A tarde de chuva e frio por um momento quase impediu que o ato pela legalização do aborto seguisse seu curso em Florianópolis. Houve ponderação sobre cancelamento e possibilidade de alteração da data. Não havia tenda para proteger as manifestantes, tampouco para a estrutura a ser montada. A espera no Mercado Público não foi em vão. Enquanto aguardavam, ativistas saíram a entregar panfletos pelas lojas. O título que ilustrava toda a capa do panfleto “Precisamos falar sobre aborto” parece ter feito sentido para aquelas mulheres, vendedoras. Ao passar pelo corredor foi possível perceber que liam sozinhas ou coletivamente. Uma delas comentou com a colega “olha só, uma em cada cinco mulheres abortam no país”. Foi só o começo dos diálogos.
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O Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe não passaria em branco na capital catarinense. Carregando caixas com panfletos, cartazes, tintas, caixa de som e microfone, manifestantes decidiram manter a atividade e seguiram para o antigo terminal de ônibus, onde havia cobertura. Mesmo assim, o vento com chuva cada vez mais forte entrava por todos os lados, molhava cartazes, varais de zines, e reacendia a dúvida sobre a continuidade do ato.
“O ato foi marcado pela resistência tanto em função do mau tempo quanto pelo tema ser espinhoso. Nas panfletagens foi perceptível que algumas pessoas tinham certa dificuldade, mas dependendo da abordagem entendiam a necessidade de se informar e discutir sobre isso”, avaliou a ativista Morgani Guzzo.
Em meio a olhares surpresos, simpáticos e desconfiados, mulheres e alguns homens que andavam a passos largos no terminal recebiam os panfletos das mãos das ativistas. Foram entregues quase 1500. No material informativo, dados sobre a prática e legislação no Brasil e no mundo. Informações também sobre os direitos das mulheres ao aborto nos casos permitidos por lei. Assim como orientações sobre os direitos à saúde e à informação para aquelas que precisam recorrer à clandestinidade. Houve algumas manifestações contrárias. Poucas, se levar em conta o tabu que o tema representa.
A chegada das mulheres do grupo de Teatro Madalenas na Luta trouxe calor àquele abrigo úmido e gelado. Em uma performance artística, elas lembraram de mulheres mortas por recorrerem ao aborto inseguro. A fila que se formou para esperar o ônibus para o município de Santo Amaro da Imperatriz integrou o público do espetáculo. A cena de uma mulher morta no chão representava as mais de 200 mortes evitáveis por abortamento no país, conforme estima a Organização Mundial de Saúde. Ao final da apresentação, as artistas levantaram a vítima da criminalização em um ato de solidariedade. Palmas vindas das mulheres que formavam a fila do ônibus deram um indicativo da empatia despertada pela encenação.
“A pauta do movimento feminista é muito rica para dialogar com as mulheres e a partir daí ampliarmos nosso entendimento de mundo e que podemos e devemos intervir e participar das decisões que dizem respeito a nossa vida em sociedade. E a arte é um instrumento poderosíssimo para isso, pois potencializa o diálogo”, afirmou Izide Fregnani do coletivo Madalenas.
Motivadas pelo espetáculo e trégua da chuva, as manifestantes voltaram ao ponto de partida: em frente ao Mercado Público, onde seria lançada a Esquina Feminista. Lá, a estrutura foi remontada, com mais cartazes e novo fôlego. Três viaturas da polícia militar estacionaram em frente à nova concentração e ficaram até o encerramento. Alguns policiais tiraram fotos da ação.
“Senti um misto de várias coisas. Achei muito forte todos os momentos e até um fortalecimento mesmo. Ao mesmo tempo que havia uma recriminação por parte das pessoas na rua, quando a gente tava entregando panfletos e tudo mais. E por parte da polícia, né? Eles estavam todos os momentos tirando fotos nossas, coagindo. É uma sensação de clandestinidade só falar sobre. Esse é um assunto que me toca muito, então sempre me emocionam esses espaços”, contou a ativista Melissa Guimarães.
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O ato seguiu com a apresentação do grupo de rappers “Trama Feminina”. Depois de rimas subversivas em letras que contestam a violência do Estado e o machismo da sociedade, as integrantes apresentaram uma performance com as mãos sujas de sangue, representando os discursos criminalizantes que levam mulheres à clandestinidade.
“Você que está passando aqui e nos ouve: essas são histórias de desamparo. Esse nojo, essa culpa vem de quem? Questionam ‘se não quer ter filhos, por que abriu as pernas?’. A gente se sente sozinha, desamparada. Precisamos falar sobre o silêncio e essa solidão”, pontuou uma das manifestantes.
Uma trabalhadora da limpeza, que varria a rua em frente ao Mercado Público e não quis se identificar, tratou logo de dizer que era evangélica e contra o aborto. Mas assim que a conversa seguiu, ela revelou que a nora já havia abortado. “Mas não tínhamos certeza se era do meu filho”, afirmou imediatamente. Ao final do diálogo pautado pelas informações sobre a realidade das mulheres que abortam, pediu para levar informativos a mais para distribuir às colegas.
Na roda de conversa “Precisamos falar sobre aborto”, histórias relatadas no livro “Somos todas clandestinas” foram lidas e experimentadas por aquele coletivo de mulheres em círculo no chão. Mesmo que haja silêncio sobre aborto, o assunto que ecoou daquela esquina, agora oficialmente feminista, não é distante da realidade das mulheres que passavam por ali. Uma a cada cinco brasileiras até os 40 anos já abortou no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2016, isso representa um aborto a cada minuto.
“Eu me posicionava contra, em função da aproximação com a igreja. Mas me afastei um pouco e consegui entender que a igreja nos chama muito pelo medo. Nós não somos a favor do aborto, mas sim da saúde da mulher. A verdade revoluciona totalmente. Passei a enxergar as coisas de forma muita mais nítida. Hoje, entendo que o que é pregado na igreja é totalmente diferente da nossa realidade. Essa conscientização vai me ajudar a compartilhar informação e conhecimento com outras mulheres. E é um tesão estar envolvida com essas mulheres que estão na luta há tempo. Tem sido revolucionário em todos os sentidos”, revelou a jornalista sindical Alana Pastorini que recentemente passou a participar de movimentos de mulheres.
Além de lançar oficialmente a Esquina Feminista, entre as ruas Deodoro e Conselheiro Mafra, a organização do ato deu início ao diálogo para a formação de uma Frente Estadual pela Legalização do Aborto. A necessidade de formar a frente se confirmou nas ruas com a urgência de ultrapassar o tabu. “É urgente e necessária a nossa articulação enquanto frente. Temos que fazer o debate permanentemente, pensar a nossa formação e formas de abordar em diferentes espaços, tirar estratégias e ter táticas para fugir do debate ‘contra ou a favor’. A gente precisa criar uma narrativa que fuja disso. O debate contra e pró inviabiliza qualquer conversa”, defendeu Tania Slongo da Marcha Mundial de Mulheres.
Tania, que passou a tarde a entregar panfletos, conta que ficou surpresa com a receptividade das pessoas. “Achei que teríamos muita resistência, mas pelo contrário houve aceitação e certa curiosidade. Foi muito positiva a nossa organização. É um debate que a gente precisa ganhar os diferentes grupos, precisamos estar muito articuladas, porque o conservadorismo é grande e está organizado”.
A manifestação terminou com a apresentação das cantoras e compositoras Carol Voigt, Letícia Coelho e Renata Swoboda, no bar feminista La Kahlo.