Café da manhã, almoço, lanche da tarde e, em alguns casos, janta. A rotina de crianças e adolescentes em escolas e programas sociais de atividades no contraturno escolar — agora interrompida pelo confinamento — garantia a segurança alimentar de várias famílias brasileiras. No bairro Chico Mendes, periferia de Florianópolis, uma força tarefa de integrantes da Revolução dos Baldinhos e Cooperativa Mulheres do Monte Cristo em três dias de campanha conseguiu arrecadar as primeiras cestas básicas para mais de 400 famílias, em sua maioria formada por pessoas negras, trabalhadoras/es da coleta e seleção de recicláveis.
“Nas creches, escolas e projetos sociais as crianças se alimentavam e faziam quase todas as refeições do dia. Na creche há até mesmo a janta. Praticamente essas crianças faziam somente uma refeição em casa. Nesses espaços pode-se considerar a projeção da segurança alimentar dessas crianças. As famílias contam com esses espaços para que as crianças possam se alimentar”, afirma a presidenta da Associação Revolução dos Baldinhos, Cintia Aldaci da Cruz, 32.
Em janeiro de 2019, a Revolução dos Baldinhos, projeto de coleta seletiva orgânica, compostagem, produção de adubo e horta comunitária, foi reconhecida como uma das 15 práticas excepcionais em agroecologia do mundo. A premiação aconteceu durante o Fórum Global de Alimentação e Agricultura, realizado em Berlim, na Alemanha, e a iniciativa foi a única representante do Brasil.
O grupo, formado por oito pessoas, entre elas cinco mulheres, leva baldes em um carrinho de ferro improvisado, movido pela tração humana. Ao longo do percurso, os recipientes cheios de material orgânico são recolhidos e substituídos pelos vazios.
Já a Cooperativa Mulheres do Monte Cristo, criada no ano passado, organiza moradoras da comunidade para a venda de salgados e doces. Entre outros motivos, essas mulheres não conseguem trabalho formal por serem responsabilizadas pelo trabalho da casa e do cuidado da família. Atualmente, doze estão cooperadas.
“Fundei a Cooperativa Mulheres do Monte Cristo com o intuito de fomentar a geração de renda entre mulheres que não têm emprego e não conseguem trabalhar por terem filhos pequenos, ou adolescentes que não conseguem entrar no mercado de trabalho”, explica Jaqueline de Sousa Oliveira, 30 anos, fundadora da Cooperativa de Mulheres.
A mobilização para garantir alimentação e higiene
De acordo com Cintia, ao entrarem em contato com a Secretaria Municipal de Assistência Social, foram orientadas a aguardar o prazo de trinta dias para acessar o cartão-merenda que será liberado neste cenário de urgências. “Não tem como dizermos para aguardar, se recolherem, se não tiverem comida vão sair para ir atrás. Pensamos em continuar esse trabalho, mas não sabemos como vai se dar esse momento, estou lendo estudos que não é nem a terça parte do que vamos enfrentar”, enfatiza.
A iniciativa dessa frente de mulheres da comunidade busca evitar a aglomeração de pessoas nas ruas e principalmente frear a saída de trabalhadoras/es informais da coleta e seleção de recicláveis da comunidade para que possam ficar em confinamento. Segundo Cintia, as famílias da comunidade são formadas em sua maioria por trabalhadoras/es da coleta, desempregadas/os, muitas crianças e idosos.
“A fome não espera, fazemos o trabalho porta a porta para não aglomerar pessoas. Damos orientação para não estarem em lugares com muitas pessoas. Vemos a necessidade dessa sensibilização porque a situação vai piorar ainda mais nas comunidades por serem aglomeradas, as casas muito próximas. Estamos estudando cada passo, cada evolução para atender as demandas que aparecem”, explica.
O trabalho de coleta de informações e distribuição das cestas básicas é feito de acordo com a metodologia da Revolução dos Baldinhos. “É mais fácil passar de porta e porta. Estou me cuidando, assim não faço as pessoas transitarem pelas ruas. A revolução vai além da metodologia da compostagem, a gente trabalha diretamente com famílias e precisamos dar um retorno. Não adianta trabalhar num projeto social e não entender a realidade. Foi uma demanda que surgiu no território e estamos dentro dele”, reafirma.
Para se proteger do contágio a equipe tem adotado uma rotina de higienização das mãos com álcool em gel e de distanciamento das pessoas na medida do possível. “Estamos usando álcool em gel, lavando sempre as mãos, rosto, nariz. Temos que tentar manter a frieza para não pirar diante deste momento. Acredito que se ficar em casa não vou conseguir fazer muito. Estamos de portas abertas, é o único projeto social da região que está ativo”.
A entrevistada está isolada dos quatros filhos, três estão com a avó materna, em Biguaçu, e um com a avó paterna, em Palhoça. “Falo por telefone, não tenho como estar em contato com eles fazendo esse trabalho nas ruas. Me coloquei a ficar sozinha em casa pra gente poder passar por esse momento junto da comunidade”, conta emocionada.
Inicialmente as voluntárias pensaram em produzir os alimentos na Cozinha Mãe, uma cozinha comunitária vinculada à Revolução dos Baldinhos. Porém, a ideia foi interrompida por determinação da vigilância sanitária. “Orientaram que não manipulássemos alimentos. Optamos por montar as cestas e levar na casa das crianças. Nosso alvo principal são trabalhadores da coleta e idosos”.
A força tarefa entre as integrantes da Revolução dos Baldinhos e da Cooperativa Mulheres do Monte Cristo iniciou a partir de um diálogo com a diretora da Escola de Educação Básica América Dutra Machado, Karla Parmigiani Pereira, preocupada com a falta da rotina alimentar após o anúncio de que as escolas seriam fechadas.
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“Eu iniciei a campanha, na mesma hora falei com a Karla para divulgar. Indiquei algumas famílias para serem assistidas, falei com a Cintia para nos ajudar na parceria, porque sozinha eu não daria conta. Divulgamos nas redes e tomou uma proporção muito grande, a toda hora recebemos doações de alimentos e dinheiro”, afirmou Jaqueline de Souza Oliveira, da Cooperativa de Mulheres e presidenta da Associação de Pais e Professores (APP) da escola.
Em três dias de campanha, oito voluntárias/os conseguiram arrecadar mais de R$ 7 mil em contribuição em dinheiro, além da doação de alimentos. A prioridade é receber alimentos, porém, a ação também é voltada a arrecadar itens de higiene. A força tarefa segue até este sábado (21), quando as mulheres dos dois projetos sociais encerram essa primeira etapa de ajuda.
“O que vemos são ações simples, no voluntariado, uma corrente de amor, entendendo a necessidade do outro. Não tivemos retorno nenhum do poder público, não nos procuraram, a não ser a vigilância que orientou a não manipular e não receber doações de alimentos já prontos. Nego-me a não receber porque a gente que trabalha com a questão de resíduo: como desperdiçar um produto que pode alimentar uma família? Vamos fazer chegar em quem precisa”, afirmou Cintia.
A presidenta lembra que a ação, no entanto, não cobre outros custos fundamentais como o fornecimento de energia elétrica e água. “A situação tende a piorar se não pensarmos formas de se organizar diante do caos que está por vir. Haverá falência dos comércios locais, o desemprego vai aumentar, escutei relatos de senhoras que disseram que não vão pagar mais as contas e guardar dinheiro para comer. Afirmei que elas estão certas e guardar dinheiro até que o município consiga apoiar. De tudo que geramos de imposto deveríamos ter retorno imediato”.
A dimensão da desigualdade social
As dificuldades para a população mais pobre tomam dimensões difíceis de mensurar nesta situação de pandemia, como avalia a entrevistada. “A população pobre literalmente fica à mercê do capitalismo selvagem. O rico tem mais condição de conseguir estocar alimentos, de fazer exame. A rede do SUS está congestionada, estamos orientando as pessoas para ficarem em casa, usarem a horta, procurarem o posto antes de irem ao hospital para não se depararem com contaminados, porque ainda temos a fragilidade do município que não conseguir colocar todas as pessoas com suspeita num único espaço”.
Entre outras situações a serem enfrentadas na comunidade está a exposição das crianças que continuam a brincar nas ruas. “Fiquei assustada com a quantidade de crianças nas ruas. Não podemos deixar as crianças descobertas, pedi que deixassem os filhos em casa. Precisamos pensar numa forma de sensibilizar as pessoas”.
A liderança critica a ausência de comunicação pela rede de assistência à saúde. “Questiono por que a rede de saúde tem as agentes comunitárias que poderiam fazer porta a porta, orientando as pessoas, porque a sensibilização é fundamental para passarmos por tudo isso. Mas não estamos tendo comunicação com a prefeitura. O serviço social disse que não teria como ajudar, ficamos de mãos atadas quando procuramos o serviço público”, coloca Cintia.
Chico Mendes, na região Continental de Florianópolis, faz parte de um complexo de 12 bairros com população aproximada de 30 mil habitantes. “Precisa-se ter atenção maior pela quantidade de pessoas. O posto de saúde, por exemplo, só atende 12 mil pessoas, não é nem metade dessa população”, aponta a presidenta da Revolução dos Baldinhos.
A Revolução não para
Conforme a entrevistada, a Revolução dos Baldinhos vai continuar a atuação de coleta de que resíduos nas casas, que junta oito toneladas de resíduos por mês, para que a população não fique exposta a outras doenças.
Além de revolucionar o espaço coletivo, evitando doenças e mau cheiro, cerca de 750 famílias são beneficiadas diretamente pelo trabalho, seja no acesso ao adubo, à horta comunitária, ou ao sabão produzido a partir do óleo de cozinha coletado.
O projeto gera renda direta para oito pessoas da associação, cinco delas mulheres, por meio da comercialização de adubo, das vendas no brechó de peças com valor até R$ 5, da capacitação e assessoria agroecológica. Uma oficina que estava prevista para ocorrer nos próximos dias foi adiada.
“Vamos passar por esse surto, mas a economia será o próximo problema. Como isso vai se refletir nas comunidades? O desemprego, a fome e a violência que já eram presentes vão aumentar. De que forma enquanto projeto, militância, a gente vai se posicionar?”.
A resposta da Assistência Social
Entramos em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Assistência Social e recebemos como resposta a nota da prefeitura de Florianópolis sobre o anúncio de medidas de “enfrentamento ao Coronavírus” voltadas à saúde, transporte, social e empreendedorismo.
No tema social, a prefeitura informa a criação do “cartão-merenda escola” que vai pagar uma cesta básica mensal para cada aluno “carente” da rede municipal de ensino durante a suspensão das aulas. Todas as crianças que estudam na rede e cujas famílias estão cadastradas no programa Bolsa Família, terão acesso ao benefício. O cartão físico ou virtual deve ser disponibilizado em até sete dias. O valor só poderá ser utilizado em compras de alimentos. Nos próximos dias o município vai divulgar como as famílias poderão acessar o cartão.
Cintia rebate o método de ação da prefeitura, enfatizando as urgências. “Não adianta avisar na mídia que vão liberar o cartão-merenda, essas pessoas vão começar a se aglomerar pelas ruas atrás de benefício, porque a necessidade vai fazê-las ir atrás, e essas pessoas vão estar expostas. O poder público precisa pensar em medidas para dar retorno rápido à sociedade”.
A primeira determinação sobre saúde é que as pessoas suspeitas de ter contraído Coronavírus ou que tenham o caso confirmado por autoridade médica devem seguir medidas de isolamento durante 14 dias. “Essas pessoas serão orientadas quanto à forma correta de separação de objetos pessoais, limpeza imediata de banheiros após o uso e a separação de indivíduos em cômodos diferentes da residência durante esse período”.
Tal recomendação da prefeitura, especialmente sobre a separação de pessoas em cômodos diferentes, desconsidera a realidade de grande parte das famílias da Chico Mendes e do Complexo Monte Cristo.