A Nhandesy Kunhã Yvoty busca apoio em uma rede de solidariedade por justiça socioambiental e de gênero que perpassa o território indígena. Participa da Mobilização Luta pela Vida de 22 a 28 de agosto em Brasília.
A idosa Lucia Assis Morais, 79 anos, conhecida como Dona Lulu e Nhandesy Kunhã Yvoty, é uma mulher indígena Guarani e Kaiowá, de Amambai, Mato Grosso do Sul. Seus conhecimentos tradicionais de plantas medicinais, partos com gestantes, curas, cantos e rezas na língua de seu povo fizeram com ela se tornasse muito respeitada pelos acolhimentos a outras mulheres. Na luta diária por manter sua identidade e dar continuidade às suas práticas ancestrais, ela coloca seus conhecimentos da terra, do fogo, do ar e das águas a favor da vida de seu povo.
Acusada de bruxaria por parentes evangélicos ligados à Missão Evangélica Presbiteriana Caiuá, por praticar sua religiosidade indígena e ter uma casa de reza tradicional, ela busca apoio em uma rede de solidariedade por justiça socioambiental e de gênero. Um de seus agressores é o cunhado e vizinho, Rosenildo Alves Franco, que já foi condenado por violência doméstica contra ela. A vida dela segue em risco.
No início deste ano, Dona Lulu sofreu violência doméstica por parte do cunhado, que é casado com sua irmã. Segundo apuramos, ele anda armado e planta ilegalmente, utilizando agrotóxicos na Terra Indígena de Amambai (MS). Pela proximidade com o capitão da aldeia, a polícia indígena local, instituída como uma milícia, ameaça e tenta coagir a idosa a abandonar a sua residência, o seu território e os seus conhecimentos tradicionais.
“A reza sempre vem primeiro, então vamos rezar”, diz a nhandesy Dona Lulu em um vídeo gravado em Guarani, e traduzido por parentes, enviado à nossa equipe de reportagem. “Venho dizer a vocês que estou sofrendo por conta do desrespeito à minha reza. Aqui dentro da aldeia eu sofro. Estão favorecendo o homem que me agride, acobertam o agressor. Eu choro a vocês pedindo ajuda. As pessoas me perseguem, me chamam de macumbeira, bruxa, macaca, bugio, mas eu não faço mal a ninguém. Estou sofrendo muito. Tirem ele de perto de nós. Eu preciso de ajuda para tirar o agressor de perto da minha casa, onde eu vivo”, implora Dona Lulu.
Lei Maria da Penha embasa laudo antropológico
Um laudo antropológico feito pela Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul, no Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica (NUPIR), solicitou em 19 de janeiro de 2021, uma medida protetiva em caráter de urgência para a nhandesy, Dona Lulu, pela Lei Maria da Penha. O cunhado que já esteve preso em razão da violência contra a idosa, mas segue descumprindo a decisão judicial.
O laudo, um dos primeiros a estarem ancorados na Lei Maria da Penha para questões indígenas no estado, revela, em entrevistas com as mulheres indígenas de Amambai, que mais de 60 igrejas pentecostais estão atuando na região. Por não aceitar a religiosidade indígena esses cristãos investem na violência para tentar “convertê-las”. Um dos netos da idosa sofre muitos preconceitos por ser LGBTQIA+. Segundo o documento, muitas famílias indígenas se tornaram adeptas ao cristianismo nesse processo.
“Foi nessa conjuntura que inúmeras famílias extensas se converteram ao pentecostalismo, porém, esse sistema religioso dos karaí (não-índio) não foi incorporado na sua integralidade, com a multiplicação dos números de igrejas, cada uma assumia um formato da família extensa ou grupo de parentesco, ressignificando esses novos espaços vinculados a fé. A maior parte das pesquisas que abordam essa temática se referem à expansão das igrejas neopentecostais na Reserva Indígena de Dourados (RID)”, analisa o laudo antropológico.
Neste ano, a comissão das mulheres indígenas Guarani e Kaiowá, Kunhangue Aty Guasu, publicou um relatório denunciando perseguições, torturas e espancamentos praticados por integrantes da igreja pentecostal Deus é Amor, atuante por todo o Brasil e em muitos países.
“Essas mulheres têm seus cabelos cortados por faca, carregam hematomas físicos profundos em suas cabeças e em muitas outras partes do corpo. Nos processos de ‘condenação’ pelos neopentecostais, seus joelhos podem ser vistos sangrando, suas casas são queimadas, elas são expulsas das comunidades e carregam consigo traumas de violência psicológica brutal, temendo serem queimadas vivas, enforcadas e mortas. São insultadas e xingadas de bruxas e de feiticeiras”, relata o documento.
As mulheres indígenas reivindicam leis específicas contra as violências, pois além de não serem acolhidas nas denúncias nas delegacias sofrem a falta de proteção dentro das aldeias, já que a hierarquia de poder estabelecida pelos homens dificulta o acesso à justiça.
“As igrejas estão entrando em massa nas comunidades indígenas, inferiorizando a cultura tradicional e desvalorizando os conhecimentos tradicionais de nosso povo. Os pastores usam as igrejas como instrumento para impedir e desorganizar uma estrutura tradicional que o povo Kaiowá e Guarani vêm ao longo do tempo, lutando para reconstruir – a despeito das graves consequências deixadas pela colonização que segue forte contra nossos corpos, costumes e tradições. Exigimos das instâncias jurídicas nacional e internacional que apurem com urgência todos os ocorridos de violência contra os nossos corpos. Nossas anciãs estão correndo risco de vida e com elas, também nós!”, reivindica o documento.
A extrema direita, o fundamentalismo religioso e o agro pop
Desde que o Estado avançou em direção ao interior do Brasil, nos anos 1960, os Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul estão em perigo, vivendo constantes vulnerabilidades. A partir desse momento as missões evangélicas se consolidaram, junto com a expansão do cultivo de erva-mate, da criação de gado e da plantação da monocultura da soja pelo agronegócio, muitas dessas famílias indígenas foram expulsas de suas terras, e aldeias inteiras desapareceram, assim como toda a floresta da região. O empobrecimento dessas populações se agudizou e muitos indígenas foram explorados como mão de obra escravizada. As mulheres indígenas e seus conhecimentos foram profundamente afetados nesse contexto, mas elas resistem.
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Durante a apuração desta matéria algumas pessoas na localidade não quiseram se identificar, pois ainda ocorrem perseguições e retaliações contra apoiadores da causa indígena na região. A extrema direita tem ditado as regras e algumas relações se tornaram insustentáveis, justamente em razão da pressão que o fundamentalismo religioso aliado ao agronegócio têm exercido na cidade.
Conforme relatos, o vereador indígena Jayson de Souza Morais, conhecido como Tato Souza (PT), quanto o capitão da polícia indígena, posto de uma herança militar, João Gauto, atuam na localidade contra a idosa e a favor do cunhado agressor. Esse grupo de poder tem interesses particulares nas terras que são por direito de Dona Lulu.
Em 8 de agosto deste ano, um vídeo gravado por familiares mostra que esses homens foram até a casa de reza da nhansesy para ameaçá-la novamente. Cinco dias depois, o Tribunal de Justiça determinou uma audiência online de conciliação que não pôde ser realizada por ausência das partes. Em 20 de agosto, a juíza substituta que está atuando na 1ª Vara de Amambaí, Sabrina Rocha Margarido João, solicitou o encaminhamento da conclusão do processo.
“A nhandesy Dona Lulu é uma pessoa de grande importância por ser uma rezadora, por ser parteira, ela vem sofrendo ameaça por parte de um familiar que não aceita a sua tradição, as suas rezas. Tem sido chamada de bruxa, de feiticeira, vem sendo hostilizada por exercer a sua tradição cultural dentro do seu território. As providências legais já foram tomadas, mas a justiça está morosa. É difícil ver ela sem a possibilidade de circular em seu território. Ela acolhe as pessoas e é uma pessoa muito importante dentro da aldeia. É uma senhora idosa e tem vários direitos sendo tolhidos, o direito das mulheres, direito dos idosos, o direito de exercer sua religiosidade, são vários direitos sendo feridos”, conta uma moradora da região.
A Nhandesy Kunhã Yvoty é a guardiã da sabedoria Guarani e Kaiowá
Conselheira da Kuñangue Aty Guasu, Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá, Dona Lulu sempre participa dos encontros de mulheres e do fortalecimento da luta pelos direitos das mulheres indígenas. Ela orienta as mais novas, mostra bons caminhos possíveis e acredita na organização coletiva do tekoá porã pelo Bem Viver.
Para se tornar uma nhandesy, guardiã da cultura e dos saberes tradicionais, Dona Lulu dedicou sua vida a estudar os conhecimentos e benzeduras que promovem a cura, um fazer muito admirado e valorizado entre os Povos Indígenas. Hoje, formada como nhandesy, o seu trabalho faz a diferença dentro dos Territórios Indígenas.
O Coletivo Terra Vermelha é uma das organizações que acompanha e apoia as nhandesy Guarani e Kaiowá no estado. Uma rede feminista de mulheres que atua constantemente contra as violências.
Conforme a antropóloga que integra o coletivo e o NUPIR, Priscila de Santana Anzoategui, a nhandesy Dona Lulu, conhecida por cultivar plantas medicinais, procurou a defensoria pública para denunciar o cunhado. O homem planta na terra dela sem autorização, com uso de agrotóxico e máquinas agrícolas, passando por cima do cultivo de plantas medicinais.
“Analisando esse processo eu percebi que além da violência em si, acontecia uma disputa do terreno onde ela morava. Ela deixou o cunhado morar de favor por um tempo, ele foi plantando na área sem a autorização. Eu acho que é aí que começa esse conflito, e foi se agravando porque ele é evangélico e não aceita que ela é nhandesy. Isso piorou porque ela tem muito prestígio na comunidade. Construíram essa casa de medicina tradicional. Foi uma coisa muito simbólica e ele percebeu que não seria tão fácil expulsá-la de lá. Foi aí que ele começou as ameaças”, contextualiza a antropóloga.
“Eu não sei se a justiça dos brancos vai conseguir resolver essa situação. Ela sofre muito porque acha que não tem mais onde pedir ajuda. É uma ameaça constante, ela está desprotegida”, acrescenta Priscila.
De acordo a antropóloga, as leis precisam ser construídas para contribuir com a segurança das mulheres indígenas. “É um caso que mostra que a legislação não salva as mulheres, principalmente indígenas e negras, e que se a Lei Maria da Penha não tiver esse recorte não vai ter eficiência. Esse recorte só pode ser feito com a própria participação das mulheres indígenas, porque a lei não foi construída com essa participação. O sistema de justiça ainda exclui essas mulheres”, relata.
Demissões em massa e desmonte das políticas públicas
O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) no Mato Grosso do Sul foi ocupado por militares em uma estratégia genocida de desmonte das políticas públicas direcionadas aos Povos Indígenas. Uma decisão imposta pelo governo atual que desconsidera a cultura e a cosmovisão dos indígenas, anulando todos os trabalhos desenvolvidos ao longo de anos por profissionais comprometidos com a atenção básica à saúde indígena pelos parâmetros culturais.
Leia a denúncia da ocupação do DSEI/MS por militares na Série Fundamentalismos. Clique aqui.
De acordo com a apuração de nossa equipe, capitães indígenas e os agressores de mulheres e crianças formaram um complô para demitir profissionais de saúde que atuavam contra as violências domésticas. Profissionais que apoiavam as vítimas, muitas delas mulheres indígenas que se divorciaram por reconhecerem os seus direitos. Inclusive ações em prol da medicina tradicional, pelo uso de plantas medicinais e acompanhamento à gestante com a nhandesy Dona Lulu, foram encerradas por imposições machistas.
“É muito delicado por conta do cenário do governo, do posicionamento que o governo tem. Nesse processo de perseguição à essa parteira acabaram punindo toda a rede de cuidado. Todas as mulheres que estiveram em torno desse caso foram violadas. É uma perseguição com quem visibiliza o cuidado tradicional. Traz preocupação, inclusive riscos emocionais à família, às crianças, jovens e idosas Guarani e Kaiowá”, relata uma pessoa da região que não quis se identificar.
A Articulação dos Povos Indígena do Brasil (APIB) denunciou as demissões de profissionais indígenas e não indígenas que estão acontecendo no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), Mato Grosso do Sul, desde o final do ano passado, pois são consideradas injustificáveis já que estavam comprometidos com a cultura indígena dentro dos territórios.
A enfermeira indígena Indianara Kaiowá, coordenadora técnica do Polo Base de Dourados e mestranda da USP; a enfermeira Liliane, responsável técnica da DIASI/DSEI-MS, com 17 anos de experiência na Saúde Indígena; da Psicóloga Paula, do Polo Base de Amambai, especialista em Saúde Indígena pelo Programa de Residência em Saúde Indígena do HU-UFGD, são alguns exemplos dentre os mais de quinze profissionais comprometidos com a saúde indígena que foram obrigados a deixar os seus postos de trabalho.
“Não bastasse todo este espetáculo de arbitrariedades, a coordenação do DSEI MS tem desconsiderado o posicionamento do Conselho Distrital de Saúde Indígena do MS (CONDISI MS) que repudiou, em Ofício enviado à SESAI com cópia para o Ministério Público Federal em 27 de janeiro de 2021, estas demissões e outras tantas decisões autocráticas, ignorando a participação e controle social dentro da política indígena/indigenista. E por isso perguntamos: Quem ganha com o desmonte da Saúde Indígena no Mato Grosso do Sul?”, questiona a nota de repúdio denunciando o desmonte da Saúde Indígena.
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