Desigualdade de gênero deve ser levada em conta na elaboração de medidas para conter a pandemia
Os impactos e implicações da pandemia do Covid-19 recaem de forma desigual sobre corpos de meninas e mulheres é o que alerta o documento COVID-19 na América Latina e no Caribe: como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise, da Organização das Nações Unidas (ONU). Diante dessa constatação, o órgão faz 14 recomendações para garantir que as ações de mitigação levem em conta a histórica desigualdade de gênero nesses países. Leia o documento na íntegra.
As mulheres mais expostas ao COVID-19 precisam ser envolvidas em todas as fases da resposta e nas tomadas de decisão nacionais e locais, como recomenda a organização. São elas as trabalhadoras do setor de saúde, trabalhadoras domésticas, mulheres na economia informal, migrantes, refugiadas e mulheres em situação de violência.
O documento aborda as dimensões de gênero na resposta à pandemia a partir dos eixos mulheres e impacto econômico, violência contra as mulheres e mulheres, saúde e trabalho.
“Garantir a disponibilidade de dados desagregados por sexo e análise de gênero, incluindo taxas diferenciadas de infecção, impactos diferenciados da carga econômica e de assistência, barreiras de acesso das mulheres e incidência de violência doméstica e sexual”, é a primeira recomendação.
Segundo a organização, em um contexto de emergência, aumentam os riscos de violência contra as mulheres e meninas, especialmente a violência doméstica, diante do acirramento das tensões em casa. “As sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e serviços essenciais (…). O impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para deixar um parceiro violento, além de mais risco à exploração sexual”.
No Brasil, país cuja população feminina sofre violência a cada quatro minutos e em 43% dos casos acontecem dentro de casa, essa preocupação é ainda mais real. Para se ter uma ideia, enquanto em uma semana sete pessoas morreram por conta do coronavírus em São Paulo, cinco mulheres eram vítimas de feminicídio no mesmo estado.
Conforme apuramos na matéria “O Cárcere feminino do coronavírus”, o fechamento dos aparelhos do Estado pode contribuir com o aumento da violência contra as mulheres. Em Florianópolis (SC), por exemplo, as vítimas que precisarem sair da suas casas não poderão contar com o abrigo, ou mesmo fazer o exame de corpo de delito para comprovar a agressão.
A ONU destaca que é importante garantir o acesso a serviços e cuidados de saúde sexual e reprodutiva. Para as meninas e mulheres, ainda mais expostas à violência sexual pelos familiares, o acesso à prevenção de doenças e gravidez e ao aborto legal, que em situações normais já é cerceado no país, tende a ser ainda mais dificultado em casos de pandemia, segundo o documento da ONU. Recentemente, o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, interrompeu o serviço de aborto legal como medida frente à epidemia. “Dados de pandemias anteriores indicam que os esforços de contenção frequentemente desviam recursos dos serviços de saúde de rotina, exacerbando a falta de acesso aos serviços, incluindo cuidados de saúde pré e pós-natal e contraceptivos”, avaliam.
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São as mulheres as que estão na linha de frente dos trabalhos considerados essenciais, atuando principalmente como enfermeiras, médicas, socorristas, voluntárias da comunidade e prestadoras de cuidados. Por isso, a ONU recomenda a garantia das necessidades básicas dessas mulheres, que envolve o acesso a “informações, equipamentos de proteção individual e produtos de higiene menstrual e promover modalidades flexíveis de trabalho”.
A ausência de máscara, álcool gel e até itens básicos de higiene, como sabonete líquido, nos hospitais brasileiros, reportada recentemente no Fantástico (Rede Globo) e outros veículos, confirma a relevância da preocupação com a proteção dessas mulheres que são maioria entre os profissionais de saúde.
São, também, as mulheres as mais afetadas pelo trabalho não-remunerado de cuidado e reprodução da vida, principalmente no contexto atual em que crianças, idosos e pessoas doentes devem ficar em confinamento. Além disso, segundo o documento, o fechamento das escolas e projetos de contraturno escolar que garantiam alimentação às crianças deve ser considerado pelo Estado como barreira à segurança alimentar dessas famílias.
A fome não espera: a força tarefa numa periferia de Florianópolis
Muitas trabalhadoras, para as quais recai o sustento das filhas e filhos, têm que lidar também com a ausência de garantias sociais por exercerem trabalhos informais. As domésticas, por exemplo, que são mais de cinco milhões no país, em sua grande maioria negras, estão entre continuar o trabalho de cuidado da casa e dos filhos das patroas brancas, e se exporem à contaminação, ou ter de lidar com a ausência de remuneração, já que a grande maioria vive na informalidade.
No Brasil há que considerar, também, a situação das mulheres que vivem nas periferias em situação de exceção de direitos, que agora se veem ainda mais inseguras diante do fogo cruzado entre os poderes do tráfico, das milícias e do braço armado do Estado. Não podemos esquecer das moradoras de rua, das mulheres das ocupações, das sem terra e sem teto, das trabalhadoras do sexo, das mulheres indígenas e das quilombolas, já vulnerabilizadas e expostas à disputas de território, violências social, estatal e latifundiária.
Leia o resumo das 14 recomendações:
1- Garantir a disponibilidade de dados desagregados por sexo e análise de gênero.
2 – Garantir a dimensão de gênero na resposta requer a alocação de recursos suficientes para responder às necessidades de mulheres e meninas.
3 – Envolver as mulheres em todas as fases da resposta e nas tomadas de decisão nacionais e locais.
4 – Garantir que as necessidades imediatas das mulheres que trabalham no setor da saúde sejam atendidas.
5- Promover consultas diretas com organizações de mulheres para enfrentar a pandemia, garantindo que suas opiniões, interesses, contribuições e propostas sejam incorporadas à resposta.
6 – As mensagens de saúde pública devem alcançar as mulheres em sua diversidade e atender às necessidades das mulheres em seus diferentes papéis.
7 – Tomar medidas para aliviar a carga das estruturas de atenção primária à saúde e garantir o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo a atenção pré-natal e pós-natal.
8 – Adotar medidas de compensação direta para trabalhadoras informais, incluindo trabalhadoras da saúde, trabalhadoras domésticas, migrantes e dos setores mais afetados pela pandemia.
9 – Promover medidas de políticas que permitam reconhecer, reduzir e redistribuir a sobrecarga de trabalho não-remunerado que ocorre nas residências com cuidados de saúde e atendimento a meninas, meninos, pessoas idosas e pessoas com deficiência.
10 – Promover estratégias específicas para o empoderamento e recuperação econômica das mulheres, considerando programas de transferência de renda.
11 – Adotar medidas que permitem garantir o acesso das mulheres migrantes e refugiadas aos serviços de saúde, emprego, alimentação e informação.
12 – Priorizar serviços básicos multissetoriais essenciais, incluindo serviços sociais, de alimentação e saúde, bem como medidas adequadas para uma gestão decente de higiene menstrual, devem ser integrados à resposta.
13 – Garantir a continuidade dos serviços essenciais para responder à violência contra mulheres e meninas.
14 – Levar em consideração as diferentes necessidades de homens e mulheres nos esforços de recuperação a médio e longo prazo.