Zine Útero Livre compartilha informação sobre aborto e chama atenção para a violação de direitos
Em 22 de fevereiro, uma mulher de 26 anos, moradora de uma das cidades mais pobres da região metropolitana de Curitiba, buscou atendimento no Hospital Universitário Evangélico, após recorrer a um aborto inseguro. Chegou como emergência médica, mas depois de receber alta, foi levada ao cárcere da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa, onde permaneceu por três dias, até pagar fiança. No mês seguinte, uma mulher de 30 anos chamou a emergência do Samu, em Campo Grande, depois de um aborto espontâneo em casa. O feto de 16 semanas, encontrado sem cabeça no vaso sanitário de sua casa, motivou a escolta policial até o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, onde a paciente continuou vigiada. Por falta de evidências que sustentassem o crime, a prisão em flagrante foi descartada. A mulher tinha um histórico de três abortos espontâneos, e o médico dela já havia alertado sobre o risco de novas situações.
Os casos apurados pelo Portal Catarinas são exemplos do que acontece com mulheres que buscam o serviço de emergência no Brasil, onde a prática do aborto é crime. Em média, a cada minuto uma mulher aborta no país, conforme dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016. As prisões em hospitais só chegam ao conhecimento da sociedade por meio da grande mídia. São noticiadas de forma geral em tom criminalizante, sem atenção à violação dos direitos fundamentais da mulher que deveria ser atendida de forma sigilosa e humanizada.
“Mesmo após a morte por aborto clandestino, há um viés de julgamento. Não há um tratamento da informação numa perspectiva de direitos, da injustiça que aquela morte representa. A grande mídia é a atriz central nessa narrativa de perseguição das mulheres. Viola o direito à comunicação sobre aborto, especialmente das mulheres, e da sociedade que tampouco acessa informação ética sobre o assunto”, afirma Letícia Alves Maione, idealizadora da zine Útero Livre, disponível on-line.
Ao lado de comunicadoras do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, da organização Coding Rights e Agora Juntas, Letícia promoveu recentemente oficinas sobre direito à comunicação, mídia e ao aborto na periferia e centro do Rio de Janeiro. A necessidade de discutir o tema em relação com a mídia e comunicação surgiu a partir de relatos de mulheres em oficinas que trataram da criminalização. Como material de apoio das atividades de formação, a zine Útero Livre, lançada em 2015, foi atualizada neste ano com base em experiências das participantes. A ação é uma forma de confrontar a interdição do direito à informação e, sobretudo, à comunicação.
“A zine tenta diversificar a experiência das mulheres sobre aborto. A ideia é compartilhar informação segura e ética e chamar atenção para o fato de como o direito das mulheres à informação no Brasil está sendo ilegal e cruelmente violado. Existe muita informação manipulada e difusa de forma antiética por parte da grande mídia, de profissionais de saúde e da classe médica, que acaba colocando a vida das mulheres em perigo e que contribui para que a sociedade seja cada vez mais reacionária, intolerante e contrária ao direito ao aborto”, explica a ativista.
Respaldada pelo direito à informação, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, “Útero Livre” traz relatos de mulheres e orientações de como fazer um aborto medicamentoso, além de informações sobre segurança digital. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o método mais seguro para interromper uma gravidez é o aborto com o uso de comprimidos. O medicamento misoprostol, indicado para a prática, é proibido no Brasil, mesmo considerado pela OMS um dos mais elementares para o sistema de saúde de um país.
:: Acesse o manual “Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde”::
“A situação brasileira chama atenção pela gravidade das violações que as mulheres vêm vivenciando com relação ao direito à informação, que é previsto como direito fundamental de nossa Constituição”, alerta a feminista.
A ativista conta em entrevista exclusiva como tem sido sua atuação em defesa do acesso à informação para um abortamento seguro. Letícia é formada em Relações Internacionais, mestranda em Estudos das Mulheres e Gênero e educadora popular. Ela atenta para a importância da distribuição impressa da zine, já que a internet ainda não está no alcance de todas as mulheres.
“Precisamos ousar na comunicação, no debate e nas mensagens, nos debruçar no tema para continuar falando sobre isso com as mulheres e a sociedade. É muito difícil realmente, por toda nossa história de opressão, fazer com que entendam que esse é um direito tão básico das mulheres, um direito que define nossa cidadania”.
Catarinas: Como começou o seu interesse pelo tema do aborto legal?
Letícia: A questão do direito das mulheres ao aborto já era algo que, entre as tantas questões que os movimentos de mulheres e feministas reivindicam, me estimulava e dialogava especialmente com o meu processo de construção enquanto feminista, em 2014, quando comecei a atuar com isso. Lembro de que foi um processo de tomada de consciência e descoberta muito importante para mim quando, durante um debate entre mulheres jovens, no ano anterior, eu tive a compreensão, deu um “estalo” mesmo, que a questão do aborto ilegal era uma profunda questão de injustiça reprodutiva (entendo também que existem várias outras injustiças reprodutivas, entre elas a negação do direito à maternidade que, no Brasil, é exercida sobretudo sobre as mulheres negras). Comecei a pensar, então, que era algo que atinge absurdamente as mulheres pelo fato de que somos nós quem podemos ficar grávidas, e então, do dia para a noite, nossa vida pode sofrer muitas transformações por isso, principalmente, caso não seja nosso desejo seguir com a gravidez. Algo que, aliás, a sociedade deveria entender que é muito natural e normal, o fato de uma mulher desejar não estar ou continuar grávida. É uma grande mentira essa de que engravidou e, consequentemente, vai virar mãe. As gravidezes não chegam ao seu fim por mil motivos, pois assim como uma possibilidade de vida pode começar a se desenvolver durante a gravidez, ela pode também não vingar.
Reivindicamos que as mulheres tenham os meios para viver sua vida reprodutiva de forma saudável e cidadã, tendo acesso a um sistema de saúde e todas as demais condições sociais, políticas, psicológicas e econômicas que reconheçam seu direito de querer ou não ser mãe.
Foi, em 2014, quando morava na Cidade do México, que me aproximei mais da questão porque me interessei em entender melhor e aprender da luta das mulheres na sociedade mexicana. Na capital, o aborto é permitido e possível em hospitais e clínicas públicas de saúde da mulher, mas não no resto do país. Por um lado, reflete a luta e conquista histórica das mulheres pelo aborto legal, mas também acabei vendo como que existe muita desigualdade entre as mulheres que podem acessar ou não o aborto. É evidente que existem grandes entraves e maior criminalização para recorrer a um procedimento de aborto dependendo do local de moradia, da idade, da etnia e da condição econômica das mulheres, no contexto mexicano. Durante esse ano, colaborei com uma organização de juventude e feminista, que trabalha pelo direito ao aborto e justiça social para as mulheres. Elas têm uma linha telefônica de atendimento com informações, que se baseiam em pesquisas científicas e médicas e nas experiências das próprias mulheres. Foi um processo de formação junto a outras mulheres muito intenso do qual pude participar. Grande parte da virada em meu pensamento e olhar sobre o direito ao aborto se iniciou e deu nessa época, graças à experiência coletiva das mulheres no México e dessa organização.
Leia mais
Já no Brasil, meu interesse continuou e se firmou, principalmente durante o processo de organização das mulheres contra o PL 5069 e pela legalização do aborto. Até hoje me somo às várias iniciativas dos movimentos de mulheres e feministas para o avanço desse direito e também desde a minha experiência enquanto educadora popular.
A minha vontade é de seguir trazendo o tema do direito ao aborto para e através do campo da educação popular, porque acho que é onde podemos fazer as várias relações das questões reprodutivas, da injustiça e desigualdade social, do racismo e genocídio negro, das críticas ao modelo político e econômico dominante, da heteronormatividade, desde o cotidiano das mulheres e das subversões que elas têm construído em suas vidas, apesar do sistema opressor.
Catarinas: Os direitos das mulheres à saúde devem ser garantidos mesmo em países com leis restritivas sobre aborto, conforme a OMS e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Sua atuação também busca reduzir os riscos de um aborto clandestino para mulheres?
Letícia: Junto a outras mulheres, o que buscamos fazer é dar foco, entre as várias complexidades que envolvem o direito ao aborto, ao direito à informação sobre o tema. Muita mentira e desinformação são reproduzidas nesse processo e a vida das mulheres depende disso. Então falar sobre o tema criminalizando ou tratando da questão de forma superficial é um problema, não colocar as mulheres como sujeitas que devem contar suas histórias e relatar suas experiências para que a sociedade empatize é outro problema. Não falar sobre o tema, silenciar, não abrir espaço para o direito ao aborto nas mídias é ainda mais um problema. Se compararmos o contexto do Brasil com outros países da América Latina, por exemplo, como Argentina, Equador, e até o México, onde o aborto também não é legalizado, mas não existe proibição da venda do misoprostol, medicamento utilizado para a interrupção da gravidez, nas farmácias, veremos que a situação do Brasil tem especificidades na criminalização e na violação do direito das mulheres ao aborto. Nesses países, as mulheres vivenciam um acesso diferenciado à informação sobre aborto seguro, por exemplo.
Catarinas: O que levou a construção do informativo/zine? A opção pelo imprenso é uma maneira de atingir outras mulheres que não têm acesso às redes?
Letícia: A construção da zine se baseou nessa noção de que temos o direito à informação, como previsto em nossa legislação, e que ao mesmo tempo, dificilmente se encontram algumas informações sobre o direito ao aborto seguro, em português. Informações essas que são resultado de pesquisas científicas e estudos médicos realizados por organizações internacionais e federações de saúde. Com o formato da zine também se busca difundir a experiência de registrar os debates e as próprias experiências das mulheres no direito ao aborto. Zines são muito utilizadas pelas coletivas e movimentos de mulheres e outros movimentos de contestação. É uma forma autônoma de fazer nossa comunicação e qualquer grupo pode fazer. Não precisa ser institucionalizada para produzir uma publicação, uma zine. E sim, existe essa compreensão de que apesar da internet facilitar muitas vezes o acesso às mulheres, está muito longe de ser do alcance de todas. É necessário distribuir a zine fisicamente, e quem puder, imprimir e distribuir. As mulheres precisam ter esse material nas mãos.
Catarinas: Você promove oficinas sobre direito à comunicação e ao aborto. Como tem sido o trabalho?
Letícia: Há algum tempo, em meio a uma oficina sobre a criminalização do aborto, tivemos contato com histórias e relatos de mulheres que nos mostravam os processos muito dolorosos, de perseguição, criminalização e julgamento que passam, após a realização de um aborto. Entre os casos, estavam as histórias da Jandira e Elisângela, que tiveram grande repercussão na grande mídia, junto também com o Caso das Dez Mil, ocorrido em uma clínica do Mato Grosso do Sul, onde a cobertura midiática foi criminosa e antiética.
Ao mesmo tempo, também nos deparamos com contra-relatos produzidos e divulgados pelas mídias alternativas feministas, super importantes, e que nos ajudam a resgatar a história de resistência das mulheres que buscam exercer suas decisões em um Estado e sociedade, que muitas vezes, não reconhece as mulheres como sujeitos de direitos.
Foi então que começamos a ideia de organizar algumas oficinas entorno do tema do direito à comunicação, mídia, e direito ao aborto, após percebermos que a mídia era um agente central na violação do direito da comunicação sobre aborto, especialmente das mulheres, e da sociedade que tampouco acessa informação ética sobre o assunto, na maioria das vezes. Algumas de nossas perguntas foram, por exemplo: Qual tem sido o papel da pequena e grande mídia para o debate e a construção de nossos olhares em relação ao aborto? Que grupos ou espaços alimentam os estereótipos e mentiras sobre o aborto ao longo de nossas vidas, enquanto mulheres, enquanto comunicadoras e feministas? Quais foram nossas experiências que nos aproximaram do aborto?
Catarinas: Como é sua abordagem nas oficinas?
Letícia: Durante essas atividades e oficinas, busco desnaturalizar a forma como o aborto é visto, como nos é imposto de forma preterida sempre, como se fosse algo abominável. Como se não houvesse uma história por trás desse olhar que temos sobre o aborto. Também busco desconstruir alguns mitos, algumas questões de segurança que as mulheres ativistas ou não devem ter em mente em uma sociedade tão criminalizadora, e sobretudo que o direito ao aborto é tão necessário porque circunda tanto a nossa vida, a todo tempo mulheres precisam interromper uma gestação por mil motivos. Por isso, é um assunto que devemos debater muito as suas várias implicações.
Catarinas: Quais as consequências do estigma do aborto na vida das mulheres e da sociedade? Como podemos vencê-lo?
Letícia: Para as mulheres, o estigma traz inúmeras consequências, desde a ameaça direta a nossa vida e saúde. Pois quando uma mulher decide interromper uma gravidez, na maioria das vezes, ela busca colocar essa decisão e necessidade em prática, ainda que com vários riscos. Ela busca dar uma solução para uma gravidez que não deseja e ou não pode dar continuidade. Ela busca exercer seu direito a autonomia reprodutiva, ainda que o Estado não permita e a sociedade não a apoie. As mulheres também sofrem consequências negativas, mesmo após um aborto
seguro. Seja por terem vivido uma experiência realizada na clandestinidade, e portanto, muitas vezes não terem tido a possibilidade de compartilhar ou ter o apoio de pessoas próximas e ou de instituições, experienciando assim o aborto como uma forma de exclusão e isolamento na sociedade. A experiência do aborto, na maioria das vezes, não é
reconhecida como legítima pela sociedade, e dificilmente encontramos referências positivas na vida pública, ou na mídia, por exemplo. O silenciamento da questão e o estigma sobre profissionais de saúde e da medicina que realizam procedimentos ou fornecem algum tipo de tratamento relacionado ao direito ao aborto é outro agravante do estigma.
Mas existe uma outra consequência da criminalização e estigmatização do aborto, que é uma das mais perversas: o racismo e a desigualdade social que ela só ajuda a aprofundar em nossa sociedade. Mulheres de diferentes experiências sexuais, de vida, religiões, cores e idades abortam. Mas dentro dessa diversidade são as mulheres negras, as mulheres mais pobres e mais jovens que têm sido as mais criminalizadas pelo sistema, as com menor acesso ao aborto seguro e à autodeterminação reprodutiva. São as que mais morrem e sofrem ao acessar a emergência do sistema público de saúde e as formas mais precarizadas e desumanas de aborto inseguro.
Dessa forma, a desigualdade entre homens e mulheres aumenta, mas sobretudo a desigualdade para com as adolescentes e jovens negras, que enfrentam as condições de maior restrição econômica também. Por último, basta lembrarmos de algumas reportagens da grande mídia sobre casos de mulheres que morreram por um aborto clandestino: quem eram essas mulheres e como as desumanizaram. Uma sociedade que estigmatiza o aborto, desumaniza as mulheres e mente as suas histórias. Por isso acho muito importante, nós como parte do movimento de mulheres e feminista continuarmos em uma campanha continua, após o 28 de setembro, envolvendo os vários setores da sociedade e exigindo a sua responsabilidade e compromisso com o trabalho de fazer avançar o direito das mulheres ao aborto.