Uma das fundadoras do curso de Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi também a primeira coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da instituição. Foi precursora da Revista de Estudos Feministas (REF) e do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), além de idealizadora do Serviço de Atenção Psicológica da UFSC (Sapsi).
Autora e organizadora de cerca de 70 publicações, dedicou-se aos estudos de gênero, gerações, subjetividades e modos de vida. Um lembrete constante de que o feminismo é também prática cotidiana. A trajetória e legado da professora Mara Lago, que faleceu na última segunda-feira (2) aos 84 anos, estão marcados na história da produção de conhecimento e da luta pela igualdade de gênero em Santa Catarina e no Brasil.
“Como parte de uma geração cujas avós e mães tiveram que lutar pelo direito à cidadania, à educação, ao trabalho no espaço público, sou muito consciente da grande importância das mulheres estarem em todos os espaços de produção de conhecimentos e tecnologias”, afirmou em entrevista a Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (Propesq) da UFSC, em 2021.
“Ela era uma grande amiga. Ela gostava de reuniões, de cafés, sempre ela trazia algum salgado ou doce para uma reunião, para uma festa, para um encontro acadêmico ou festivo. Ela sempre trazia essa contribuição. E sempre muito amiga das pessoas. As estudantes, as orientandas dela, as colegas dela, sempre consideravam e definem a Mara como uma pessoa muito generosa”, descreve Joana Maria Pedro, pesquisadora do IEG e amiga de Mara, ao Catarinas.
“Ela vai fazer muita falta, mas ela também formou muita gente. Então, eu diria que o terreno está cheio das sementes dela”, complementa.
Legado
“Professora Mara Lago, colega, amiga, militante por nossas pautas feministas, nos deixa um legado extraordinário, tanto com as inúmeras pesquisa de excelência orientações, quanto à frente da Revista Estudos Feministas”, evidencia a historiadora Marlene de Fáveri, ao Catarinas.
O Instituto de Estudos de Gênero (IEG) destacou que a história de Mara está entrelaçada com a da UFSC. “Mais que títulos e cargos, Mara é exemplo. É vitalidade que pulsa, mesmo em tempos difíceis. É organização cuidadosa, liderança generosa, presença que acolhe e fortalece. É horizonte para quem acredita que o conhecimento pode transformar o mundo — e que o feminismo é também prática cotidiana”, publicaram nas redes sociais.
Joana Célia dos Passos, vice-reitora da UFSC, destacou a importância de lembrar a força da professora. “Mara era uma mulher posicionada frente às desigualdades e deixa um legado não só acadêmico, mas de humanidade. Tínhamos um afeto recíproco e era lindo encontrá-la nas manifestações de rua”, ressaltou nas redes sociais.
Em nota, o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC enfatizou que a trajetória intelectual e humana da professora deixou marcas indestrutíveis na história da instituição: “Mara foi uma das fundadoras da área de estudos de gênero e sexualidades em nosso programa, abrindo caminhos que continuam a inspirar e transformar gerações de pesquisadoras e pesquisadores. Com coragem, generosidade e compromisso, ela contribuiu decisivamente para consolidar um campo de conhecimento comprometido com a justiça social, os direitos humanos e a diversidade”.
“Seu legado permanece vivo na formação de inúmeras gerações de psicólogos e na construção de uma universidade mais inclusiva e plural”, expressou uma nota conjunta do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC.
Trajetória
“Constituída como feminista desde cedo, sempre respondi a ataques machistas não aceitando qualquer tentativa de secundarização das mulheres, o que contribuiu para que não me deixasse afetar pessoalmente pelo machismo. O que não significa que não tenha desenvolvido pela vida toda, uma absoluta revolta com todas as manifestações do machismo, que vulnerabilizam as pessoas, que precarizam muitas vidas”, compartilhou no material publicado pela Propesq/UFSC.
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Mara Lago nasceu em Caçador (SC) e mudou-se para Florianópolis aos 10 anos de idade. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), fez mestrado em Antropologia pela UFSC e doutorado em Psicologia da Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). Suas pesquisas tiveram como foco prioritário a Psicologia Social e a Antropologia nos temas de gênero, gerações, subjetividades, modos de vida, sempre com enfoque interdisciplinar.
“Vim de uma família de professoras primárias talentosas do Rio Grande do Sul e tive excelentes mestras e mestres desde meus estudos iniciais, em Santa Catarina. Foram fatores de identificação que provavelmente me levaram a considerar desde sempre como vocação a carreira escolhida do magistério”, descreveu em entrevista à Propesq/UFSC.
Conforme a UFSC, ela orientou dissertações, teses e trabalhos de iniciação científica, e participou de mais de 100 bancas examinadoras de graduação, mestrado e doutorado. É autora e organizadora de cerca de 70 publicações.
Joana destaca que várias pessoas orientadas por ela, foram reconhecidas com prêmios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), um dos mais importantes do país. “É uma coisa muito importante na academia, ser uma orientadora cujos alunos ganham esse prêmio”, ressalta.
Mara iniciou sua trajetória no Departamento de Psicologia da UFSC em 1969 e teve papel fundamental na consolidação da área na instituição. Sua atuação também deixou marcas na articulação entre diferentes áreas do conhecimento, contribuindo para a criação de espaços acadêmicos interdisciplinares e comprometidos com a transformação social.
Com sensibilidade e rigor, formou gerações de profissionais e pesquisadoras, incentivando a reflexão crítica sobre a vida cotidiana, as relações de poder e os sentidos da existência. Seu pensamento segue presente nas práticas que cruzam psicologia, feminismo e compromisso ético.
Mara aposentou-se em 2010, de forma compulsória, aos 70 anos de idade, mas continuou atuando como voluntária no ensino, na pesquisa e na extensão, como professora e pesquisadora até muito recentemente.
Por 15 anos, atuou como editora da Revista de Estudos Feministas (REF). “Isso significa receber as propostas de artigos, selecionar, mandar para pareceristas, organizar o que vai ser publicado, o que não, fazer editoriais, conseguir recursos para que a revista saia. Isso é um trabalho bastante importante que ela, junto com outras colegas, desenvolveram durante todo esse tempo”, explica Joana.
Ela recorda de como Mara, na época que a revista era impressa, sempre lutou por recursos para a publicação: “eu estava na Pró-Reitoria de Pós-Graduação e lembro que ela ia atrás das pessoas, buscando recursos”. Mara também contribuia com as imagens das capas das edições. “Ela gostava muito de arte, então, na maioria das vezes, as capas da revista eram escolhidas por ela, porque ela conhecia as artistas, ia atrás, conseguia que as pessoas doassem as imagens”, recorda Joana.
Em 2011, Mara foi homenageada com o título de Professora Emérita na UFSC, em uma solenidade que reuniu seus colegas de trabalho, estudantes, familiares e amigos.
“Ela sempre foi muito estudiosa. A gente sempre tem a impressão de que uma pessoa, porque está ficando idosa, porque já não está mais dando aulas regularmente, porque se aposentou, que ela vai se afastando do conhecimento. Mara não fez isso. Até porque o fato de ela estar à frente da revista também fazia com que ela fosse obrigada a ler muitos artigos. Então, ela estava sempre à frente, sempre sabendo, sempre atualizada sobre as últimas discussões e teorias que estavam saindo em diferentes lugares do Brasil e do mundo sobre as temáticas que estavam sendo publicadas”, compartilha Joana.
Era presença garantida nas diversas marchas feministas e em eventos como o Fazendo Gênero, que atuou na organização desde 1998. Maior seminário internacional de gênero no Brasil, a última edição, realizada em 2024, reuniu mais de 6 mil pessoas. O objetivo do encontro, realizado desde 1994, é promover um ambiente de interlocução artística, ativista e afetiva, tendo questões de gênero, sexualidades e feminismos como centro das discussões, trocas e debates.
“Em cada manifestação pela educação, Fora Temer, Fora Bolsonaro, Ele Não, ela estava lá na praça, na rua, na frente da catedral, às vezes sentada numa cadeira, às vezes sentada num degrau, mas estava lá junto. Mara era também uma grande militante”, destaca Joana.