Há vinte e cinco anos eu iniciava a imersão num sem-fim de fontes de pesquisa, as quais diziam-me de uma “outra guerra” que até então desconhecia. À medida que abria caixas de processos instaurados pelo Tribunal de Segurança Nacional, compulsava documentos oficiais, jornais, cartas, fotografias, relatórios paroquiais, dentre outros, também ouvia relatos de pessoas que viveram no tempo da guerra, mais evidências apareciam da real existência de guerra interna que, mesmo sem canhões nem trincheiras, colocava “eixistas” contra “nacionalistas”. Estas fontes e relatos diziam-me das tensões vividas pela população nas relações cotidianas dos anos finais da década de 1930 e início dos anos 1940 no estado de Santa Catarina durante a Segunda Guerra Mundial.

Saiba mais sobre o lançamento.

Do original como tese de doutoramento defendida em 2002 na Universidade Federal de Santa Catarina, o livro recebeu a 1ª edição em 2004 e, no ano seguinte, com a 2ª edição, o livro recebeu o prêmio Lucas Alexandre Boiteux – História”, concedido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.

Esta 3ª edição mantém a escrita original das edições anteriores, revisada, ampliada e atualizada às pesquisas sobre o crescimento da extrema direita e das manifestações nazifascistas nos últimos anos. No texto original o tema das células nazistas, assim como o da ascensão da extrema direita, não foi um problema de pesquisa à época, não que não existissem eventos isolados, mas porque não eram tidos como ameaça, e logo eram esquecidos.

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Crédito: divulgação.

No contexto anterior à Guerra Mundial (1939-1945), entre 1928 e 1938, no Brasil, o Partido Nazista, fundado em Timbó (SC), foi o maior grupo partidário fora da Alemanha, com 2.900 integrantes, funcionando em 17 estados brasileiros. Integrantes deste partido faziam passeatas, ostentavam seus símbolos e conviviam na sociedade entre seus pares.

Getúlio Vargas, temeroso das forças políticas crescentes, fez acontecer o Golpe do Estado Novo em novembro de 1937 e, com isso, coloca na ilegalidade partidos ou agremiações, fossem de nazistas, integralistas e, claro, com feroz perseguição aos comunistas. Com o advento de Segunda Guerra, muito embora Vargas até então flertasse abertamente com o nazismo, foi pressionado e tomou o lado dos Aliados, empreendendo feroz campanha através de aparato repressivo contra os “súditos do Eixo”, como denominavam aqueles que defendessem a Itália, Alemanha e Japão. 

Santa Catarina foi alvo de forte repressão pela polícia política e houve prisões de alemães e italianos de origem e muitos destes foram confinados em campos de concentração (em Joinville e Florianópolis), especialmente aqueles que eram partidários do nazismo, processados pelo Tribunal de Segurança Nacional.  Pouco antes do armistício, em maio de 1945, estes presidiários usaram do expediente que lhes concedia pedidos de perdão para crimes políticos através do Conselho Penitenciário do Estado (também nos outros Estados), sendo anistiados e liberados.

Anos depois, estes ex-prisioneiros voltaram às esferas pública e política, eleitos para cargos no legislativo e executivo e, alguns estiveram envolvidos nas redes de relações dos golpes militares na América do Sul1. Juntaram-se a estes confessos nazistas e que vieram camuflados (com a ajuda de empresários estabelecidos na América, de bispos católicos e com documentos falsificados) fugindo da perseguição na Alemanha do pós-guerra.

Na leitura do livro revelam-se detalhes dos acontecimentos mais ordinários vividos durante os anos da nacionalização e da guerra. Dentre os documentos analisados, encontrei muitas cartas de mulheres implorando pela soltura de seus maridos detidos nos campos de concentração.

São cartas lamentosas na tentativa de provar que seus maridos eram inocentes, ao que recorriam aos papéis dos homens como provedores cuja ausência colocava a família em risco, implorando clemência ao “bondoso coração do presidente” em nome da família, dos filhos e da pátria. Sabiam elas do envolvimento dos maridos no Partido Nazista? Suponho que sim. 

As fontes históricas revelam silêncios, medos, revanchismos, intervenções, demissões, expropriações, resistências às perseguições, o envolvimento do clero católico e evangélico, as ações da polícia política, censura e outras práticas para eliminar o que chamavam de “quistos étnicos”.  Todavia, às afirmações de pertencimento à pátria de origem, da germanidade e juramentos de fidelidade ao líder alemão e a sua ideologia ficam evidentes nas narrativas, mostrando que o nazismo estava presente, manifesto e vivenciado no seio das famílias.

“A Alemanha de Hitler resgatava e oficializava o sentimento de ‘pertencimento’ do povo alemão à nação alemã, cujas origens remontam ao pangermanismo e ao antissemitismo eliminacionista germânicos manifestos desde a segunda metade do século XIX”, afirma a historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro.

Ao compulsar depoimentos dos presos políticos nos processos do Tribunal de Segurança Nacional, observei que, mesmo sob pressão, muitos interrogados mantinham a crença na sua superioridade da raça alemã e juravam fidelidade ao Führer reafirmando sua germanidade ou a italianidade. 

O que viria depois? Busco analogia ao ovo da serpente que, hoje, continua oportuna, infelizmente. A frase dita no filme O ovo da serpente2 foi utilizada como a prenunciar o “mal em gestação” que crescia nos anos que antecederam o nascimento do nazismo. “É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, você pode claramente discernir o réptil já perfeito”, nas palavras do Dr. Vergerus, um médico dedicado a fazer experimentos com o cérebro das pessoas e ter sobre elas o controle das mentes.

A História tem mostrado que, de tempos em tempos, estes ovos germinam em condições propícias, alimentados pelo ódio. Um desses tempos é hoje. Estava dado. Ideários de pureza racial, meritocracia, extremistas, supremacistas, misoginia, militarismo, armas, família, deus e pátria avolumam-se em escala mundial vomitando sem escrúpulos o desejo de domínio dos povos. 

A antropóloga Adriana Dias comprovou que, no Brasil, a ligação do ex-presidente da República, ainda em 2004, mantinha sua base composta por neonazistas. Observa que o ódio é cultivado sobre um tripé: a meritocracia, ou a crença de que os mais aptos têm direitos conquistados, a ideia de que os brancos merecem este lugar e qualquer estranho à sua cor da pele é usurpador de seus privilégios e, portanto, inimigo a ser eliminado, e a misoginia que desqualifica e propala o ódio às mulheres. No Brasil, a ascensão de um governo o notoriamente engajado às ideologias nazistas compõe este cenário 

Muitas são as especulações em torno da pergunta: por que o estado de Santa Catarina lidera o avanço do neonazismo no Brasil? Com apenas 3% da população brasileira, de 2021 para 2022, o número destes grupos extremistas identificados mais que dobrou, com 320 células ativas. Isto representa mais de um quarto dos 1.117 grupos catalogados no país. Blumenau, em julho de 2023, estava entre as cidades com maior número de agrupamentos neonazistas do Brasil e, em abril de 2024, constam 63 células (aproximadamente 30%) neonazistas em Blumenau, conforme relatório da Organização das Nações Unidas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos

Não, o fascismo e o nazismo não desapareceram mesmo com a tentativa governamental de extirpar o ideário nos anos da Segunda Guerra. Espraia-se sem nenhum pudor e, se com outras roupagens, reaviva discursos contra o comunismo, o feminismo, o socialismo, os direitos humanos e as formas democráticas de representação política.

Abriga-se na defesa de um único deus com a cor nórdica, uma pátria militarizada e uma única forma de família, patriarcal, branca, heterossexual, banindo todas as diferenças com fúria e violência. 

Ódios são reativados e reproduzidos em tempo real – quem se beneficia? O capitalismo alimenta-se da destruição de formas coletivas, representativas e democráticas, cooptando mentes as quais revertem-se em moedas que favorecem usos políticos e controle de máquinas na produção desenfreada de mentiras. Reproduzir e fomentar os ódios é a verdadeira face do capitalismo. Bertold Brecht já alertava que “o fascismo não é o contrário da democracia burguesa, é a sua evolução em tempos de crise.”

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Crédito: reprodução.

Escrever sobre as relações no cotidiano quando da guerra e, neste caso, os acontecimentos narrados por pessoas de Santa catarina, mostra a dimensão de como o nazismo se espraiou no anos de 1930 no Brasil e como, hoje, é ressignificado nas práticas violentas e excludentes. Violências políticas de gênero são aviltantes com mulheres eleitas para a esfera pública política e que vem sofrendo violência política de gênero. A presidenta Dilma Rousseff deposta, a vereadora Marielle Franco assassinada, a vereadora Maria Tereza Capra, de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, teve seu mandato cassado, esta última, pasmem, por denunciar uma manifestação notadamente neonazista em novembro de 2022. Para citar algumas.

Todavia, neste estado de Santa Catarina há resistências, e generalizações são inóspitas à historiografia. Estudos mostram que, do contingente de alemães e italianos, somente 3% aderiu ao Partido Nazista naqueles anos.

Hoje, se a grande maioria de eleitores deste Estado escolheu, nas urnas, um projeto de governo que flertava abertamente com o neonazismo, uma parte consciente da sociedade pousou confiança na democracia e depositou ali suas esperanças, mostrando que este Estado não é nazista, embora grupos neonazistas façam estragos.  

 Personagens que se movem neste livro, pelo menos aqueles em idade adulta à época, não estão mais vivos e nada mais podem contar. Alguns sobreviventes, hoje octogenários ou mais velhos, eram crianças. Como foram educados? Quanto desta educação surgiu em defesa do ideário nefasto nos recônditos dos lares? Não sabemos. Conjecturemos. 

“A história nunca se repete, mas ela rima”

– Mark Twain

Notas de rodapé

1 – Uki Goni. A verdadeira Odessa: o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Rio de Janeiro: Record, 2004.

2 – O ovo da Serpente”, filme dirigido por Ingmar Bergman, em 1977. Filme estadunidense e alemão, produzido por Dino De Laurentiis, dirigido por Ingmar Bergman, editado por Petra von Olffen, trilha sonora de Rolf A.  Inspirado na tragédia de Shakespeare que,  ao aderir à conspiração contra o ditador Júlio César, Brutus o compara a “um ovo de serpente, que, uma vez chocado, por sua natureza, se tornará nocivo, razão pela qual deve ser morto quando ainda na casca”. Em 1977, inspirado na fala shakespeariana, o cineasta sueco Ingmar Bergman deu o nome de O Ovo da Serpente a um filme que mostra o início da ascensão do nazismo na Alemanha. Desde então, a expressão tem sido usada para se referir a movimentações de cunho nazifascista.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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