“Em que momento as crianças aprendem a nos chamar de macacos?”. A reflexão de Luana Tolentino foi recebida com atenção por cerca de 300 alunas e alunos do Centro Educacional Municipal Antônio Francisco Machado, em São José (SC), no evento de encerramento da Semana da Consciência Negra. Ocupando pequena parte do ginásio, várias crianças negras se viram representadas pela professora de história da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) que veio falar sobre como a educação pode garantir o direito fundamental à igualdade de oportunidades entre pessoas brancas e negras. 

Autora do livro “Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula”, no qual reúne experiências do cotidiano nas escolas em que atuou na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), Tolentino era muito aguardada naquele espaçoLogo que cheguei, encontrei-a respondendo perguntas a um repórter da TV Record, cercada por crianças.

Os trabalhos produzidos durante o mês da Consciência Negra estavam espalhados pelas paredes do colégio, conhecido como Forquilhão. Textos e poemas escritos pelos alunos sobre o tema formaram parte da atração do evento. Segurando o livro da convidada e a obra “O quarto de despejo” da escritora negra Carolina de Jesus, a diretora da escola Fernanda Fermiano Fraga, também mulher negra, conduziu toda a apresentação, que começou às 9h da manhã e terminou ao meio-dia. 

Era a primeira etapa, já que à tarde a programação seguiria com as turmas do segundo turno. “Nós nunca vamos nos calar frente a ações de discriminação, por isso estamos aqui”, explicou a diretora.

Foto: Paula Guimarães

Crianças do sexto e do sétimo anos interpretaram cenas da obra de Carolina de Jesus que, assim como Luana, nasceu em Minas Gerais. Catadora de lixo, a escritora vivia com três filhos em uma favela em São Paulo quando começou a escrever um diário relatando o seu cotidiano e da vizinhança. “A gente sabe que a semana requer muita reflexão porque ainda hoje acontecem situações de racismo com frequência”, pontuou a diretora.

O desfile do cabelo crespo e cacheado, atividade que dá nome a um capítulo da obra de Luana, buscou valorizar a estética negra enquanto afirmação política de identidade. Alunas e professoras negras desfilaram cumprindo a proposta de exibir autoestima. Algumas estudantes brancas também jogaram seus cachos pra cima com orgulho. 

“Nosso desejo é que a atividade tenha contribuído para que vocês jamais duvidem da sua beleza, e que isso seja um impulso para que sigam suas vidas com altivez e confiança”, assinalou a diretora, lendo um trecho do livro da convidada.

A troca de cartas entre alunos e a escritora

O motivo da convidada estar ali foi explicado em uma das atrações, quando Luana  e Ulisses foram interpretados por duas crianças negras, vestidas com roupas de festa junina. O casal leu trechos do texto “Uma carta para Ulisses”, e da resposta elaborada coletivamente pelos alunos do nono ano. “Essa carta é para Ulisses, mas também para a escola”, alertou a diretora sobre a importância de refletir sobre o seu conteúdo.

Na carta publicada no Portal Catarinas, Tolentino escreve para o colega da infância perguntando-lhe como está depois de tantos anos separados, desde que preteridos pelos outros alunos eram obrigados a formarem par constante nas festas juninas da escola. Com uma escrita afetiva, Luana quer saber de Ulisses e de como ele percebe e elabora, hoje, a violência que sofriam juntos pelo simples fato de serem negros. 

 

“Estar aqui hoje é justamente em razão disso, em um país que desvaloriza e até persegue professores, eu ter a oportunidade de viver um momento como esse é uma das coisas mais bonitas, mais emocionantes que já aconteceram na minha vida”, disse a professora emocionada.

O texto chegou ao conhecimento da direção da escola por meio do auxiliar de ensino, José Ricardo de Abreu, que havia participado de uma formação da rede pública voltada às relações étnico-raciais. Impactado com a carta, o professor resolveu levar o aprendizado para a sala de aula. “Sempre que eu lia a carta, a reação era a mesma, ficavam de pé, aplaudiam, vibravam porque se identificaram. Surgiu a ideia: e se a gente respondesse essa carta? Eles questionaram ‘onde está o Ulisses, o que aconteceu com ele?’ Não sei, talvez a própria Luana não saiba, nós podemos reescrever a história dele e os alunos fizeram isso, como se fosse o Ulisses. Juntei fragmentos, as melhores frases e aí construímos um texto coletivo, quando eu li de volta enlouqueceram: ‘temos que enviar isso para Luana’”, relatou o professor.

A carta enviada pelos alunos sensibilizou a professora, que ficou ainda mais intrigada ao descobrir que eles viviam numa cidade em que a grande maioria da população se autodeclara branca. O carinho foi retribuído com o envio de uma resposta pelo correio junto ao livro recém-lançado. “Eu sei que esse dia 27 de novembro de 2019 jamais vai sair da memória e do meu coração, então obrigada a cada um de vocês”.

Uma educação antirracista é possível

A escritora convidou alunos e professores a pensarem sobre quão perversas são as práticas naturalizadas no ambiente das famílias brasileiras desde a infância, e de forma geral perpetuadas pelo ensino formal, a ponto de as crianças discriminarem seus colegas pela cor da pele. “Infelizmente a escola reproduz o racismo e isso cria desigualdades entre negros e brancos”. 

Para fundamentar sua fala, leu uma sequência de manchetes de jornais sobre pesquisas que atestam como a educação pode promover desigualdade.

“O país tem onze milhões de analfabetos e o número de negros nessa situação representa o dobro dos brancos, então a maioria das pessoas que não aprenderam a ler e escrever são negras”, disse. 

A convidada relatou uma situação em que os pais de uma aluna negra denunciaram o racismo em uma escola particular do Rio de Janeiro, e foram obrigados a trocar de escola porque as crianças não queriam ter contato com ela e a xingavam por ser negra. Outra manchete dava conta de que a desigualdade racial transparece em notas de meninos negros, conforme revelado em uma pesquisa feita nas escolas municipais de São Paulo. 

“As notas mais baixas são de alunos negros, depois vem as meninas negras. Isso por que negros não gostam de estudar? Os alunos negros chegam à escola e têm menos oportunidades, dão menos atenção e cuidado a eles. Isso tudo isso é resultado de pesquisa, não é o que eu acho. A educação tem papel importante na mudança desses dados que são injustos, perversos”.

E continuou sua reflexão direcionada à comunidade escolar. “É um apelo que faço aos professores para pensar que educação tem sido oferecida aos alunos negros. Esses números mostram que há um tratamento diferenciado. O apelo também vale aos alunos, vocês que nasceram com a pele branca, que tratamento dão? Na hora de fazer trabalhos, os alunos negros são convidados, são colegas de fato?”. 

Lembrou de uma aula na terceira série em que passou a não gostar mais de matemática por ter vivido uma experiência de violência como relata nesta outra carta. Perseguida por uma colega que a chamava de “macaca”, certo dia resolveu contar à professora de matemática, mas não foi acolhida como esperava. “Não tive sorte com professores como vocês têm. Eu era uma excelente aluna de matemática, depois disso nunca mais aprendi”.

Foto: Paula Guimarães
Conhecimento: o caminho para combater o racismo

A obrigatoriedade de as escolas ensinarem a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros, prevista na Lei 10.639/03, foi apontada pela convidada como elemento fundamental para a transformação de uma mentalidade centrada na visão de mundo europeia. 

“A população negra, que veio escravizada da África, tem uma participação muito grande na história, na cultura e economia do país. Foram os braços negros que ergueram esse país, a gente precisa reconhecer e por isso temos o dia da Consciência Negra, mas esse reconhecimento tem que se dar o ano inteiro. Essa história tem que estar em todas as disciplinas, é um direito conhecer a história e conhecendo é um caminho para combater o racismo”.

Um quarto das escolas públicas não aborda o racismo em sala de aula, como destacou a escritora. O ensino nos currículos da educação trata-se de “decisão política com fortes repercussões pedagógicas na formação dos professores, medida para garantir vagas para negros e valorizar a história, buscando reparar danos à identidade e direito que se repetem há cinco séculos”. 

“A relevância desses temas não restringe à população negra, mas diz respeito a todo brasileiro, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capaz de construir uma nação democrática”, enfatiza.

Tolentino recuperou o relato feito em seu livro sobre uma atividade em sala de aula pensada para responder à pergunta do aluno Marcelo de 12 anos: “por que preciso aprender Ciências Sociais se vou trabalhar em obra?”. Atenta à importância de seus alunos se verem representados em outros espaços, ela contou ao menino a  história de Fábio Constantino, jovem negro e pobre que passou em primeiro lugar no vestibular para o curso de Medicina da UFRN. “Ao final da atividade, Marcelo respondeu:  “aprendi que a pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar’”, relembrou. 

A convidada ponderou que não se trata de um discurso em defesa da meritocracia, ideia de que basta o esforço individual para que as pessoas conquistem acesso a uma vida digna. “A maioria dos meus alunos era negra, com mãe doméstica e pai pedreiro, fizemos debate, minha intenção não foi falar ‘olha, basta querer que consegue’. Se alguém falar isso pra vocês é mentira, não acreditem nisso porque para conseguir é preciso uma rede de apoio, políticas públicas, oportunidade e incentivo, e era isso que queria mostrar aos meus alunos”.

A professora lembrou-se da infância de muita pobreza ao lado da família. “Foram meses sem água e sem luz, não era possível nem lavar o uniforme, tinha que escovar os dentes com sal, trabalhei como empregada doméstica. Durante as situações de racismo na escola eu sempre mirava no agora e pensava ‘não vai ser assim lá na frente'”. 

Foto: Paula Guimarães

Luana Tolentino é um exemplo de como o conhecimento pode ser transformador. “Desde cedo sabia que a educação, o estudo poderia dar uma vida diferente daquela que eu tinha. Para que nenhuma criança passe a tortura que passamos, para que a escola seja um espaço de felicidade e não de dor e sofrimento. Que a pobreza, injustiça, estupidez, ignorância e o ódio que deterioram neste país não tirem de nós o direito de sonhar com dias melhores. Que a gente possa sonhar que uma educação diferente é possível”. 

De acordo com a diretora do colégio, Fernanda Fermiano Fraga, uma pesquisa informal indicou que dos mais de 600 alunos pelo menos 170 deles são negros. Há 15 anos na escola, ela explica que a ação faz parte do calendário escolar. “Não é possível continuar sentando no banco da escola sem a gente ensinar sobre a lei, a história, as questões dos ícones negros, sobre os que morreram para a gente estar aqui falando tudo isso.” Ela manifestou a preocupação em despertar nos alunos o entendimento de que a escola é um espaço de resistência frente às desigualdades.

“Trouxemos a Luana para vocês pensarem que também podem alcançar. Estamos numa situação que o  país não quer que alunas e alunos de escola pública cheguem lá. É para pensarmos num futuro bem próximo”. 

A manhã terminou com um aviso da diretora à convidada: “almoce e se prepare, porque à tarde tem mais”. Enfileirados em frente à porta de saída do ginásio, alunas e alunos queriam um autógrafo ou mesmo um afago da convidada. Uma menina pede à colega que ceda um cantinho em seu caderno, assim ela também poderá levar a assinatura daquela mulher que descortinou um mundo de possibilidades e afetos às/aos estudantes do Forquilhão.

Foto: Paula Guimarães

O agradecimento pela receptividade veio três dias depois também em forma de carta: “termino essa carta com a certeza de que nossa história jamais terá fim […] termino essa carta com as palavras da Nanda, aluna do Forquilhão e colega de vocês ‘que a gente consiga trazer luz para o mundo’. Estou certa que iremos conseguir. Deixo um abraço com todo amor que há em mim”, escreveu Luana Toletino. 

A escritora ficou ainda mais comovida ao ser informada de que outras escolas da cidade também discutiram o racismo a partir da carta a Ulisses, como lhe revelou Alzira Rosa, funcionária da Secretaria Municipal de Educação.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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