Hospital é acusado de transfobia por não respeitar identidade de gênero de gestante e acompanhante
O casal Derick e Terra relatam transfobia durante processo de parto e denunciam a violência sofrida em hospital em Jaraguá do Sul
Em janeiro deste ano, Terra Rodrigues e Derick Wolodascyk preparavam-se para o tão sonhado nascimento de seu primeiro filho. Desde que descobriram a gravidez, o casal preocupou-se com todo o processo, já que, por serem pessoas trans, as experiências de transfobia vividas os deixava em alerta e com necessidade de se informarem e se prepararem para o momento do parto.
Assim, desde o início da gestação, Derick foi acompanhado por uma doula que, no dia 26 de janeiro de 2021, quando o trabalho de parto começou, teve o cuidado de ligar no Hospital e Maternidade Jaraguá, em Jaraguá do Sul – SC, avisando à equipe de plantão que estava a caminho um parturiente que é homem trans.
Ao dar entrada no Hospital, Terra Rodrigues, companheira de Derick, entregou os documentos de ambos, nos quais consta o nome e identidade de gênero já retificados. Apesar disso, a falta de preparo de vários profissionais da instituição tornou o que poderia ser uma das experiências mais bonitas de suas vidas em mais um episódio de violência transfóbica.
“O problema se deu após a rotatividade de enfermeiros, quando a violência transfóbica direta começou com a equipe de enfermagem falando “a Derick”, “vai lá com o pai, ops, mãe”, para se referir a mim. Foi aí que começou a violência direta. Fora isso, teve outras indiretas, como a identificação com a palavra “mãe” associada ao Derick, etc.” relata Terra.
“Desde o começo não foi respeitada a identidade deles. O nome foi respeitado, mas a identidade não. Foi colocado “Sra. Derick”, foi colocado o Derick como mãe, e a Terra foi chamada de pai por diversas vezes. Fizeram piadinhas, tipo “a/o pai”, “o/a mãe”… sabe? Extremamente despreparados”, relata a advogada do casal, Ana Cristina Cunha Rodrigues.
No entanto, as violências não pararam por aí. Posteriormente ao parto, o hospital lhes entregou a DNV (Declaração de Nascido Vivo) para que pudessem fazer o pedido de Certidão de Nascimento do filho. Porém, o documento, que é simples, contendo principalmente informações sobre a gestação, foi preenchido também de maneira incorreta, sendo colocado no campo “mãe” o nome de Derick e no campo “pai” o nome de Terra. De acordo com a advogada do casal, em nenhum momento foi perguntado à Terra a relação que ela estabelecia com Derick, sendo totalmente pressuposto pelo hospital que ela seria a companheira e, desrespeitando sua identidade de gênero, deveria estar no campo “pai” no documento.
Mesmo com o documento preenchido incorretamente, o casal tentou registrar a Certidão de Nascimento do filho no cartório localizado dentro do hospital, solicitando que se invertesse a informação que estava incorreta na DNV. Porém, o cartório se recusou a fazer a alteração, alegando que tinham que seguir rigorosamente as informações da DNV. Assim, o registro não pode ser feito.
“A gente estava bastante preparada para a violência obstétrica, mas não para esse problema para registrar a criança. Isso nem passou pela nossa cabeça, era uma coisa muito distante, porque nós já éramos reconhecidas pelo Estado como pais legais da criança e com a nossa identidade de gênero respeitada. Então, foi um problema muito fora da curva, na nossa visão, porque não teria nenhum empecilho, nenhum dano para o Estado, em registrar da forma correta, somente ganhos, porque registrando da forma correta, a gente vai virar estatística, mostrar que homens trans estão parindo. O nosso problema se deu com uma coisa absurda e muito bem resolvida na nossa cabeça: o respeito à nossa identidade. Em nenhum momento a gente achou que isso iria acontecer, foi algo que pegou a gente bem desprevenido”, explica Terra, mãe da criança.
Após tentarem convencer o hospital a retificar o documento e não obtendo sucesso, o casal buscou um cartório fora da cidade de Jaraguá do Sul e, em Joinville, um cartório informou que faria a Certidão com os dados corretos, mas precisaria que o DNV tivesse a informação do endereço em Joinville. Terra, que reside em Joinville, foi, então, solicitar ao hospital a mudança de endereço, mas, novamente, recebeu resposta negativa.
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Assim, não restou outra opção ao casal senão pedir orientação de uma advogada. Ana conta que foi registrado um boletim de ocorrência contra o crime de transfobia (enquadrado como crime previsto na Lei 7.716/2018 a partir de decisão do STF em 2019); um mandado de segurança para que tanto o hospital quanto o cartório sejam obrigados a retificar a DNV e fazer o registro da criança e, em seguida, entrarão com ação indenizatória por danos morais.
“O que eles viveram nessas semanas, no nascimento do primeiro filho, tão esperado, tão desejado, e com tudo feito com tanto cuidado, essas dores, essas marcas, que eles já têm de tanta transfobia que eles sofrem em outros lugares, nunca vai voltar. É um momento que já passou, está sendo passado, com muita dor”, relata a advogada.
De acordo com Terra, os efeitos do ocorrido também impactaram no pós-parto e no processo de aleitamento de Derick. “Toda essa transfobia que a gente sofreu afetou a gente de uma forma muito intensa, além de outras coisas, porque o Derick tinha acabado de sair de um parto, o bebê precisou ficar internado e ele ficou sozinho com o bebê; o aleitamento materno também é uma coisa muito complicada: o leite começou a empedrar por causa do estresse, mastite, e agora a gente tá sofrendo um grande problema que é o leite do Derick secando com todo o estresse, com toda a correria que a gente tá passando”, conta ela.
Além disso, a insegurança por seu filho estar sem registro também traz uma preocupação para a mãe. “A gente vê o nosso bebê muito vulnerável à essa violência toda. O nosso bebê não tem direito nenhum, ele não é reconhecido como cidadão sem a Certidão de Nascimento. Sem registro, a gente já perdeu a possibilidade de tentar uma vaga na creche pra quando ele tiver com três meses. O bebê nasceu em 26 de janeiro e era até dia 4 de fevereiro a inscrição para a creche, e já perdemos por conta dessa violência. Até para marcar consulta no pediatra, pelo postinho, está sendo muito complicado sem a certidão. Se precisar fazer algum exame pelo postinho, a gente não tem direito pelo fato de um preconceito não permitir que a gente registre a nossa criança. Então quem sai perdendo nisso tudo é o nosso bebê”, argumenta.
Luciana Zucco, pesquisadora, doutora em Ciências da Saúde e professora no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, enumera que a falta de formação continuada, as crenças religiosas e a naturalização/essencialização das identidades relacionada à linear sexo-identidade-sexualidade são aspectos que levam ao preconceito, à desatualização e, também, infringem os direitos de pacientes. “Mas a violência é uma questão estrutural, e também é institucional, não apenas dos profissionais”, aponta.
De acordo com Ale Mujica Rodrigues, medique, doutore em Saúde Coletiva e ativista trans-feminista e do movimento gorde, o debate de gênero e identidade de gênero ainda é incipiente na área da saúde e é provocado, principalmente, pelas pessoas trans que circulam por esses espaços ou em movimentos sociais e que fazem uma demanda em relação aos cuidados específicos em saúde, ao respeito ao nome social, ao respeito à identidade de gênero dentro desse cuidado, entre outras.
No entanto, segundo Ale, há uma força de poderes: de um lado, o poder biomédico, da saúde, da medicina, que possui um olhar patologizante com relação às pessoas trans, travestis e não binárias e de diagnóstico como pessoas doentes, dentro do lugar da saúde mental; e, de outro, as pessoas que fazem uma resistência à essa hegemonia e ao olhar hegemônico.
“Pensando na própria formação em saúde, ela não incorpora de forma transversal e ampliada a discussão de gênero e sexualidade. A própria reprodução da heterocisnormatividade através da linguagem, através dos prontuários, através da forma, por exemplo, como se olha para a pessoa grávida que não cabe no imaginário das pessoas da área da saúde – que é que uma pessoa que é homem trans, que se identifica dentro de uma transmasculidade com pronome masculino, possa ficar grávida, e essa sua identidade, seu pronome, não seja respeitado. Então, é muito fixa [a ideia de] quais seriam essas pessoas que estariam circulando nesse espaço chamado ‘maternidade’. Quais corpos, pessoas, identidades, que transitam na ginecologia e obstetrícia. Ainda é muito fixo esse olhar que se tem para esses corpos, pessoas e identidades que poderiam ou deveriam estar transitando ali, no caso, mulheres cis, brancas, magras, essa estrutura hegemônica do esperado. Então, o quanto é uma transfobia institucional. Essa heterocisnormatividade ainda é imperante, hegemônica e estruturante tanto nos espaços de cuidado quanto nos espaços de construção de conhecimento – universidade, faculdade de medicina, enfermagem – o que faz com que se produza e se reproduza práticas transfóbicas”, analisa.