Pesquisas recentes têm mostrado que Santa Catarina é um dos estados do país em que proliferam grupos neonazistas. Também é um dos estados em que os partidos mais conservadores têm encontrado maior adesão e votação, inclusive elegendo deputados e deputadas que se colocam como antifeministas, conservadores e de direita, de forma explícita.

Esse tipo de ideologia se baseia grandemente em teorias que envolvem a ideia da supremacia branca, que discrimina as pessoas negras, indígenas, judias, asiáticas, ciganas como se fossem, de alguma maneira, “inferiores” às pessoas de origem europeia. Da mesma forma, baseia-se no patriarcado, um sistema que estabelece a superioridade dos homens sobre as mulheres e crianças. E na heterossexualidade compulsória, que exclui todas as existências que não se conformem a essa norma cultural, as subjetividades, os desejos e os corpos chamados queer.

Existe uma crença em Santa Catarina, muito reforçada pela historiografia, de que este seria um estado branco, cuja maioria da população teria como origem a Europa, um povo acima de tudo trabalhador e responsável pela prosperidade, pela indústria, agricultura e desenvolvimento econômico. A história de SC tem sido contada de forma a corroborar essa crença e o turismo vende Santa Catarina como um “pedacinho da Europa” no Brasil.

São os imigrantes, açorianos, alemães e italianos, principalmente, que são invocados na historiografia e em muitos outros materiais didáticos, turísticos e de propaganda política, como fundadores e pilares da sociedade catarinense.

Por isso é extremamente necessário o estudo sério da história de Santa Catarina, nas escolas de todos os níveis, públicas e privadas, e a produção de materiais didáticos e acessíveis a toda a população. Mas não um estudo baseado na historiografia tradicional.

É necessário ensinar uma história que mostre que pessoas de vários povos indígenas ocuparam essa região há pelo menos cinco mil anos, construindo grandes monumentos, os sambaquis, alguns comparáveis a pirâmides e até mesmo maiores.

Que ensine que há milhares de anos, os grupos indígenas que aqui habitavam tinham línguas próprias, praticavam a agricultura, faziam cerâmica e cestaria, construíam casas e abrigos de vários formatos. Viajavam por diferentes caminhos e se comunicavam com outros povos, como por exemplo, os do império Inca, no que hoje constitui a Bolívia e Peru. 

A chegada dos primeiros europeus, num primeiro momento foi acolhida com curiosidade e até pena daqueles homens famintos e sujos que aqui chegavam em grandes canoas. Mas, aos poucos, virou uma guerra e uma invasão que não terminou ainda. Muitos homens, mulheres e crianças, muitas pessoas indígenas foram mortas por armas ou doenças trazidas pelos europeus, foram capturadas e escravizadas, levadas para outras regiões onde eram chamados de “negros da terra”.

Que mesmo quando a escravização de indígenas era proibida por leis, e até a primeira metade do século 20, era comum que meninas e mulheres indígenas, eventualmente também meninos, fossem capturadas pelos “bugreiros” (isso mesmo, existiam pessoas que tinham como profissão matar indígenas!). E mesmo assim, os Guarani, Xokleng-Laklãnõ e os Kaingang sobreviveram e continuam em sua luta incansável, resiliente, incrível, por sua manutenção cultural e física, por seus territórios e corpos.

Uma história que mostre que africanos foram trazidos para Santa Catarina, pessoas escravizadas, para trabalharem na indústria da caça à baleia franca que foi importante no século 18 e 19. Que trabalharam na agricultura, no pastoreio de gado, na navegação, no comércio e na indústria, por todas as regiões, mesmo aquelas que negam sua existência.

Que dê o devido lugar de destaque para pessoas excepcionais como o grande poeta, jornalista e abolicionista João da Cruz e Sousa e a primeira deputada estadual, professora, poetisa e jornalista Antonieta de Barros, mas que também reconheça as existências anônimas das quitandeiras, lavadeiras, estivadores, marinheiros, pedreiros, operários. E que reconheça sua presença na população catarinense atual, suas religiões, suas tradições, sua memória.

Que nesta história haja lugar para os caboclos e caboclas que lutaram uma das maiores guerras civis no Brasil, a Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916, contra o exército brasileiro e milícias dos fazendeiros, com ideias de uma vida em comunidades.

Caboclos, gente negra, indígena e branca, misturada, que viviam como posseiros por todo Planalto, meio oeste e oeste de Santa Catarina, e que ainda vivem, no campo e nas periferias das cidades grandes. Que colhiam a erva-mate, trabalhavam nas madeireiras, faziam trabalhos diversos, e hoje estão muitas vezes nos frigoríficos, no trabalho pesado do campo, nos trabalhos de limpeza das cidades, sem direito à terra. 

Uma história que permita que se enxergue a importância das mulheres, como trabalhadoras em todos os lugares e inclusive no essencial trabalho de cuidado que dificilmente é reconhecido como trabalho.

Como artistas, comerciantes e operárias das fábricas têxteis, do ramo da alimentação e agroindústria. Como camponesas e professoras. Que se estude seus movimentos sociais e as suas formas de participação política, sindical, cultural. Um conhecimento que admita a existência de pessoas que não se conformaram com as amarras de gênero e sexualidade, pessoas trans, homossexuais e queer, que participaram da vida social, politica, cultural e econômica tanto quanto as que não foram assim classificadas pelo cis-hetero-patriarcado.

Uma história que enxergue a migração de pessoas que vieram de outros estados, e que se tornaram trabalhadoras nas indústrias, nas minas, nos serviços, ao longo dos séculos 20 e 21, com o mesmo valor daquelas que migraram da Europa no século 19 e início do 20. Todes vieram em busca de melhores condições de vida e de terra, nem todes conseguiram, mas contribuíram e contribuem para o que é hoje este estado.

Um estudo que fale de trabalhadoras e trabalhadores e não só de empresários, de camponesas e camponeses e não só de fazendeiros, de líderes populares e não só de políticos.

Que fale de quem resistiu à ditadura, de quem foi preso por fazer greve, de quem protestou contra a escravidão e a exploração. Que fale também do que as pessoas sentiam, dos seus sonhos e esperanças, pois são esses sonhos e desejos que podem nos mover em busca de um estado que admita sua riqueza cultural e que valorize a história de todes.

Muito tem sido produzido nas universidades, mas existe um grande abismo entre essa produção e as apostilas dos colégios, os livros didáticos, os programas de televisão, as reportagens dos jornais e as informações turísticas. É muito necessário que o conhecimento produzido chegue nas pessoas, essa é uma dívida que temos com as mulheres e homens que viveram as suas vidas anônimas, que sofreram, trabalharam e tiveram suas alegrias e amores, amizades e medos. A dívida de uma memória diversa, de uma história que nos ensine a valorizar essa Santa Catarina propositalmente esquecida por quem quer manter seu poder político e econômico e sua família patriarcal. É preciso estudar muita História de Santa Catarina.

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WOLFF, Cristina Scheibe. Índias e Brancos no Sul do Brasil – reflexões sobre a memória e a construção de identidades. In: Renato Lopes Leite. (Org.). Cultura &Poder: Portugal – Brasil no século XX. Curitiba: Juruá, 2003, pp. 37-51. Link

Entre também no site do LEGH – Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, no canal Gênero e História do Youtube  e no site do IEG – Instituto de Estudos de Gênero da UFSC  e conheça a Revista Santa Catarina em História. Veja ainda https://floripaarqueologica.com.br/.

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Palavras-chave:
  • Cristina Scheibe Wolff

    Professora de História de Santa Catarina no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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