Um feminicídio na cidade de Itapema, litoral catarinense, nesta sexta-feira (20) acende um alerta em tempos de coronavírus. A médica Lúcia Regina Gomes Schultz, de 60 anos, foi morta enforcada pelo próprio marido, Nelson Pretzel, de 65 anos, após uma discussão. O crime aconteceu dentro de casa onde os dois passavam a quarentena. Diante de uma pandemia, o isolamento social se tornou uma medida de prevenção ao vírus, em compensação as consequências de um convívio ininterrupto podem ser fatais para as mulheres.

Enfrentar uma quarentena é um desafio para todos, mas para mulheres em situação de vulnerabilidade pode ser trágico. Em um momento em que o governo de Santa Catarina não mede esforços no combate ao vírus, a pergunta que fica é: como ficam as vítimas de violência doméstica isoladas junto ao agressor? Pedimos desculpas, mas a resposta não é positiva. 

Além dos casos de contaminação e mortes que seguem subindo por conta do COVID-19, o Brasil corre o risco de ver o número de violência contra as mulheres alavancar. Em um país cuja população feminina sofre violência a cada quatro minutos e em 43% dos casos acontecem dentro de casa, essa preocupação é real. De acordo com a ONG Bem Querer Mulher, enquanto na semana passada sete pessoas morriam por conta do coronavírus em São Paulo, cinco mulheres eram vítimas de feminicídio no mesmo estado.

Na China, por exemplo, os casos de violência doméstica triplicaram durante a quarentena. Uma das ONGs chinesas de defesa à mulher, a Weiping, recebeu 162 denúncias só em fevereiro. As redes sociais de lá também serviram para quebrar o silêncio com mais de três mil relatos de vítimas e testemunhas usando a hashtag #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic, traduzido em português, #ContraViolênciaDomésticaDuranteEpidemia. 

Há pesquisas que mostram que esse tipo de violação se agrava em momentos de crise econômica: os homens desempregados, depressivos, alcoolizados sem saída para arcar com as responsabilidades domésticas descontam na família de forma agressiva. Enquanto a França e Itália já veiculam campanhas para combater a violência doméstica durante a quarentena, no Brasil nada ainda foi feito. 

“Ficar confinada na sua casa com um homem violento é perigoso. É desaconselhável sair. Não é proibido fugir. Precisa de ajuda?”/Foto: Campanha da ONG Nous Toutes
Serviços parados, mulheres desamparadas 

O decreto de isolamento social feito pelo governo de Santa Catarina e o medo de uma possível contaminação em grande escala, interfere nos serviços prestados à população.  

Em Santa Catarina, estado que, segundo pesquisa recente da Folha de São Paulo, está em 6º lugar no ranking de feminicídios, o trabalho de órgãos e associações assistenciais que atuam no combate à violência contra a mulher estão quase parados. 

É o caso do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CREMV), localizado em Florianópolis, que fechou as portas durante a semana e passou a não atender as vítimas presencialmente e nem por telefone. “Os funcionários também estão em quarentena, ainda estamos traçando estratégias para atender a essas mulheres”, relata a secretária municipal de assistência social, Maria Cláudia Goulart. 

A Casa de Mulheres que acolhe vítimas da violência também na capital poderia ser uma alternativa em casos mais extremos. O local abriga, atualmente, 21 pessoas entre mulheres e filhos, porém a casa também está fechada para novos acolhimentos. “Os assistentes sociais estão preocupados em receber novas pessoas, eles estão com medo de pegar a doença. Eles fizeram um pedido para que ninguém mais entrasse e nós acatamos. É um momento muito delicado, ninguém quer ser infectado”, afirma a secretária.    

Para conter a população e fazer valer o decreto de isolamento feito pelo governo estadual, parte do efetivo da Polícia Militar foi deslocado para monitorar e orientar os catarinenses, o que pode dificultar ainda mais o atendimento de outras ocorrências. De acordo com a promotora do Ministério Público de SC, Helen Sanches, a lei garante proteção especial à mulher independente da crise. “Não é porque estamos em um momento difícil que a mulher tem que aguentar ser violada. Elas não podem se calar, precisam procurar ajuda mesmo assim”, e continua. “Estamos em contato com a Rede Catarina para montar uma campanha de proteção às catarinenses durante a quarentena”. 

A Rede Catarina a qual a promotora se refere é um programa que envolve a PM e o MPSC com objetivo de agilizar e humanizar o atendimento de mulheres vítimas de violência. Entretanto, a iniciativa criada em 2017 não vem mostrando um resultado satisfatório. A violência de gênero em Santa Catarina não diminuiu, pelo contrário aumentou. Dados da Secretaria de Segurança do estado mostram que em 2019 houve um aumento de 38% nos casos de feminicídio comparado ao ano de 2018.

A chegada do novo coronavírus também afeta as delegacias da Polícia Civil do estado. As intimações de casos não tão urgentes foram suspensos e o número de delegações foi reduzido. “Nesta semana já tivemos uma queda brusca nas operações, fizemos apenas uma prisão em flagrante na capital”, relata Patrícia Zimmermann, coordenadora estadual das DPCAMIS (Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso). 

Os atendimentos presenciais continuam, porém de forma a evitar aglomerações, os policiais pedem que os boletins de ocorrência sejam feitos pela internet. Comparecer na DP somente em casos extremos. “A medida protetiva como forma de distanciamento do agressor continua regular, o juiz está despachando no mesmo prazo, em menos de 24 horas”, afirma Patrícia.    

A mulher que sofrer agressão também não vai conseguir obter laudos do IML (Instituto Médico Legal). O departamento que emite provas fundamentais em processos de violência está praticamente fechado. “A orientação é que a mulher registre tudo, tire fotos, salve e-mails, conversas, todos os elementos que comprovem a violência para serem usados contra o agressor, posteriormente”, indica a coordenadora.  

Desamparo pelo Estado e aumento da violência  

Assistentes sociais que apoiam mulheres em situação de vulnerabilidade enfatizam que o desamparo por parte do Estado pode vir a se tornar o grande causador do aumento no número de vítimas. “Primeiro que o Estado não pode deixar a mulher vulnerável sem respaldo em uma época como essa de isolamento quando muitas moram com o agressor. Segundo que não existe a possibilidade da mulher registrar o crime pela internet. Como a mulher toda machucada vai fazer isso? E se ela não tiver computador em casa?”, questiona Joseane Bernardes, coordenadora da ONG Bem Querer Mulher.

Para a vereadora de Florianópolis, Carla Ayres (PT), o cenário do enfrentamento emergencial da pandemia do COVID-19 mostra o quanto a ausência do Estado e de políticas públicas efetivas no cotidiano é um dado alarmante. “A falta permanente ou a desvalorização das políticas públicas em geral, nos coloca nesse momento num cenário muito pior que países cujo estado de bem estar social é forte”, comenta a vereadora.  

Nos países europeus, o governo tem tomado medidas econômicas para ajudar a população. Foram anunciadas bolsas sociais para toda a família ficar em casa, redução de impostos e incentivo eficaz para microempresários. “O que estamos vendo no Brasil? Incentivo do governo para demissão sem pagamento dos direitos trabalhistas, férias coletivas, afastamento sem abono, redução de até 50% dos salários. Temos um colapso do sistema de saúde e um teto de gasto imposto pela Emenda Constitucional 95. Qualquer família de trabalhadores entra em paranoia porque não sabe o dia de amanhã e a violência cresce”, enfatiza Carla Ayres. 

Triste orientação

Enquanto o Estado negligencia o atendimento às mulheres durante a quarentena, algumas orientações nos foram passadas durante a apuração desta reportagem. São medidas tristes que não cessam a violência e comprovam o quanto a mulher que precisa de ajuda está completamente sozinha. São elas:

  • Evitar ficar sozinha com o agressor;
  • Trazer alguém da família para casa;
  • Esconder objetos pontiagudos;
  • Retirar de casa possíveis gatilhos e potencializadores, como bebidas alcoólicas e drogas;
  • Avisar familiares e vizinhos sobre o que está acontecendo;

Diante dessas indicações, a pergunta que não quer calar é: Até quando? Até quando as mulheres vão ser as únicas responsáveis por se manterem vivas diante de uma sociedade machista?

Telefones em casos de violência doméstica

Apesar da falta de apoio por parte do governo, centrais de atendimento às mulheres violentadas ainda funcionam por telefone.

Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência: 180
Central de Atendimento dos Direitos Humanos: 100
Polícia Militar: 190
Disque Denúncia da Polícia Civil: 181
Guarda Municipal de Florianópolis: 153

 

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