja, a data é importante tanto para o catolicismo, como para as religiões de matriz africana, fazendo parte da cultura de Florianópolis, uma cidade cercada pelo mar, com grande parte de seu território (97,23%) situado na ilha de Santa Catarina, sendo que a parte continental do município é também, obviamente, litorânea. Dessa forma, grande parte da população é grata, saúda e considera o mar sagrado”, justifica a vereadora na proposta.

Pelas redes, a recém empossada parlamentar Tânia Ramos (PSOL) exaltou a celebração e a importância de reconhecê-la. “Essa é uma festa religiosa muito importante em nossa cidade – que por ser uma ilha, muito deve à Mãe das Águas. Orixá mais cultuada no país, protetora dos pescadores, das crianças e das gestantes. O Dia de Iemanjá pede um lugar de destaque no calendário de Florianópolis. Valorizar essa festa é valorizar as religiões de matriz africana, que possuem tantos fiéis em nossa cidade”, defendeu Tânia.

A protagonista do dia 2 de fevereiro, a grande mãe Iemanjá. Imagem: Fernanda Pessoa

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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