Até a semana passada, para doar sangue no Brasil um homem deveria ficar um ano sem transar com outro homem. Pelas regras do Ministério da Saúde e da Anvisa eram considerados inaptos à doação, por 12 meses, “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”.

 “Na prática, um homossexual que quisesse doar sangue tinha que mentir”, opina o bancário Carlos Renan Evaldt (43). “Tentei doar sangue uma única vez e foi constrangedor. Me chamaram numa sala para perguntar se eu era gay”. Isso foi há 12 anos, conta. “A partir dali, nunca mais doei porque é humilhante você ter que mentir para fazer bem a uma outra pessoa”. Renan também é presidente do Magia Sport Club, um clube esportivo LGBT com 15 anos de atuação em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e mais de 200 associados. “Ouvi bastante relatos de amigos que mentiram também. Ninguém te pergunta se você se colocou em uma situação de risco; só se você é gay. A regra é estritamente discriminatória”, define.

Essa é a mesma opinião do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no RS, Enrico Rodrigues de Freitas. Para ele, além de “preconceituosa, a visão é absolutamente anacrônica”, e fere, inclusive, os direitos humanos. “A essência por trás da norma é o preconceito, portanto, ela é uma violação de direitos humanos. É uma regra pública que carimba esse segmento da sociedade. Ela promove um reforço social de preconceito; passa a ideia de que esse grupo de pessoas é promíscuo ou doente. É uma visão absolutamente equivocada, fora de época, que gera constrangimento”.

STF derrubou a restrição
Na sexta-feira, 8 de maio, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que essa exigência é inconstitucional. Sete dos 11 ministros votaram para derrubar a norma.

Entenda
Em 2016, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5543) alegando “absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual”.

Diversas entidades e movimentos sociais entraram como Amicus Curiae da ADI. Isso significa que se inseriram no processo como terceiros trazendo argumentos e informações que ampliaram a discussão antes da decisão da corte.

Foi o caso do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, uma ONG pró-direitos da população LGBTI+. Em 2016, o grupo se manifestou no processo apontando como inconstitucional a diferença de critérios da norma, ou seja, a “discriminação perpetrada contra Homens que façam Sexo com outros Homens (HSH) nos últimos doze meses, mesmo que se trate de sexo seguro (com preservativo), monogâmico, sem parceiros ocasionais”. Só isto, diz o texto da ONG, “demonstra intuitivamente a arbitrariedade da referida discriminação”.

O advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, que assinou a peça, declarou para o Portal Catarinas que além do preconceito contra os homens que façam Sexo com outros Homens, a norma é ainda mais perversa com as mulheres transexuais. “Sempre digo que as tratam com transfobia conceitual, pois as consideram homens por um critério biológico. Por isso, entendem que a categoria HSH [Homens que fazem Sexo com outros Homens], as abarcaria. E isso é ainda mais cruel, porque nega a elas sua própria identidade de gênero”, afirmou.

Symmy Larrat, presidenta da ABGLT/Foto: Marcello Casal Jr – Agência Brasil

Em 2018, o STF reconheceu que pessoas transexuais podem alterar o nome e o sexo no registro civil mesmo sem que se submetam à cirurgia. Mas, a decisão não era considerada na hora de doar sangue, denuncia Symmy Larrat, presidenTRA (como ela se define) da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)

“É um processo extremamente violento porque mesmo o STF reconhecendo a troca de gênero no RG, ao ser identificada visualmente, a mulher trans era negada, proibida de doar”.

O julgamento no STF começou em 2017, com o voto do relator, ministro Edson Fachin, afirmando categoricamente que o regramento colocava “em xeque fundamentos e direitos constitucionais.” Fachin construiu seu voto alegando que “para manifestação de um elemento da personalidade – o exercício da alteridade mediante o ato de doação de sangue” a regra impõe ”o completo aniquilamento de outra faceta da própria personalidade – o exercício da liberdade sexual”. O que na opinião do ministro se constitui “um tratamento não igualitário injustificado e, portanto, inconstitucional”.

 Fachin foi acompanhando por Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Rosa Maria Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Carmem Lúcia. Os ministros Marco Aurélio de Mello, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello divergiram do relator, mas como o plenário formou maioria, a exigência foi impugnada.

Conheça a história
A decisão do STF é o ápice de 40 anos de embates, que envolveram grupos a favor dos direitos LGBTI+, como movimentos sociais, advogados, gestores públicos e profissionais da área de saúde contra práticas médicas conversadoras. 

Desde a década de 1980, esses grupos denunciam o que ficou conhecido no debate como “Apartheid Sanguíneo” no Brasil.

No início da epidemia de AIDS, na década de 1980, os homens homossexuais e bissexuais chegaram a representar 70% dos casos de transmissão de HIV. A partir dali, ficaram marcados como “grupo de risco” na área da saúde, argumento usado para determinar a segregação desse público quando se fala em doação de sangue.

Célio Golin, do Nuances/Foto: Guilherme Santos Sul21

Os homens homossexuais e bissexuais chegaram a ser completamente proibidos de doar sangue, relembra Célio Golin do Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual – primeira ONG LGBT no Rio Grande do Sul. “Depois de muito debate, as regras foram se flexibilizando e chegamos nesta norma de 12 meses”. O que na opinião de Célio continuava injustificável e claramente discriminatório, uma vez que o regramento nunca levou em consideração o comportamento de cada pessoa, mas apenas sua orientação sexual.

Célio comenta que o Nuances nasce em 1991, época em que o Brasil reforça as estratégias contra o vírus com a distribuição gratuita de retrovirais pelo SUS, uma das iniciativas que fez o país tornar-se referência mundial no combate à AIDS.

Campanhas de conscientização divulgadas nos anos 1990. 

Desde lá, aponta Célio Golin, o Nuances desenvolve trabalhos de prevenção de HIV e AIDS, uma tendência que se verificou pelo país, com campanhas direcionadas especificamente a esse público. O que explica, junto às ações do governo, a redução nas taxas de contágio entre homens homossexuais e bissexuais. Por outro lado, o contágio cresceu entre os heterossexuais de ambos os sexos. Na opinião de Célio, o fato reforça que a questão do HIV não tem nada a ver com orientação sexual.

“A decisão do STF veio muito tarde, mas é importante porque além de corrigir uma percepção política na área da saúde sobre população LGBT, diz que excluir esse grupo social é uma atitude discriminatória. Assim, o debate se amplia para além do campo da saúde, ele entra no campo político, no campo dos direitos humanos”. E isso, atualmente no Brasil, “é uma grande vitória”, considera Célio. 

“Nesse momento, com um governo totalmente reacionário, moralista, conservador, LGBTfóbico, misógino, machista, o STF dá uma cartada bem ousada e interessante que barra esse processo de aniquilamento que está acontecendo na sociedade brasileira. Isso faz com que se retome a questão da laicidade do Estado, da democracia e dos direitos humanos”.

Para o advogado Paulo Iotti, a decisão do STF neste momento de pandemia do novo coronavírus, “ajuda a salvar vidas, ante os escassos estoques de sangue. E o fim da restrição acaba com a ofensa à dignidade da população de gays, bissexuais, das transexuais e das travestis, deixando de presumir tais pessoas como grupos de risco. A decisão é histórica e perfeita e deve ser celebrada”.

 

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