Ouro Preto, 15 de julho de 2019.
Querida Renata!
Há tempos quero lhe escrever. O correr dos dias impediu que eu fizesse isso antes. Espero que ainda esteja em tempo de abraçá-la, de prestar solidariedade a você e a sua filha.
Acompanhei com muita tristeza e indignação o episódio em que você se viu obrigada a tirar sua filha da Edem, escola da Zona Sul do Rio de Janeiro, em razão da violência racista que ela vinha sofrendo. Escrevo para que vocês saibam que não estão sós. Escrevo por saber exatamente o que sua filha passou.
Em 1993, eu tinha praticamente a mesma idade que sua filha tem hoje. Estava na antiga 3ª série. Vivia amedrontada pela Cristiane, que era mais velha e bem mais alta do que eu. Todos os dias ela me chamava de macaca. Durante o recreio. Na hora da saída. O tempo inteiro. Nas aulas de Educação Física, bastava que eu pegasse na bola para que ela imitasse sons e gestos que lembravam animais. Era tanta perversidade que a Cristiane me chamava de macaca durante a oração do Pai Nosso, que rezávamos antes do início das aulas.
Por muito tempo, mantive tudo isso em segredo. Até que um dia não aguentei mais. Contei para a minha professora o que estava acontecendo. Nazaré pediu que eu fosse até o quadro e ficasse diante de todos os alunos. Senti uma angústia imensa. Era como se eu soubesse que algo de ruim iria acontecer. Não estava enganada. Nazaré me pegou pelo braço e disse:
– Olhem bem para a Luana! Vocês acham que ela se parece com uma macaca?
Um abismo sem fim se abriu embaixo dos meus pés. A sala foi tomada por um barulho ensurdecedor. Segurei o choro. Chorar naquele momento tornaria as coisas ainda mais difíceis. Não consegui encarar a minha turma. Olhando para o chão, ouvi gritos, batidas nas carteiras, gargalhadas e, mais uma vez, sons que lembravam animais. Nazaré que era dada a gritar, pedia aos alunos que ficassem em silêncio. Sem sucesso. Nada era capaz de fazer com que meus colegas refletissem sobre o que se passava dentro de mim naquele momento. Nazaré deu um último grito:
– Luana, volte agora para o seu lugar! – Eu que era a vítima, fui culpabilizada pela algazarra que tomou conta da sala.
Estávamos na aula de Matemática. Aprendíamos a tabuada do três. Na tentativa de apagar o que havia acontecido, comecei a fazer contas de multiplicação mentalmente: 3X0=0, 3X1=3, 3X2=6. Fiquei tão desnorteada que não conseguia avançar. Então, começava tudo de novo: 3X0=0, 3X1=3, 3X2=6. Até que desisti. Depois daquele dia, eu que tinha excelentes notas na disciplina, não consegui ter o mesmo rendimento de antes. Ainda hoje, fazer contas simples é um verdadeiro suplício para mim.
Leia mais
Como você deve saber, em 2003, após longas lutas do Movimento Negro, o ex-presidente Lula sancionou a Lei Nº 10.639, que obriga escolas públicas e também privadas a reconhecer e valorizar a História e a Cultura africana e afro-brasileira em sala de aula. A lei exige ainda o combate à discriminação racial existente no cotidiano escolar, de modo a construir um ambiente plural, igualitário e inclusivo para todos e todas que frequentam as escolas.
Quando casos como o da sua filha vem a público, temos certeza de que a lei não está sendo cumprida como deveria. Em função disso, as escolas continuam sendo locais de dor, de sofrimento e de invisibilidade para crianças e jovens negros. Em todos os níveis de ensino. Pesquisas revelam que nas creches são as crianças negras que mais esperam pela troca das fraldas. São as crianças negras que levam mais tempo para receber o banho e as refeições. São as crianças negras que recebem menos afeto das educadoras.
Sabe, às vezes eu penso que as pessoas que não nasceram negras deveriam vestir a nossa pele por um único dia. Assim, elas saberiam o que significa ser negro nesse país. Saberiam o que significa ser humilhado e violentado em razão da cor desde os primeiros anos de vida. Saberiam o que é ser olhado com desprezo e desconfiança. Saberiam o que é ter a humanidade negada. Sim. Quando alguém nos chama de macaco está negando a nossa condição de gente. Quando um soldado do Exército dispara 80 tiros contra um homem negro, também.
Atualmente, dou aulas em cursos de licenciatura. Trabalho na formação de professores. Peço aos meus alunos que não sejam coniventes com o racismo que se faz presente nas escolas. Aqueles que permanecem em silêncio diante de situações como a vivida pela sua filha são tão cruéis quanto quem pratica o racismo. Enquanto educadores, precisamos lutar para que a escola seja um espaço de felicidade e de realização para meninos e meninas negras.
Como você bem sabe, a luta é dura e árdua, mas não podemos desistir, esmorecer. Acredito que ainda teremos muitas histórias bonitas para contar. Como eu disse no início dessa carta, quero que você e sua filha saibam que não estão sozinhas nessa travessia.
Vamos em frente, Renata! Vamos juntas!
Deixo um abraço grande, apertado e cheio de esperança para você.
Outro maior para sua filha.
Luana Tolentino.
*Luana é mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. Atualmente é professora universitária. É autora do livro “Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula”, lançado em 2018 pela Mazza Edições.