A nomeação do bolsonarista Rafael Nogueira para a presidência da Fundação Catarinense de Cultura (FCC) não é aprovada pela classe artística do estado. Natural de Santos (SP), Nogueira nunca trabalhou com questões culturais no estado e as experiências na gestão da cultura ocorreram durante o Governo Bolsonaro. Uma carta enviada ao governador Jorginho Mello (PL), assinada por 1233 artistas de SC, expressa o descontentamento com a indicação e pede que o governo reveja a nomeação do cargo à frente do principal órgão de cultura de Santa Catarina.
“Ressaltamos que Rafael Nogueira é figura exógena à cultura de nosso estado, não representa nenhum dos inúmeros setores da cultura catarinense, tampouco possui vínculos com a comunidade cultural do estado”, diz trecho da carta. O documento também questiona por que não houve a escolha de uma pessoa que conheça as diversas culturas do estado para a presidência da FCC.
Elaine Sallas, professora, produtora cultural e Conselheira Estadual de Cultura, afirma que o setor recebeu com indignação o nome. “Primeiro, pela demora para nomeação, que só ocorreu em fevereiro. Esse atraso na nomeação paralisou completamente a Fundação Catarinense de Cultura, porque não tinha gerência responsável ou ordenador que desse encaminhamento para as coisas. Em fevereiro, recebemos a notícia de que o presidente da fundação catarinense de cultura seria uma pessoa que, ao entender da classe, vai em desencontro com o que a gente vive enquanto realidade cultural no estado”, relata Sallas.
“Como artista catarinense me sinto violentada. Parece um eco dos últimos anos, que tivemos um governo que além de atacar e perseguir artistas, teve total descompromisso com as políticas públicas voltadas para a cultura”, protesta Loren Fischer, atriz, arte-educadora e poeta.
Em nota da FCC, Nogueira rebateu as críticas: “Ele destaca que não tem e nunca teve a pretensão de dizer que conhece Santa Catarina melhor do que os próprios catarinenses. No entanto, reitera que sua formação em história e suas pesquisas ao longo da trajetória pessoal e acadêmica deram um amplo conhecimento sobre o estado”.
Quem é Rafael Nogueira
Rafael Alves da Silva, que se apresenta como Rafael Nogueira, concluiu a licenciatura em Filosofia em 2004 e o bacharelado em Direito em 2008, ambos pela Universidade Católica de Santos. Especialista em Educação, Pesquisa e Docência para o Ensino Superior pela Universidade Metropolitana de Santos, é mestre em História do Direito pela Universidade Veiga de Almeida, concluído em 2022, e doutorando em Estudos Globais pela Universidade Aberta de Lisboa. Segundo o que ele registrou no Linkedin, entre 2009 e 2019, trabalhou como tutor e professor em diferentes instituições, passando por disciplinas relacionadas à política, filosofia e cultura clássica.
O cargo mais recente registrado na plataforma é o de presidente da Biblioteca Nacional, para o qual foi nomeado em dezembro de 2019 por Jair Bolsonaro. A gestão da Secretária Nacional da Cultura era de Roberto Alvim, que em janeiro de 2020, fez um pronunciamento imitando cenário e falas nazistas. Na época, servidores da Biblioteca Nacional criticaram a escolha de Nogueira pela falta de qualificações técnicas e não possuir os requisitos do cargo de possuir no mínimo cinco anos em atividades relacionadas a área e mestrado.
Em fevereiro de 2022, Nogueira foi exonerado e assumiu a Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural, na Secretaria Especial de Cultura. O relatório do grupo de transição descreveu que o setor da cultura foi um “dos principais alvos do desmonte promovido pelo governo Bolsonaro, com impactos negativos sobre o orçamento destinado à pasta, as estruturas públicas de gestão da cultura, o acesso e o exercício dos direitos culturais, e as atividades artísticas e dos trabalhadores da cultura”.
Mais de uma vez, Nogueira já se colocou como monarquista. Em 2019, na data em que se comemora a Proclamação da República, 15 de novembro, ele escreveu: “A Proclamação da República foi um golpe militar improvisado e injustificável. O Brasil nunca mais se encontrou. Nada a comemorar”.
O novo presidente da FCC também se considera aluno de Olavo de Carvalho, conhecido pelas teorias da conspiração. Em entrevista de 2019, ele contou que conheceu Olavo em 2003, durante uma palestra em Santos. “Ele parecia um Sócrates, trazendo reflexões com muita cultura e uma grande habilidade em mostrar onde estava nossa falta de sinceridade. Achei interessante continuar os cursos dele”, disse Nogueira.
Falta de conhecimento sobre o estado
O principal questionamento feito pelas entrevistadas do Catarinas não está diretamente relacionado às ideologias de Nogueira, mas ao fato dele nunca ter atuado na produção cultural de Santa Catarina. “Nós não esperávamos alguém que fosse progressista para pasta, mas pelo menos nós esperávamos alguém que tivesse um conhecimento sobre a dinâmica do mercado cultural de Santa Catarina e das especificidades de produção e de políticas públicas”, pontua a atriz Catarina Kinas, presidenta da Federação Catarinense de Teatro (Fecate), integrante da Rede Catarina de Palhaças e do Comitê das Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo no estado.
“Não tem qualquer pertinência ele estar na Fundação. Não porque ele não seja de Santa Catarina, mas porque ele não conhece o contexto local. Ele pode ter assessores para ajudar, mas de fato ele não conhece”, reforça Paloma Bianchi, artista da dança e Presidenta do Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis.
Zélia Sabino, produtora cultural e coordenadora do Festival Internacional de Teatro de Animação (FITA), destaca que houve ausência de diálogo com a categoria artística. “A indicação da nomeação a partir de uma perspectiva política faz parte do mundo político. Porém, essa indicação sempre leva em conta a perspectiva da categoria da qual esse cargo faz parte”, cita.
Catarina Kinas recorda que para se inscrever em um edital público de cultura de Santa Catarina, o artista precisa comprovar no mínimo dois anos de residência no estado. Isso ocorre por exemplo no edital Aldir Blanc.
“Esse precisaria ser o critério básico para um gestor, alguém que no mínimo tenha dois anos de vivência em Santa Catarina, para ter, no mínimo, integração”, destaca a presidenta do Fecate.
Em nota enviada ao Catarinas, a FCC diz que “desde semana passada, estão ocorrendo conversas com servidores de carreira da Fundação Catarinense de Cultura (FCC) e com representantes de diferentes áreas do setor cultural. Não procede a informação de que não há diálogo”.
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Essa informação é contestada pelas entrevistadas do Catarinas, que atuam em diferentes áreas da cultura de Santa Catarina. “Ele está usando pequenos encontros, que a assessoria de governo agendou, para divulgar que ele está conversando com a classe. Mas de fato, ele não chamou o setor para conversar”, problematiza Bianchi.
Cultura datada
Apesar das tradições europeias serem as mais difundidas pela mídia hegemônica, Santa Catarina é dividida em seis regiões e possui uma pluralidade cultural. “Se uma pessoa vem com pensamento conservador, existe uma tendência a focar apenas no recorte colonial do que seria a cultura catarinense: alemães e italianos. E temos aqui várias manifestações de culturas que estão em outros recortes”, manifesta Sallas.
A presidenta da Federação Catarinense de Teatro critica as relações que Nogueira fez generalizando as questões culturais do estado como fundamentalmente de turismo. “A gente tá falando de alguém que olha para a cultura de modo meramente econômico e elitista”, diz.
Em entrevista após ser anunciado como presidente da FCC, Nogueira disse que pretende estimular a economia criativa do estado, a partir da criação de um calendário. “O estado tem grande potencial para desenvolver atividades criativas na música, gastronomia, artesanato, cinema, literatura, etc. Vamos montar um calendário das festas, organizá-las e promovê-las, com ampla divulgação estadual e nacional”.
A partir disso, a presidenta da Fecate demonstra preocupação com a não valorização da cultura em suas dimensões para além daquelas consideradas festivas.
“A narrativa dele atrela cultura a turismo e a eventos. Mas a cultura é muito mais do que isso. Cultura é a identidade de um povo, é a possibilidade de integração das pessoas com os seus modos de fazer e viver e a possibilidade de sensibilizar cotidianos”, assinala Kinas.
A arte-educadora Loren Fischer interpreta que as falas de Nogueira mostram predileção por determinadas culturas em detrimento de outras. “Deveria ser critério a escolha de um nome que tenha verdadeiro compromisso com a gestão da cultura no estado, entendendo a diversidade de manifestações culturais”, acredita Fischer.
Carnaval pela perspectiva do estigma
Após o anúncio de Nogueira como presidente da FCC, repercutiram tweets antigos em que ele criticava o Carnaval. “Aí começa o Carnaval e vai todo mundo correndo, com igual ou maior desespero, trocar fluídos e pega herpes, gonorreia, sífilis, Aids”, escreveu em 2018. “Acho o Carnaval uma bela merda. Sempre achei”, twittou em 2013.
No Instagram, ele rebateu as críticas relacionadas a esses comentários. “As publicações antigas, com generalizações e frases de efeito, que estão usando contra mim, criticam uma só forma de viver o carnaval, não todas, e mesmo isso está num contexto, não diz nada a ninguém hoje, é datado. Sempre me reservei o direito de não fingir para mim gostos que não tenho, só que a minha opinião sobre qualquer coisa deve ser auferida aqui e agora, não por postagens antigas”, escreveu.
“Se uma pessoa não entende a complexidade do carnaval, que é uma manifestação nacional gigantesca e que movimenta o país de uma forma grandiosa há muito tempo, como é que ele vai entender a complexidade da diversidade do estado de Santa Catarina?”, questiona Sallas.
Kinas, da Federação Catarinense de Teatro, afirma não ficar surpresa com os comentários, como estão relacionados com as ideologias que Nogueira segue. “Os comentários que ele faz sobre o carnaval estão ideologicamente alinhados com esse higienismo, que faz parte dessa onda conservadora, que faz distinção entre o que é bom, o que é belo, o que pode e o que não pode, tanto nos aspectos artísticos culturais, quanto culturais de costume”, descreve a atriz.
Os comentários repercutiram poucos dias antes do Carnaval de 2023, que marca o retorno das festividades pós pandemia.
“Eu vejo que esse posicionamento dele não só tem a ver com o racismo estrutural, mas também é preconceituoso. O carnaval é muito plural e incomoda quem efetivamente não quer pensar na adversidade e na pluralidade das pessoas”, coloca Gabriela Carvalho, doutorando em história pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
“Se ele diz que o carnaval é uma ‘bela duma merda’, ele está desmerecendo uma infinidade de pessoas, de artistas, de estruturas que funcionam pra se colocar o maior espetáculo da Terra na passarela”, critica Elaine Sallas.
Cultura é democracia
A presidenta da Federação Catarinense de Teatro alerta para a incompatibilidade entre a promoção da cultura e a defesa da monarquia feita pelo nomeado. “A cultura é por essência democrática, porque fazemos em perspectiva de compartilhamento com o público com a população”, explica a atriz.
“Ele acredita na monarquia. A princípio, já é antidemocrático. Na questão da cultura, você ser antidemocrático é um lugar absurdo, porque se tem um lugar que tem que prezar pela diversidade, pela importância das diferentes manifestações e saberes, é na cultura”, complementa Bianchi, que também é doutora em Teatro pela Udesc. O Catarinas questionou Nogueira sobre os posicionamentos monarquistas, mas não foi respondida sobre esta questão na nota de retorno.
Para a produtora cultural, Zélia Sabino, a nomeação é sintomática do desprezo à democracia representado na gestão da Secretária Nacional de Cultura do governo Bolsonaro.
“Fazer parte de um governo que prioriza certas linguagens artísticas e certos artistas em detrimento a outros, não nos parece uma política inclusiva e plural de que Santa Catarina precisa”.
Kinas destaca que questões como essa não afetam somente produtoras e produtores de cultura, como também toda a população. “A gente precisa virar essa chave de que cultura é gasto, cultura é investimento. O ecossistema cultural econômico é importantíssimo porque direta ou indiretamente emprega as pessoas, faz as pessoas terem uma vida melhor e ter seu ganha pão”, destaca Sallas.
Sistema Estadual de Cultura
Na carta enviada a Jorginho Mello, além de pedir que o governador reconsidere a nomeação, o setor também apresenta outras demandas: a consolidação e implementação das instâncias e instrumentos de gestão previstas à luz da Lei 17.449, de 2018, que instituiu o Sistema Estadual de Cultura, e a continuidade e ampliação dos investimentos das políticas públicas já instituídas contínuas.
Também pedem que haja a estruturação e organização da FCC com ampliação, valorização e investimento no quadro técnico e em equipamentos. Por fim, propõem que haja o fortalecimento e ampliação dos canais de comunicação com as instâncias representativas, principalmente com o Ministério da Cultura, Conselho Estadual, Conselhos Municipais, fóruns e instituições representativas do setor. “Aprofundar a diversidade e os tipos de cultura que existem no estado de Santa Catarina é o mais importante”, destaca a conselheira estadual de Cultura, Elaine Sallas.
“Precisamos de uma pessoa que sabe onde fica Abelardo Luz e o Teatro Seu Vicente Telles, que conheça a história de São João dos Pobres, da Catumbi de Itapocu, dos Ternos de Reis, a Festa do Divino, as danças específicas, a produção artística indígena do nosso estado. Essa quilometragem é muito importante para você ter a dimensão da grandeza, da complexidade, da cultura catarinense”, exemplifica a produtora cultural.
A integração da gestão estadual de cultura com a federal, também foi citada pelas entrevistadas como algo prioritário. “Precisamos de alguém com uma visão ampla, que faça a manutenção e ampliação das políticas já existentes, como os editais Anderle e Catarinense de Cinema, o Programa de Mecenato, o Programa de Integração e Descentralização da Cultura, entre outros. E que, juntamente com a categoria artística, amplie e gerencie os recursos dos novos editais que estão por vir: Lei Paulo Gustavo e Lei Aldir Blanc II”, propõe a produtora cultural Sabino.