Uma vítima de violência doméstica está sendo acusada de tentativa de homicídio contra o ex-marido após tê-lo atingido com um golpe de faca enquanto se defendia de uma das agressões. Ao longo de oito anos de relacionamento, ela acumulou ao menos seis boletins de ocorrência e diversos prontuários médicos que comprovam a rotina de violência. Por medo desse homem, ela prefere manter sua identidade preservada. 

Apesar disso, o caso vai a júri popular no próximo 6 de setembro pelo Tribunal do Júri de Florianópolis (SC), pois, segundo a defesa da acusada, o Ministério Público de Santa Catarina não entendeu a ação dela como legítima defesa e, sim, como intenção de matar. 

O caso ocorreu na madrugada de 3 de janeiro de 2010, após a mulher retornar de um encontro com a mãe e seus três filhos (de outro relacionamento). Assim que ela chegou em casa, começou a ser agredida na frente do caçula, na época com catorze anos, que tentou intervir. 

“Quando eu coloquei o pé na porta, ele começou a me agredir. Ele me bateu, me jogou, puxou meus cabelos, me chutou. Meu filho entrou na sala, e eu joguei o celular pedindo que ele chamasse a polícia. Nesse momento, o agressor começou a torcer o braço do meu filho. Para me defender e salvar meu filho, peguei uma faca da pia e o feri”, relembra em entrevista ao Catarinas. 

Mesmo ferido, o homem continuou a agredi-la até que fugiu do local após a chegada da mãe da vítima, de vizinhos e da polícia. Ele buscou atendimento médico por conta própria e passou por um procedimento cirúrgico. Foi a mãe dele quem registrou o boletim de ocorrência por tentativa de homicídio, sem mencionar as agressões cometidas pelo filho contra a então esposa.

A mulher também registrou boletim de ocorrência pela violência sofrida, no entanto, as ocorrências tramitaram de forma separada, como se fossem casos isolados. 

Prisão e tornozeleira eletrônica 

Por conta da acusação, ela foi presa em 2016, passou por uma audiência de custódia e foi liberada com o uso de tornozeleira eletrônica, a qual teve que usar por 90 dias. Já as acusações contra seu agressor nunca resultaram em nada. 

“Eu me sinto humilhada por ter que reviver tudo isso: por ter sido presa, usado uma tornozeleira e, agora, enfrentar um júri e vê-lo lá”, desabafa a mulher.

De acordo com o processo, a mulher registrou ao menos seis boletins de ocorrência contra o ex-marido entre 2008 e 2010. Três deles, inclusive o B.O. de janeiro de 2010, geraram uma ação penal e o homem foi condenado em primeira instância a um ano e dezoito dias de detenção, em regime semiaberto. No entanto, a ação prescreveu. Ou seja, o Estado perdeu o direito de punir porque demorou muito para julgar. 

A advogada criminalista Márcia de Moura Irigonhê, que compõe a defesa junto com a advogada Laura Gonçalves Cardoso, afirma que não houve uma busca cruzada pelos boletins de ocorrência no sistema integrado da polícia, o que levou à conclusão de um dos inquéritos apenas com a versão do ex-marido. 

“O poder público falhou ao não realizar essas buscas, pois, uma vez registrado um boletim de ocorrência, a delegacia tem acesso a outros boletins por meio do Sistema Integrado de Segurança Pública. Se chama integrado por um motivo. Essa responsabilidade não deveria recair sobre minha cliente. Mas está havendo uma inversão de valores, e agora é a defesa que precisa buscar e incluir toda a documentação necessária”, afirma a advogada. 

Conforme Irigonhê, as provas de violência doméstica só foram incluídas no processo após a entrada das novas advogadas em julho de 2023. Antes disso, a defesa era feita pela 7ª Defensoria Pública da Capital, designada pelo Estado.

Para a advogada, se tivesse sido feita uma busca do que realmente aconteceu, o caso poderia ter sido conduzido em um único inquérito. A acusada vai responder por tentativa de homicídio simples, a pena varia de seis a vinte anos de reclusão. 

Questionamos a Defensoria sobre o atendimento prestado e a falta do argumento de violência doméstica na investigação, que nos respondeu após a publicação da matéria.

O órgão começou a prestar assistência à mulher em 30 de novembro de 2022, durante a audiência de custódia dela, e atuou até março de 2023, quando a defesa foi assumida pelas atuais advogadas. 

Segundo a defensora pública Fernanda Mambrini Rodolfo, que a atendeu, a Defensoria não teve a oportunidade de abordar questões sobre a alegação de violência doméstica por uma questão de tempo. 

“Nós damos prioridade para casos de réus presos e temos um volume muito grande na Defensoria”, explica. Por conta disso, a defesa foi considerada lenta, e o Poder Judiciário nomeou um advogado para atuar no processo, substituído posteriormente pelas atuais advogadas. 

“Não vou tirar a minha responsabilidade porque realmente demorei para apresentar essa peça, mas é uma demora necessária diante do volume de processos e da necessidade de fazermos uma boa defesa”, justifica Rodolfo.

Vítima passou anos fugindo do agressor

A mulher foi denunciada em 2016 e o inquérito permaneceu aberto por seis anos porque, ao desconhecer a existência do mandado de prisão, ela não compareceu à justiça. “Ela não quis ir à delegacia porque estava com medo. Nem nos piores pesadelos ela imaginou que seria acusada de um crime tão grave. Ela achava que estava sendo chamada como vítima”, explica a advogada.

O juiz interpretou a ausência da acusada como uma tentativa de se esquivar da ação penal e emitiu um mandado de prisão. 

A mulher só tomou conhecimento desse mandado em novembro de 2022, ao solicitar a emissão de uma nova carteira de identidade. Na ocasião, foi detida e levada para uma penitenciária, onde permaneceu presa. No dia seguinte, o juiz revogou a prisão, mas determinou o uso de tornozeleira eletrônica por 90 dias e o comparecimento mensal ao Tribunal de Justiça por 180 dias.

“Fizeram eu assinar durante seis meses para provar que não estava fugindo da justiça. Eu não estava fugindo da justiça; eu estava fugindo dele. Estou fugindo dele até hoje”, afirma. Mesmo após cumprir essas medidas, o Ministério Público se opôs à revogação das obrigações, prolongando a situação. “Está realmente havendo um tratamento da minha cliente como se fosse uma pessoa fora da lei”, diz a entrevistada. 

A mulher relata que o medo de ser encontrada pelo agressor mudou completamente sua rotina, impedindo-a de sair sozinha, seja para ir ao trabalho ou ao centro da cidade. Atualmente morando em Florianópolis (SC), ela teme que o ex descubra seu endereço através do inquérito e tem câmeras de segurança instaladas em casa.

“Estou esperando tudo isso acabar para ir embora daqui porque sei que se ele me achar eu corro risco de morte”, confidenciou.

Pedimos ao Ministério Público de Santa Catarina um posicionamento sobre as buscas por registros de violência doméstica, em que a acusada figura como vítima, o tratamento dispensado a ela no decorrer do processo e o protocolo adotado em casos de tentativa de homicídio. Até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.

Relacionamento marcado por abusos e violência 

Ao Catarinas, a mulher relembrou os episódios de abuso e violência que marcaram o relacionamento. Ela conta que conheceu o agressor quando estudava à noite, quando tinha em torno de 24 anos e ele 29, e já no início da relação ele demonstrava comportamentos possessivos que, na época, ela interpretou como tentativa de proteção. 

Com o passar do tempo, esses comportamentos evoluíram para um controle obsessivo sobre todos os aspectos de sua vida. Ele queria saber onde ela ia, com quem falava, controlava sua aparência, impedindo-a de pintar unhas e cabelos, por exemplo, além de lhe isolar de amigos e familiares. Ele lhe dizia para esquecer os filhos e a mãe.

“A primeira vez que ele me bateu eu nunca me esqueço. Eu tinha ido ver minha mãe e os meus filhos e ele sabia disso. Só que quando cheguei em casa ele perguntou: Onde você estava, sua vagabunda? Respondi que estava com a minha família. E ele: Eu já disse que você tem que esquecer que eles existem! Aí ele veio para cima de mim, puxou meu cabelo, tirou toda a minha roupa, inclusive a íntima, e cheirou. Ele queria ver se eu realmente estava com a minha mãe e com meus filhos. Eu nunca tinha passado por isso”, recorda. 

Após a primeira agressão, houve uma promessa de que isso não se repetiria. No entanto, a situação piorou quando ela tentou levar os filhos para morar com eles. Ela descreve episódios em que, ao chegar em casa atrasada por poucos minutos, era recebida com socos e pontapés. “Eu não podia fazer nada, ele sempre achava que eu estava com outro homem, que eu estava mentindo”, relata.

Em uma ocasião crítica, ele a jogou de uma moto em movimento e a pisoteou, resultando em traumatismo craniano e lesões no fêmur que lhe causam dor até hoje. Ela conta que tentou denunciá-lo várias vezes, mas sempre recuava devido às ameaças de morte contra ela, os filhos e outros familiares. 

Todas as vezes que ela ia para o hospital, machucada, ele a acompanhava e a ameaçava. Segundo ela, a família do ex-companheiro também era conivente com as agressões e a pressionava para que ela não o denunciasse. 

“Ela tentava sair da relação, mas não conseguia porque era muito ameaçada. Mesmo depois de terminar, ela ficou anos sem fazer uma comida com trauma porque ele jogava a comida nela. Ela tem lesões até hoje, dores na cabeça e na coluna por conta dos socos e pontapés. Então, ela tem todas essas cicatrizes físicas e emocionais”, conta a advogada. 

Para conseguir prestar queixa à polícia sem levantar suspeitas, ela dizia que ia trabalhar. No entanto, ela relata que era difícil para a polícia atender prontamente às denúncias. Quando os chamados eram feitos, geralmente por vizinhos ou por sua mãe, que passou a morar perto, o agressor costumava fugir quando percebia a chegada dos agentes.

A mulher só conseguiu sair da casa em que moravam no dia da ocorrência que a levou ao banco dos réus. Na ocasião, mesmo ferido, ele continuou a agredi-la e ela chegou a desmaiar. Como de praxe, com a chegada da polícia, ele fugiu e ela conseguiu abandonar o local.

Uma medida protetiva foi emitida contra ele nesse mesmo dia. Apesar disso, o agressor continuou a persegui-la pelos anos seguintes, impondo uma rotina de alerta que ainda persiste. 

“Eu fui agredida, não foi ele. Eu me defendi porque ele ia me matar e matar meu filho. E agora quem está respondendo um processo sou eu. Eu que estou sendo culpada, sendo que eu sou a vítima. Eu apanhei durante oito anos!”, relata. 

Ex-companheiro foi preso por estupro

Além dos boletins de ocorrência e dos prontuários médicos, a defesa também incluiu no inquérito notícias sobre a prisão do homem, em 2012, por ele ter abusado sexualmente de uma menina de sete anos. Segundo Márcia Irigonhê, ele prestou depoimento detido no processo de violência doméstica que prescreveu. De acordo com a advogada, tanto o Ministério Público quanto a assistente de acusação solicitaram que essas notícias não fossem apresentadas em plenário, alegando que poderiam comprometer a dignidade dele.

A advogada conta que a assistente de acusação invocou a Lei Mariana Ferrer, que limita a utilização de informações pessoais da vítima que não são diretamente relevantes para o caso. O objetivo é evitar a exposição da vida pessoal da vítima e foi inspirada no caso da influenciadora digital Mariana Ferrer

“A preocupação do Ministério Público com a dignidade do agressor está impedindo que se mencione em plenário que, pouco depois de agredir minha cliente, ele foi preso por estupro”, destaca.

Irigonhê argumentou que, no inquérito em questão, a inclusão das notícias sobre os estupros do acusador era pertinente. “Ela foi vítima de várias formas de violência doméstica, e o fato dele ter cometido outro crime de violência de gênero pouco depois é relevante para o caso. O juiz decidiu corretamente permitir essas evidências no plenário, afastando a aplicação dessa lei nesse contexto”, completa. 

Caso ilustra falhas no sistema de proteção à mulher

Para Rejane Sanchez, representante da OAB no Observatório da Violência contra a Mulher de Santa Catarina, o caso reflete falhas sistemáticas e possui padrões que se conectam a outras histórias semelhantes. 

A advogada, que comenta o caso a partir das informações compartilhadas pela reportagem, observa, por exemplo, o fato de a mulher ter demorado a registrar o primeiro boletim de ocorrência. As agressões começaram em 2002 e a mulher registrou o primeiro B.O. em 2008. 

Além disso, embora tenham sido registrados ao menos seis boletins de ocorrência, apenas três resultaram em acusações formais contra o ex-marido. As medidas protetivas emitidas a partir dessas denúncias também foram desrespeitadas e o sistema falhou em garantir o cumprimento delas.

Sanchez destaca dados da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, de 2023, que mostram que 61% das mulheres que sofreram algum tipo de violência sequer chegaram a denunciar.

“E por que elas não denunciam? Porque muitas vezes elas não chegam a ter um atendimento adequado na delegacia. Embora a lei diga que a palavra delas tem que ser absoluta, elas ainda são relativizadas”, analisa.  

Só em Santa Catarina, entre janeiro e julho de 2024, foram requeridas 17.917 medidas protetivas e foram registrados 32 feminicídios, evidenciando a gravidade do cenário atual. Os dados, provenientes do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) e da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP/SC), respectivamente, estão disponíveis no portal do Observatório.

Sanchez também aponta que, apesar de a Lei Maria da Penha ser uma das melhores legislações globais no enfrentamento à violência contra mulheres, a falta de vontade política e a capacitação inadequada dos operadores do sistema prejudicam sua efetividade. 

“Enquanto não houver uma educação e capacitação adequadas sobre letramento de gênero e funcionamento das leis, continuaremos enfrentando problemas. A sociedade e os operadores do sistema precisam estar melhor preparados ou vamos continuar tratando o sintoma e não a causa”, enfatiza. 

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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