Ouro Preto, 21 de junho de 2019.

Oi, Ulisses!
Espero que estejas bem!

É bem provável que você não se lembre de mim. Já se vão 29 anos desde a última vez que nos vimos. Durante todo esse tempo, nunca me esqueci de você. Ao seu lado, vivi um dos momentos mais dolorosos de toda a minha vida escolar. Era junho de 1990 quando nossa professora levou a turma para o pátio. Precisávamos ensaiar para a festa junina.

Como de costume, o Diogo e a Bruna foram os primeiros a serem escolhidos. A professora decidiu que eles seriam os noivos da festa. Na escola, tudo girava em torno deles. Acho que nunca vi olhos tão azuis quanto os do Diogo. À medida que os pares foram sendo formados, um sentimento de angústia tomou conta de mim. Não entendia porque nunca chegava a minha vez. Quando percebi, todas as crianças já haviam sido escolhidas. Só sobrou nós dois. Então a professora apontou o dedo na nossa direção e disse:

– Luana e Ulisses! Já para o último lugar da fila! Vocês vão dançar juntos!

Nesse momento, tive noção de como era o inferno que o padre Zé Carlos sempre falava aos domingos durante a missa.

As palavras da professora foram suficientes para que toda a turma começasse a rir e a fazer gestos imitando animais. Enquanto caminhava, escutei gritos: “Macaco”! “Chipanzé”! – disseram alguns alunos. Foi a primeira vez que ouvi alguém se dirigir a mim dessa maneira. Lembro que segurei a sua mão. Tenho dúvidas se fiz isso para te proteger ou para conseguir caminhar até o final da fila em meio a tanta humilhação. Lembro que, assim como as outras crianças, você também achou graça. Imagino que para sobreviver a tudo aquilo. Permaneci séria. Lembro das minhas pernas bambas, das minhas mãos geladas, da garganta seca, da vontade de abaixar a cabeça e não voltar mais para a escola.

Mas o pior é lembrar que a nossa professora nada fez para nos defender. Enquanto escrevo, posso vê-la sorrindo diante de tamanha barbaridade.

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Quando começamos a dançar, o meu corpo, as minhas pernas não conseguiam acompanhar a música. Depois de tudo que ouvimos, não havia mais clima para festa. Para piorar, no dia da apresentação, a minha mãe e o meu pai não puderam ir. Me senti ainda mais só…

Ao lembrar de tudo isso, sinto uma tristeza imensa. Fico imaginando em que momento as crianças aprendem que para nos humilhar, nos ofender, para ferir a nossa alma, elas devem nos chamar de macacos. Penso também que após tanto tempo, professoras e professores continuam agindo da mesma maneira que a nossa agiu. Muitos têm preferido o silêncio em relação às práticas discriminatórias que acontecem dentro das escolas.

Ainda hoje, nas festas juninas, quase sempre os noivos, o padre, o rei e a rainha da pipoca são crianças como o Diogo e a Bruna. Não sei se você sabe, mas desde 2003, temos uma lei Federal que obriga o ensino da Cultura e da História dos africanos e dos afro-brasileiros, e também o combate ao racismo existente nas escolas, mesmo assim, crianças e jovens negros continuam sendo vítimas da discriminação racial. São os alunos e as alunas de pele negra que mais apresentam baixa autoestima. São os estudantes negros que lideram os índices de repetência e de “evasão” escolar. São os meninos e as meninas negras os principais alvos das agressões físicas e verbais que ocorrem nas instituições de ensino.

Quando as escolas optam por não promover uma educação antirracista, elas estão sendo coniventes com a dor, com o sofrimento e com a exclusão dos estudantes negros. Não me canso de dizer: quem cala, consente. Atualmente, sou professora universitária. Dou aulas em cursos de licenciatura. Minha esperança é que meus alunos e alunas, ao chegarem nas escolas, não permitirão que outras crianças experimentem o que vivemos em junho de 1990.

Poxa, Ulisses! Acho que falei demais… Acabei não perguntando de você. Como vai? O que tem feito? Logo que puder, dê notícias. Como eu disse no início dessa carta, espero que estejas bem. Bem, feliz e em paz! Uma vida rica e iluminada: é o que eu desejo a você.

Um abraço, Ulisses! Meu amigo. Meu par.

*Mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. Atualmente é professora universitária. É autora do livro “Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula”, lançado em 2018 pela Mazza Edições.

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  • Luana Tolentino

    Luana Tolentino é mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atuou como professora de História e...

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