Na tarde desta quarta-feira (19), mais uma mulher foi vítima de feminicídio em Santa Catarina. Elenir de Siqueira Fontão, 49 anos, diretora da Escola de Educação Básica Januária Teixeira Rocha, localizada no bairro Campeche, em Florianópolis, foi surpreendida em seu local de trabalho pelo ex-namorado, que a agrediu a facadas, no banheiro da escola. De acordo com informações da Polícia Militar, o autor do crime, que já respondia por outros processos de agressão contra mulheres, está detido. 

Elenir Fontão era servidora pública da área da educação e havia acabado de ser eleita pela comunidade escolar para ser diretora da Escola Januária Teixeira Rocha. Ela já havia registrado boletim de ocorrência contra o agressor por violência doméstica. 

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O caso gerou comoção em toda a cidade e diversas entidades e movimentos sociais manifestaram pesar e indignação diante do quinto feminicídio ocorrido no estado neste ano. O movimento de mulheres 8M SC, publicou, ainda na quarta, uma nota em que manifesta a dor que envolve o feminicídio de uma companheira às vésperas de mais um 8 de março, Dia Internacional da Mulher, data em torno da qual o movimento organiza diversas atividades descentralizadas, em Florianópolis e em outras partes do estado, para combater a violência contra as mulheres, os feminicídios e dar visibilidade à luta pela vida e dignidade de todas as mulheres.

Além de tristeza e indignação, o crime chamou a atenção pelo local onde ocorreu: dentro de uma escola, lugar de construção de saberes, de formação de cidadãs e cidadãos e, mais recentemente, de disputas ideológicas em torno da questão de gênero. De acordo com a historiadora e professora da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), Glaucia Assis, o caso de Elenir fere a todas as mulheres e reacende mais do que nunca a discussão em torno da questão de gênero nas escolas. 

“Ao discutirmos as relações de gênero nas escolas, nós estamos discutindo como nós educamos meninos e meninas para a cidadania, para o respeito à diferença, respeito às mulheres, respeito à equidade de gênero, à igualdade de gênero. O que a gente quer dizer com isso é que a escola é lugar para discutir, sim, violência contra as mulheres, é lugar de ensinar os meninos outras masculinidades menos agressivas, é lugar de ensinar os meninos que as mulheres não são propriedade dos homens”, explica a historiadora.

A violência contra as mulheres está relacionada à desigualdade de gênero e à construção da ideia de que a violência é uma característica masculina. “A cultura da violência começa quando os meninos são ensinados, pela TV, pelos meios de comunicação, que as mulheres são, de alguma forma, sua propriedade, o que não são. Às mulheres pertencem seus corpos, o direito ao trabalho, o direito à família e o direito à separarem-se dos companheiros quando não os querem mais. A escola pode ser um espaço muito importante para a prevenção da violência, lugar que vai educar para relações de gênero menos violentas. Por isso, gênero deve ser discutido nas escolas, na formação de professores, com funcionários, com o corpo técnico, com as meninas e os meninos, com os adolescentes. A escola tem que ser um espaço de uma educação de gênero que favoreça a equidade de gênero”, argumenta Assis.

Arte: Gabriela Garcez

Violência dentro da escola: ineficácia ou conivência do poder público?

Por se tratar de uma trabalhadora da área da educação, a Executiva Estadual do Sindicato dos Trabalhadores da Educação (SINTE/SC) também manifestou pesar diante do ocorrido. De acordo com a professora e líder sindical Elivane Secchi, secretária de políticas sociais do SINTE/SC, foi um grande choque para a categoria a notícia do ocorrido, especialmente por a escola ser o local onde professoras/es passam a maior parte do tempo, e que acaba se tornando um lar. Por isso, o sentimento é de dor, de revolta e de impotência. 

Para Suzana Uliano, professora de sociologia e diretora de imprensa e divulgação do SINTE/Regional Florianópolis, o fato do feminicídio ocorrer no ambiente escolar é representativo do momento político de ataque à educação e especialmente ao pensamento crítico, aquele que questiona os papéis sociais desiguais. “Como não debater gênero e sexualidade num dos países que mais mata mulheres, sendo Santa Catarina um estado que registra altos índices de feminicídio, especialmente nas regiões mais pobres, como o planalto serrano? Um crime como esse ocorrer numa escola, pra mim, enquanto mulher educadora, me remete à sensação de que eu não estou segura no meu lugar de trabalho”, afirma. 

De acordo com Uliano, enquanto o governo não priorizar a educação como essencial à transformação dos papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade, não haverá mudança cultural capaz de interditar a trajetória de violência. “Então, de fato, no aspecto ideológico, o governo vem caminhando no sentido contrário dos debates urgentes sobre o tema e, com isso, ele se coloca como conivente a esses casos. É necessário, sim, urgente e obrigatório o debate sobre gênero nas escolas, o debate sobre violência, entender porque nós mulheres morremos sob essas circunstâncias, e morremos todos os dias e morremos aos montes”, argumenta. 

A entrevistada lembra que o governo de Santa Catarina seguiu a linha federal banindo as discussões de gênero na escola, com uma conduta de criminalização e censura destas discussões.

“Esse crime é um recado de que nós mulheres não estamos seguras, de que a sociedade não nos assegura o direito à vida, e o Estado tampouco, e que no que diz respeito ao governo aqui, na sua competência e responsabilidade sobre o sistema educacional, ele tá vetando, ignorando, escamoteando, essa discussão que é fulcral, essencial para que crimes como o que ocorreu ontem, não ocorram mais”.

No que diz respeito à segurança, no entanto, Uliano pondera que não se trata de colocar policiais dentro das escolas. Segundo ela, a repressão policial e, especialmente, a militarização dos espaços públicos não pode ser a única resposta do Estado no combate às violências. “Não concordamos com um projeto que ventila-se nas falas do magistério, da intenção do governo, por exemplo, de trazer PMs para fazer a segurança das escolas. Tem um propósito desse governo de militarizar todos os espaços públicos, incluindo aí as escolas, e nós somos radicalmente contra essa possibilidade. Entendemos que uma escola segura é uma escola que está numa sociedade que respeita uns aos outros e que nós mulheres somos respeitadas por sermos quem somos”. 

A questão do respeito é, também para a educadora Elivane Secchi, um dos pilares da questão da violência, e o contexto atual em que atores públicos têm se manifestado de maneira desrespeitosa com relação às mulheres agrava ainda mais a situação. “Agora, não mais falando como professora ou dirigente sindical, mas como mulher e cidadã, um dos grandes motivos para o aumento dos feminicídios é que estamos sendo governados por homens brancos e de direita que fazem questão de difamar, de desonrar, de assediar mulheres em público. Eleitos para nos representar, vão em frente às câmeras e difamam, falam da moral de profissionais. Então eu acho que um dos grandes motivos é que nós temos representantes políticos que incentivam a violência contra as mulheres, e isso sim é um grave problema que a sociedade criou e que precisamos dar um fim”, analisa. 

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina (SSP-SC), em 2019, ocorreram 59 feminicídios, número 40% maior que o registrado em 2018, quando 42 mulheres morreram. Isso reflete o aumento mencionado pela professora Elivane. 

Para ela, o caminho para isso está em fomentar a discussão de gênero não só dentro dos muros escolares mas, também, para além deles. “Enquanto professora, quero reforçar que este é um tema que temos que discutir cada dia mais, nas escolas, nas famílias, na igreja, no espaço sindical, no partido político, em qualquer lugar que a gente esteja e que tenha espaço, nós temos que falar da mulher, da importância que ela tem na sociedade, na família e em toda a comunidade e o respeito que a gente deve exigir em relação às mulheres”, defende. 

Mobilizações 

Como resposta ao ocorrido, a sociedade de Florianópolis está se mobilizando. No sábado, 22, haverá uma passeata no bairro Campeche, a partir das 16h, saindo da Praça do Pacuca (esquina da Rua da Capela com a Pequeno Príncipe) em direção à EEB Januária.  Segundo o chamado feito por movimentos sociais e direcionado, especialmente, aos homens, é o momento de os homens se engajarem, também, contra a violência. “Precisamos reconhecer a importância de nos colocarmos, de maneira firme e corajosa, contra mais um feminicídio em nosso bairro. É hora de ação! Não podemos permitir esse tipo de violência gratuita e aceitar que somos SIM parte do problema. Pois é chegada hora de tentarmos fazer parte da solução.”

Outros atos estão sendo pensados juntamente com a programação do 8M Santa Catarina, que será divulgada em breve pelo Portal Catarinas.

 

 

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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