Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD, 2015) 45,06% da população brasileira se autodenomina parda. Katú, considerada parda, não conseguia pertencer ao universo de seus pais adotivos. Apesar das violências psicológicas que viveu na infância e o abuso sexual que sofreu por um pastor evangélico amigo da família ela não deixou de acreditar em quem era. Sua mãe biológica é negra e seu pai biológico é do povo Boe-Bororo. Pela trajetória de vida da família ela descobriu que muitos indígenas desse grupo vieram como escravos de Mato Grosso para trabalhar em São Paulo e “construir a cidade”.

A rapper, atriz e mãe Katú Mirim concedeu ao Portal Catarinas uma entrevista exclusiva durante o I Encontro Pós-colonial e Decolonial organizado pelo AYA – Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais, do Centro de Ciências Humanas e da Educação (Faed), da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), vinculado ao Departamento de História.

De acordo com o IBGE (2010) mais de 315 mil pessoas se autodenominam indígenas e vivem em áreas urbanas. São diferentes grupos com suas pautas identitárias. Diante desse cenário se faz necessário o entendimento desse processo e a construção de ações afirmativas, projetos e políticas públicas específicas para essa população.

“Meu nome é Katú Mirim, eu sou indígena do Povo Boe-Bororo. E diferente do que as pessoas pensam, que os indígenas nasceram sempre na aldeia, eu nasci na periferia”.

 

CATARINAS: Como foi o seu processo de autoidentificação e reafirmação identitária?
KATÚ MIRIM: Sempre fui considerada parda. Com onze meses de vida eu fui adotada por um casal hétero e brancos. Eu soube que era adotada quando tinha cinco anos. Eu estava com 13 para 14 anos quando meu pai biológico entrou em contato e eu descobri que aquela cara de índio, que aquele fenótipo todo na verdade vinha de um povo. Meu pai falou que a gente pertence a um povo chamado Bororo. A partir daí eu começava a me identificar como descendente de um povo.  Então, nesse processo genocida e etnocida, nessa falta de identidade era taxada como parda apenas. Eu sempre falei que era descendente. Quando você fala que é descendente de um povo no Brasil todo mundo acha normal, porque todos acabam falando que têm uma descendência. Quando eu estava prestes a completar 19 anos passei a falar que eu era indígena, e as pessoas começavam a estranhar. ‘Mas indígena como Katú? Você nasceu na periferia aqui com a gente’. 

Foi um processo de identidade muito difícil porque isso não se ensina na escola, sobre identidade ou como retomar. Eu achava que o meu povo já tinha sido extinto. Na época eu lembro de perguntar para uma professora de história ‘você sabia que meu povo tem nome?’ E ela falou ‘o seu povo foi extinto, ele não existe mais’. 

Até eu acessar a  internet… Eu nasci na periferia e levei muito tempo para ter internet, para poder pesquisar sobre o meu povo. Em  2015 entrei em contato, soube de uma aldeia que tem no Jaraguá (SP), eu sabia que não era a aldeia do meu Povo, eu sabia que era uma aldeia Guarani, mesmo assim eu precisava ter esse resgate, saber o que é, saber o que me levou até ali. Saber a história toda que não é contada na escola.

Então, quando eu cheguei na aldeia do Jaraguá na Terra Indígena (TI) Itakupé, as pessoas me chamaram de parente. Eu falei ‘nossa, como assim parente?’ Para mim parente era só da sua família. E todo mundo perguntando “qual o seu povo?”. Eu disse “eu sou descendente dos Bororo”. Eles falaram ‘como assim descendente?’. Eles nunca tinham ouvido esse termo descendente. Para eles você é ou não é indígena. E foi naquele momento que eu percebi esse processo e caramba, “eu sou ou não sou? Como que eu faço com essa informação? Como que eu faço com isso que está na minha vida desde criança?”.

A primeira pessoa que me leu como uma indígena foi o meu pai adotivo, mas ele via como índia, selvagem. O Estado falava que eu era parda e não tinha identidade nenhuma. Essa coisa de identidade para mim foi totalmente apagada e, como fui adotada, não tive contato com o meu pai. Meu pai biológico ela era andarilho, ele morreu nas ruas de São Paulo, tinha problemas com drogas e com álcool. Logo, eu sabia que vinha do Povo e ponto. Eu não sabia qual era o clã, porque o meu povo tem clãs. Não sabia qual era o clã do meu pai, não sabia o sobrenome do meu pai. Só sabia o nome do Povo. 

Primeiro entrei em contato com o Jaraguá em Janeiro no Jaraguá eu fui batizada de Katú  eu comecei a aprender a cultura Guarani, a língua Guarani, o modo de ser Guarani. Então eu falo que eu fui adotada duas vezes. Pelos brancos e depois pelos Guarani-Mbyá. E faltava eu ser reconhecida pelo meu povo, o do meu pai. Eu entrei em contato com eles e fui para Mato Grosso para a aldeia Meruri e cheguei lá e contei a minha história real, quem eu sou, de onde eu vim, o que eu sabia que era teórico sobre o meu povo. Na prática descobri que na época dos Bandeirantes, também na época da ditadura, muitos saíram escravizados de Mato Grosso enviados como escravos para São Paulo. Ele sabia somente o nome do Povo. Não tinha mais a língua como referência. Eu deduzo que essa informação foi passada para ele pela família, por gerações. Minha mãe biológica não. É mulher negra, evangélica, que não está ligada a isso, aos debates. Muito pelo contrário. Ela recrimina esses processos. Eu a conheci também. Respeito a história dela com meu pai. Ela não gosta de falar sobre isso.  Ela tem um contexto todo cristão e não entende. Eu acho que ela não se vê como uma mulher negra mesmo tendo a pele retinta. A consciência dela sobre o corpo dela na sociedade, a história dela da vida dela e dos avós. 

Quando eu fui lá na aldeia Bororo o cacique José Mário virou para mim e falou ‘Bororo é aquele que mantém a sua cultura, é aquele que quer manter viva sua cultura, sua memória e identidade. Você é de tão longe e faz tanto tempo, mas você é bororo, eu te reconheço como bororo”. E lá na aldeia teve um processo muito forte com a igreja, mas a igreja deixou um legado lá de biblioteca, então meu povo tem tudo documentado, a história todinha. Quando eu saí da aldeia eu saí preenchida não somente das histórias orais, mas eu saí cheia de livros da língua. E aquele vazio acabou. 

A cultura é matrilinear e considera Bororo quem é filho ou filha de mãe Bororo. Eu sou filha de pai Bororo. Só que a cultura é como um rio, não se consegue manter tudo da cultura como antes da invasão, porque não havia mais espaço para isso. Conversamos sobre a possibilidade de abrirmos um espaço de diálogo. Tem muitas pessoas na aldeia que são filhos de pais, e não de mães, como manda a cultura porque nós estamos em um genocídio. Somos 2 mil Bororós. Somos pouquíssimos. Hoje em dia eu continuo morando na periferia, não tenho mais nenhum dos meus pais, nem o adotivo e nem o biológico, somente as mães. Minhas mães me reconhecem como Katú, não falam mais o meu nome de registro, até porque não fez sentido para elas. Katú, o nome que eu fui batizada pelos Guarani significa uma pessoa boa, iluminada. 

Rapper Katú Mirim/Foto: acervo pessoal facebook

Respeito muito a cultura Guarani. Sou uma pessoa que passou por poucas e boas nessa vida desde que nasci. Toda vez que eu penso em virar o opressor eu penso no meu nome. Eu sou Katú, eu sou uma pessoa, eu sei o que os meus pais passaram, o que minha ancestralidade passou, o meu corpo como indígena e como LGBT dentro da periferia. As artes que eu aprendi na vida eu levo hoje como uma forma de luta para o meu povo. Precisei entender o que significa o meu corpo dentro da aldeia em que fui acolhida. Lá também tem uma igreja que foi criada por um pastor. Foi um choque para mim saber respeitar todos os espaços em que eu estou. 

As pessoas se identificam muito com a história, porque a escola nunca vai falar sobre a sua identidade. As pessoas falam ‘eu tenho uma avó que foi pega no laço’. Eu falo ‘e aí? Você não sabe o nome do seu povo? O que você busca de memória da sua ancestralidade?’. Às vezes não é só esse processo de identidade é uma memória que está no nosso corpo, no nosso DNA, de a gente começar a se entender e buscar raízes para se fortalecer. Nesse contexto atual onde estão querendo apagar tudo no Brasil a identidade também é o que está mantendo a nossa base. A gente tem que saber quem a gente é e lutar por esses direitos. Isso é o que eu sou agora. Eu entendo o espaço em que estou, respeito muito a minha luta.

 Eu já tive muita vergonha de ter essa famosa cara de índio e nós sabemos que, na verdade, existe uma pluralidade de fenótipos indígenas. Eu passei por um processo de pensar ser descendente de japonês, descobri na terapia porque eu adorava cabelo loiro, já descolori meu cabelo, já usei lente azul. Ao mesmo tempo que eu queria me ver livre do racismo eu também queria ficar mais perto da família que me adotou que era de brancos. Então eu passei por todas essas violências físicas e psicológicas, violências espirituais que nós cometemos com nós mesmos. Existe a violência espiritual também.

Hoje eu me sinto privilegiada por saber quem é o meu povo e ter sido acolhida por essas três famílias, a que me adotou com 11 meses, e depois pelos Guarani e Bororo. Hoje, falo que sou Guarani, Bororo, Tupinambá, eu sou todos os povos. Porque se for pegar quem está em mim na verdade são todos os povos. Na verdade quando eu vou lutar eu não luto pelo meu povo que tem a terra homologada e demarcada, eu luto por todos, pela liberdade de todos os povos. Uso o rap para falar disso, assim como a internet, a performance e as artes cênicas, tudo o que eu puder usar para falar disso. 

CATARINAS: O que você diria para as pessoas que tem essa dúvida sobre a sua verdadeira história?
KATÚ MIRIM: Eu acho que eles precisam se fortalecer de todas as formas, tanto psicologicamente como espiritualmente. Porque do mesmo jeito que o Estado negou isso, vão se deparar com indígenas que também irão negar. Não vai ser diferente. A gente se depara com indígenas que não aceitam que acham que realmente só é indígena quem nasceu na aldeia. Precisa estar com o espiritual muito fortalecido, precisa estudar muito sobre a sua história e querer, não para fazer parte de um grupo. Você tem que saber porque você quer isso, o que te fere, qual a diferença e respeitar os espaços.

Eu sempre penso em não cursar nada na universidade, mas se eu cursasse jamais pegaria a vaga de um indígena. A universidade tem duas vagas e eu jamais ocuparia a vaga de um indígena aldeado, de um indígena que nasceu na aldeia. Muito pelo contrário. Eu falaria para eles que tem a Universidade e ela está esperando por eles. Porque mesmo eu sendo indígena na periferia eu tenho privilégios também. Eu não sei o que é estar na aldeia e precisar correr à noite porque um fazendeiro irá te matar. Eu não sei o que é ter que sair da terra de noite. 

“Eu sei disso através da memória ancestral, que eu parei na periferia  por causa de um genocídio. A periferia é quilombo, é aldeia”. 

Eu observo os privilégios e dou voz também para esses indígenas aldeados. A gente tem que tomar cuidado e não pegar uma identidade para ser conveniente eu vou me afirmar indígena porque tem um cursinho ali’.  Primeiro que isso não acontece. A coisa é mais complexa. É mais sério do que se sabe. Mas quem sou eu para falar para uma pessoa desistir da sua história, da sua identidade. Procure sim, se fortaleça, converse com a sua família. E não desista de quem você é. Independente de como você vai se afirmar para o IBGE sobre a questão racial. Não desista de quem você é e do que você quer na verdade. O IBGE colocava o indígena como pardo. É um assunto muito complexo. Também existem indígenas de pele retinta na Bahia, no Nordeste. E aí como é que fica? Eles chegam e leem você como negro, mas você é indígena. Não respeitam o que a pessoa está falando, quem realmente é. 

CATARINAS: As letras de algumas de suas música estão em Guarani. O motivo seria a proximidade e o acolhimento?
KATÚ MIRIM: Sim. É o nhanderekó (modo de vida). Eu coloco muito a língua Guarani. Sou chamada de xondaria (guerreira), e uso aguyjevete (gratidão). Agora comecei a escrever músicas na minha língua. Às vezes, misturo as duas línguas e acho isso bom. Para uma pessoa que estava vazia de memórias, agora estou transbordando. 

CATARINAS: A gente não tem como falar com você sem citar a #índionãoéfantasia. Como você vê as consequências hoje? Acredito que muita gente se politizou com essa tag.
KATÚ MIRIM: Em 2017 criamos um grupo no Whatsapp de pessoas que estavam na mesma estrada, na caminhada. Falei com eles e disse que iria soltar um vídeo falando sobre o tema porque teve uma festa à fantasia onde muitos artistas foram vestidos. Eu coloquei um vídeo no Instagram e disse ‘é impossível que vocês não saibam que isso é racismo’. Esse vídeo viralizou. Depois eu fiz um vídeo sobre isso para o youtube. E muita gente falou que era só mimimi, ‘onde já se viu índio falar que não pode’. Por outro lado teve um confronto ‘será que ela é indígena? Porque ela nasceu na periferia’.  

Se você pegar matérias daquela época você vai ver que tem comentários falando que eu usava aparelho no dente. Eu nem estava falando de apropriação cultural, eu estava falando de racismo mesmo. Porque a apropriação já entra em mercantilização que é um assunto mais complexo.

Eu falei de como é racista, de como tem postura racista e não é homenagem nenhuma. A galera começou a falar de apropriação porque já tinha um outro movimento. Chegaram no Carnaval, pegaram uma alegoria e falaram “Katú é apropriação”. Não, a alegoria é uma expressão artística, tem toda uma história que as pessoas estudam. É diferente. A galera não entendeu e deu uma confusão.

Para você ter uma ideia este ano eu estava gravando um videoclipe meu na praça de São Paulo com atores brancos amigos meus que se fantasiaram de indígenas. Depois da gravação a gente foi para um lugar comer e eles foram com a fantasia do videoclipe. Outras pessoas gritaram “#índionãoéfantasia”. Ficamos surpresos porque as pessoas entenderam. 

CATARINAS: E como você vê o racismo na atualidade?
KATÚ MIRIM:  A sociedade não enxerga o indígena no debate racial porque não enxerga a gente como uma raça, nem como uma pessoa, nem como nada. Sou enxergada em São Paulo como um animal. Meus parentes são enxergados em São Paulo como animais. É racismo porque está na estrutura. A gente está no debate racial também. E eu sofro racismo o tempo inteiro. Na música, às vezes sem a pessoa perceber que você é indígena. E a gente tem que falar sobre isso. É um racismo velado, é um racismo maquiado, é um racismo recreativo que é o da fantasia, em espaços que eu vou de youtubers, de São Paulo Fashion Week. Tem pessoas desconstruídas, mas eu não me vejo ali. 

Por que o meu povo não está ali?  Isso é preconceito? É falta de informação? Ou é um racismo falando que o meu povo não tem inteligência suficiente para estar ali. Se está na aldeia dizem “essa terra não é sua”, se está na cidade dizem “o que você está fazendo aqui?”. A gente não tem lugar aqui no Brasil.  Isso é o quê? Um preconceito? Uma discriminação? Ou é um racismo? 

Então, eu falo isso mesmo nas minhas músicas, eu falo que a fantasia é racista. As pessoas falam ‘eu não sou racista. Eu nunca fiz uma maldade’. Todo mundo já teve um pensamento racista na vida. Agora que a gente está entendendo o que é isso e pode dizer que já foi racista. A gente precisa entender o que é isso que está na nossa estrutura. Para o branco entender que ele nunca sofreu racismo, porque não existe racismo reverso. Não existe isso.  É entender os privilégios e ajudar para poder combater. Para o branco entender que ele pode ser antirracista. 

Todo mundo tem privilégios. Eu tenho os meus privilégios, a gente pode usar outra palavra como sorte, mas privilégios é mais político. É entender que se você entrar em um espaço e cair alguma coisa na sua bolsa vai passar e comigo não vai passar. É entender como a gente é tratado dentro de um hospital, dentro do aeroporto, é entender que quando você é branco você já nasce tendo menos violência do que um corpo negro, do que um corpo indígena. A última vez que eu fui no youpix (https://www.youtube.com/youpix) eu falei que se a maioria fosse branca naquele espaço uma boa parte já ia dizer “está faltando negros aqui”, porque já existe essa consciência, mas quem ia falar que está faltando indígena?. É chegar no seu espaço e falar ‘olha, está faltando gente aqui, vamos ampliar a voz desse povo’. Porque nós temos voz. A gente é a minoria da minoria, a margem da margem. É importante saber que privilégios são como poderes, então como você está usando isso? Para o bem ou para o mal?

A gente trata também do lugar de fala. Na universidade quando irá se tratar da questão indígena porque chamar um antropólogo branco? Você pode chamar o antropólogo branco, mas pode chamar um indígena aldeado também. Entender que você é branco e tem muitos privilégios. Eu também queria ter privilégios que eu não tenho com o meu corpo LGBT. Imagine uma mulher trans, negra, LGBT, como que é para ela na rua?

CATARINAS: E como foi a criação do Coletivo Tibira @indigenaslgbt?
KATÚ MIRIM: A ideia surgiu primeiro porque as pessoas estavam querendo mais fotos minha com a minha namorada. E decidimos criar um Instagram a parte, mas eu não me senti confortável.  Aí eu mandei mensagem para os indígenas LGBT e disse “vamos criar um Instagram do nosso e criar uma movimentação on-line para dar voz e discutir as coisas”. Porque não tem esse espaço. Hoje em dia tem Instagram de tudo, como se fosse uma comunidade.  E aí a gente colocou pessoas de várias etnias, tem uma do Canadá que trouxe indígenas da América do Norte para colocar lá também. A gente pensou em um nome e colocou “Indígenas LGBT”. E depois a gente pensou no Tibira que foi o primeiro indígena LGBT assassinado, foi primeira vítima da homofobia no Brasil. Então a gente colocou o nome do nosso coletivo de Tibira. A gente usa tanto para dar informação como também para trabalhar a nossa autoestima. A gente também posta essa foto de close. Por que não close?  Está tudo ligado porque é o corpo indígena falando de território, falando do corpo e ao mesmo tempo mandando uma mensagem para o não indígena e para nossa própria comunidade. Aconteceu esses dias com menino do coletivo que a mãe dele não estava aceitando e ele mostrou o Instagram e disse “mãe não sou só eu. Têm indígenas do mundo inteiro que também são LGBT”. Olha esse povo aqui que falava isso há milhares de anos. Isso sempre existiu. Os pais que perderam essa cultura. Então está sendo um espaço de acolhimento para a gente, de catarse, de informação para o não indígena também que às vezes diz “índio gay? Que mundo que vocês estão?”. Totalmente normal.

#indigenaslgbt

CATARINAS: Você irá participar do Yby 1⁰ Festival de Música Indígena. Como está a expectativa?
KATÚ MIRIM: Eu estou muito ansiosa porque é meu sonho. Sempre ficava vendo no Canadá, América do Norte, tem um festival maravilhoso. Eles têm um tapete vermelho. É o Indigenous Music Awards (IMA) https://www.indigenousmusicawards.com/. Eu ficava vendo e falava “gente, porque não tem aqui?”. A Renata Machado junto com as parceiras falou que iriam montar um festival. Vai acontecer e vai ter indígena de forró, de rap, de rock, de metal. Eu estou muito ansiosa. Vai ser um momento muito importante para a gente porque em todo espaço que a gente vai também é uma desconstrução de estereótipos. A gente sabe criar arte, a gente sabe criar um evento. Esses dias um cara falou para mim “nossa, vai ser um programa de índio”. E eu falei “sim e isso é muito bom sabia?”. Eu ressignifiquei a frase dele e falei que vai ser maravilhoso. Precisa de muito apoio. Por causa do racismo as pessoas desmerecem. Nós vamos provar que sabemos o que estamos fazendo. A gente pode estar sem patrocínio, mas um dia as pessoas irão entender que estamos na produção cultural e existimos em todas as profissões, em todos os recortes e contextos. Eu acredito muito que as pessoas irão começar a patrocinar os eventos. Vai ser um evento muito importante para a comunidade indígena, para os artistas indígenas. Ser artista no Brasil é difícil, agora você imagina para um artista indígena. O tempo todo eu tenho que falar que eu faço rap, que eu sei rimar. Então vai ser um evento importante para todo mundo.

CATARINAS: E o feminismo indígena, como é esta questão para você?
KATÚ MIRIM: O meu recorte não é da aldeia. O feminismo indígena em Itakupé (SP) quem orienta é a cacica Geni Pary Yra e ela sempre fala que a nossa luta sempre foi atrelada a do homem. Para a mulher branca é a luta por direitos, é o feminismo que começou em uma luta por trabalhar, receber como o homem, o direito ao voto, uma luta para poder se vestir e fazer o que ela quiser. E tudo isso já fazia parte da luta indígena, a gente sempre esteve ao lado do homem pela demarcação de terra, pelo território. Então, hoje em dia as mulheres indígenas são feministas, mas não sabem esse nome. Na verdade, a raiz desse feminismo eu acho que começou com a gente, fruto da sororidade que hoje em dia falamos muito. 

Tem a Julieta Paredes que fala do feminismo comunitário em Abya Yala. Ela é maravilhosa. Pesquisem sobre ela.  O feminismo indígena sempre existiu, mas não tinha o nome de feminismo. E as mulheres, nem é o empoderamento na verdade, elas sempre foram poderosas também, e a gente luta lado a lado do homem. 

Sim, existem aldeias e povos que são machistas, mas é um pensamento que veio por causa desse processo todo genocida de colonização. Essas mulheres sabem muito bem como controlar isso. Com a violência hoje dentro das aldeias elas sabem como se portar, elas sabem como recorrer. E, ao mesmo tempo, essas leis criadas por esses não indígenas, esses nomes, esses termos dentro da nossa cultura são diferentes porque é uma outra cultura, outra política, outro modo de ser. 

O feminismo indígena existe e sempre existiu. A gente está aí faz tempo só não chama de feminismo. Eu me considero feminista. Sempre fui.

Falava poucas e boas para minha mãe e nem sabia o que era isso. Meu pai era pastor da igreja e com nove anos tudo que ele falava eu ia contra. Ele era caminhoneiro e eu lembro dele falar que os indígenas tinham fechado a Avenida Bandeirantes. Ele era racista, homofóbico. Quando eu me descobri LGBT com nove anos eu tinha medo de morrer. Ele nunca soube e morreu sem saber. A minha mãe soube recentemente. Namoro uma menina, depois de sair de um relacionamento de treze anos com um homem, com o qual tive uma filha. Eu conheci minha mãe após o falecimento de meu pai porque estou conversando com ela só agora depois de adulta porque ela nunca foi de conversar. A minha mãe adotiva saiu da fazenda quando tinha doze anos para trabalhar em casa de família em São Paulo, onde passou por várias violências. A minha mãe biológica é negra e eu não tenho contato. Eu falei com ela já faz três meses. Ela falou que o meu pai era feiticeiro e o meu povo é conhecido mesmo como feiticeiro, os Bororo. Ela falou que os índios estão onde estão porque não acreditam em deus. Então, tudo que a minha mãe odeia é o que eu sou. Eu respeito. Ela não quer relação, não aceita. Eu perdoo ela, mas eu penso que se você tem uma mãe que é tóxica para você também precisa manter distância. Se curar e desejar o bem.

Já a minha filha causa na escola. Ela é uma versão minha e do pai, porque o pai também é muito gente boa. Ela virou para uma professora e falou “você é machista professora” e a diretora me chamou lá. Eu falei para a professora “é porque você foi mesmo”. O menino bateu nela (filha) e ela chamou a professora, que não fez nada. Ele bateu de novo, ela (filha) chamou a professora e ela não fez nada. Quando ele bateu de novo ela deu um soco nele e a professora falou assim “não se brinca de lutinha com um menino, não se bate no menino”. Minha filha chegou em casa e falou “mãe, a mulher tem que apanhar do homem?”, eu falei “não filha. Por quê? Quem te falou isso?”. Ela falou “é que eu entendi que a professora quis dizer isso”. Desde pequena eu falo para ela de gênero, de raça, de identidade. E a escola está trazendo muito conflitos. Ela é muito justiceira. Ela não pode ver nada errado que ela fala.

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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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