O governo brasileiro anunciou que deixou o Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família, uma aliança internacional que une países antiaborto. O governo de Jair Bolsonaro, que assinou a declaração, a usava como instrumento para restringir menções a direitos sexuais e reprodutivos em documentos discutidos em fóruns multilaterais.
“O Brasil considera que o referido documento contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família e pode comprometer a plena implementação da legislação nacional sobre a matéria, incluídos os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”, aponta uma nota conjunta assinada pelos Ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, das Mulheres e dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O Consenso diz que a família considerada tradicional – formada por um homem, uma mulher e filhos – está sob ataque, e que o embrião deve ser protegido desde a concepção e o aborto combatido. Assim, contraria o princípio de universalidade do SUS, que garante que todo e qualquer cidadão tenha direito e acesso à saúde; e despreza o direito ao aborto legal, previsto no Código Penal brasileiro desde 1940.
Para Amanda Nunes, advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e do projeto Cravinas (Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília), a decisão é um marco do rompimento com a política autoritária de Jair Bolsonaro na esfera internacional.
“O documento passava aos demais países a mensagem de que o Brasil não respeita os direitos de mulheres, meninas e outras pessoas com capacidade de gestar. Passava também uma mensagem de que a esfera onde mulheres e meninas sofrem mais violências, a família, deve ser objeto primeiro de proteção, retirando nossa centralidade como titulares de direitos”, ressalta.
Nunes também destaca que agora o país volta a se alinhar aos seus compromissos de direitos humanos e com a democracia. “Vale lembrar que, diferente de tratados ratificados pelo Brasil que exigem a garantia do direito ao aborto legal, o Consenso não foi incorporado ao ordenamento jurídico pelos processos constitucionalmente previstos, sendo mais uma das medidas antidemocráticas do governo anterior para negar direitos”, recorda.
Manifestações contrárias
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O Consenso de Genebra é uma iniciativa formada por Estados ultraconservadores reconhecidos por violarem os direitos das mulheres e da população LGBTI+. Foi criado em setembro de 2020 por iniciativa dos Estados Unidos, na época governado pelo ex-presidente Donald Trump, e pelo Brasil, sob o governo de Bolsonaro. Da mesma forma que ocorre no Brasil, ainda no primeiro mês de governo, o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, saiu oficialmente do acordo.
Em novembro, mais de 100 organizações comprometidas com os direitos humanos assinaram uma carta pedindo a retirada do Brasil da declaração ao vice-presidente Geraldo Alckmin, coordenador da equipe de transição de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A carta reforçava que “embora não tenha a força de tratados internacionais, a Declaração mancha a trajetória da política externa brasileira em matéria de direitos humanos, principalmente no que diz respeito à igualdade de gênero e aos direitos das mulheres”.
As organizações que assinaram a carta defendiam que a saída do Brasil do Consenso de Genebra seria “uma medida urgente no sentido de conter os efeitos negativos dos ataques da extrema direita global às políticas de igualdade de gênero”.
Brasil assina compromissos pela igualdade de gênero
Além da saída do Consenso de Genebra, o governo brasileiro também anunciou que assinou dois compromissos internacionais pelos direitos das mulheres e pela igualdade de gênero.
Um deles é o Compromisso de Santiago, um instrumento regional de países da América Latina e Caribe para responder à crise da COVID-19 com igualdade de gênero. O compromisso foi adotado em 31 de janeiro de 2020, por ocasião da XIV Conferência Regional sobre a Situação da Mulher da América Latina e do Caribe (CRM/CEPAL).
“Conforme acordado na Estratégia de Montevidéu e no Compromisso de Santiago, deve-se superar a cultura do privilégio e os padrões culturais patriarcais e avançar na construção de uma cultura de direitos e de reconhecimento da diversidade, bem como de uma sociedade do cuidado, para atingir uma igualdade substantiva”, prevê o documento.
O segundo compromisso é a Declaração do Panamá – Construindo pontes para um novo pacto social e econômico gerido por mulheres. O documento foi aprovado pela 39ª Assembléia de Delegadas da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM/OEA), realizada em maio de 2022.
“O Governo entende que o Compromisso de Santiago e a Declaração do Panamá estão plenamente alinhados com a legislação brasileira pertinente, em particular no que respeita à promoção da igualdade e da equidade de gênero em diferentes esferas, à participação política das mulheres, ao combate a todas as formas de violência e discriminação, bem como aos direitos sexuais e reprodutivos”, diz a nota conjunta dos ministérios.