Nas últimas semanas, mais uma polêmica envolvendo a discussão de gênero na educação se desenvolveu em Santa Catarina. Após a aprovação do Currículo Base da Educação Infantil e Fundamental do Território Catarinense pelo Conselho Estadual de Educação, o governador Carlos Moisés declarou, em nota e em vídeo, seu veto ao que ele erroneamente chama de “ideologia de gênero” do documento.
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“É uma demonstração lamentável e inaceitável de profundo autoritarismo aliado a preconceito” diz André Ramos, secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de Santa Catarina (SBPC-SC), sobre a decisão do governador. A discussão começou quando, no dia 28 de agosto, deputados estaduais contrários à inclusão das questões de gêneros e diversidade se manifestaram em plenária. O texto possui apenas uma menção ao termo identidade de gênero, como conteúdo a ser explorado em Ciências da Natureza, no 8º ano do ensino fundamental.
Ainda no dia 28, a Secretaria de Educação publicou duas notas sobre a manifestação dos deputados estaduais. As notas são contraditórias. A primeira dizia que Currículo Base ainda não tinha sido homologado pelo governador e só seria aprovado após ser “totalmente revisado pela Secretaria de Estado da Educação e entidades que o elaboraram, a fim de assegurar que o termo ‘ideologia de gênero’ não seja pauta abordada nas escolas públicas estaduais catarinenses”. Já a segunda nota explicava que “nesse contexto, o termo ‘gênero’ trata das diferenças biológica, social e psicológica entre homens e mulheres e a ‘identidade’ de gênero, refere-se à identificação que a pessoa tem por determinado gênero – homem, mulher, ambos ou nenhum”. Terminava dizendo que “não há como confundir o conceito de ‘identidade de gênero’ com a expressão ‘ideologia de gênero”. Esta nota, no entanto, foi posteriormente editada, e a Secretaria manteve o texto conforme a primeira nota publicada.
No dia 02 de setembro, a SBPC-SC, junto com o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (IEG-UFSC), o Fórum Estadual Popular de Educação de Santa Catarina (FEPE-SC), o Comitê de Direitos Humanos do Instituto Federal de Santa Catarina (CDH-IFSC), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e outras seis entidades assinaram um manifesto público contra o veto no texto original, considerando que as manifestações dos deputados são “de natureza fundamentalista, que nada tem a ver com os debates qualificados dos profissionais da educação” e que, ao segui-las, “o governo esteja iniciando um movimento na contramão da escola democrática, científica e livre de preconceitos que todos defendemos”.
André Ramos, secretário regional da SBPC-SC, explica que as discussões sobre questão de gênero são importantes por fazerem parte da área científica e colaborarem com a manutenção da laicidade nas escolas, além de terem um papel social muito importante. “Não tratar isso na escola significa não usar o único espaço público, onde toda criança e todo jovem necessariamente tem que passar, que você pode garantir que todos vão ter as informações mínimas sobre essas questões”, afirma.
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Tratar as questões de gênero na escola é, também, uma forma de diminuir os custos sociais do Estado. Miriam Grossi, antropóloga e co-coordenadora do IEG-UFSC, salienta que, quando essa temática é abordada com crianças e adolescentes, a vulnerabilidade à violência no âmbito familiar e doméstico tende a diminuir, pois se sentem empoderados e seguros de denunciar. Além disso, passam a ter acesso a instrumentos de controle de natalidade e de doenças sexualmente transmissíveis. “É importante esclarecer todo esse delírio contra os estudos de gênero, como se fosse doutrinar as pessoas em relação às questões de gênero e sexualidade, pelo contrário, nós estudamos as formas sociais que produzem desigualdade”, completa.
A questão de gênero nas escolas e o avanço dos conservadores
A desinformação e a polêmica envolvendo questões de gênero e diversidade nos conteúdos escolares marcou a construção do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014 e que serve de alicerce para a construção da Base Nacional Comum Curricular. Na época, as bancadas religiosas afirmaram que essa questão, ligada à “ideologia de gênero”, colocaria em perigo o modelo da família tradicional.
A questão da identidade de gênero e orientação sexual também ficou de fora da Base Nacional Comum Curricular. Aprovada em dezembro de 2017, o documento excluiu as menções às questões de gênero e orientação sexual de trechos como o que diz respeito à temática “Vida e evolução”, inserida no ensino de ciências para o 8º ano.
A primeira versão, divulgada em abril de 2017, estava redigida como: “(EF08CI11) Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados nas diferenças de sexo, de identidade de gênero e de orientação sexual”. Já a versão aprovada mantém apenas a parte inicial da redação original: “Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética)”.
Apesar de ser um conceito sem respaldo acadêmico e científico, a “ideologia de gênero” ganhou espaço nas discussões, alavancada por movimentos como o Escola sem Partido e figuras políticas como Jair Bolsonaro e a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, também do PSL. A expressão foi cunhada como resultado da ofensiva transnacional da Igreja Católica contra a adoção da questão de gênero em conferências internacionais e políticas públicas, desde meados dos anos 1990, e adotada, a partir dos anos 2000, também por evangélicos neopentecostais na América Latina e grupos radicais de extrema-direita que são contra o debate de temas ligados à diversidade em várias partes do mundo. “O discurso que sustenta [a “ideologia de gênero”] é o da moralidade, a mulher no seu lugar, em casa, tendo que cuidar do marido, dos filhos. Essa reflexão sobre o gênero como algo que é construído socialmente, o gênero como algo que não é uma natureza com a qual a gente nasce e vai ser sempre assim, assusta o pensamento conservador”, analisa Miriam Grossi.
Conscientes do poder de engajamento dessa discussão para a base eleitoral formada por cristãos conservadores, nas últimas eleições, o termo foi amplamente difundido por vários candidatos, e esteve presente em toda a campanha do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro.
No último 3 de setembro, pelo Twitter, o presidente declarou que solicitou ao Ministério da Educação um projeto de lei para proibir a “ideologia de gênero” nas escolas.
No mesmo dia, o governador de São Paulo, João Doria mandou recolher materiais didáticos de escolas estaduais que mencionavam a questão da identidade de gênero e traziam informações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.
Para André Ramos, decisões autoritárias como a de Bolsonaro e dos governadores Carlos Moisés e João Doria são graves, pois indicam uma descaracterização do papel da escola na sociedade. “A escola deixou de ser um espaço democrático que prioriza um pensamento científico-crítico e passou a ser um lugar de preconceito”, conclui.
O Catarinas entrou em contato com o Conselho Estadual de Educação, mas o órgão não quis se pronunciar. A Secretaria de Estado da Educação, em nota, afirmou que na sexta-feira (6), integrantes do Comitê Estratégico do currículo, se reuniram e deliberaram a alteração do termo identidade de gênero, segundo eles, com “o objetivo de evitar ambiguidades e equívocos de interpretação em relação a conteúdos que versam sobre o conhecimento do corpo humano”.
*Essa reportagem foi elaborada por Luísa Michels, estagiária do Catarinas, sob supervisão de Morgani Guzzo.
Atualizada às 19h10 de 7 de setembro de 2019.