Por Maria Carolina Santos, do Marco Zero Conteúdo

Ciúmes, não aceitar o fim do relacionamento, ingestão de bebidas alcóolicas. Brigas de casal, discussão, separação recente. São nesses termos que muitos dos feminicídios são apresentados ao público por meio de notas e matérias em sites jornalísticos, blogs policialescos e na televisão. O levantamento de mais de 50 conteúdos relativos a casos de assassinatos de mulheres por sua condição de gênero feito pela Marco Zero na imprensa dos nove estados do Nordeste desde o início da pandemia da covid-19 apurou que o termo “crime passional” está em desuso e foi citado em apenas um desses textos mas as “justificativas” para a violência  permanecem as mesmas. 

Alguns casos tiveram grande repercussão, quase sempre em razão da raça e da classe social da vítima. Exemplos são as mortes brutais da modelo paraibana Lorrayne Damaris da Silva e da dentista pernambucana Emelly Nayane da Silva. Em muitas matérias, quando a vítima é uma mulher negra ou pobre, quase não há informações.

A conduta da imprensa é também reflexo de como os sites das polícias e das secretarias de segurança social se comportam. Na Paraíba, os sites oficiais não trazem os nomes dos suspeitos, alegando cumprimento da nova lei de abuso de autoridade, que entrou em vigor em janeiro de 2020. Em Alagoas, por várias vezes nem o nome das mulheres vítimas é divulgado. Assim, não é difícil encontrar matérias nas quais apenas a localidade onde o crime foi cometido e a idade da vítima são fornecidos. Não há contexto. E, em poucos sites, há informações sobre como proceder em casos de violência doméstica.

Quem faz ou acompanha cobertura policial sabe que é rotineiro que nas coletivas de imprensa os delegados – todos eram homens quando identificados nas 52 matérias – falem sobre a motivação. Invariavelmente o motivo para a violência é tratado como ciúmes e pelo fato do agressor “não aceitar” o fim do relacionamento. É claro que as condutas não são aprovadas pelas autoridades policiais, mas apresentar justificativas banais reforçam o machismo estrutural e o pensamento do senso comum sobre porque as mulheres morrem.

É interessante notar que a maioria das matérias dão rapidamente o desfecho do caso. Das 52 levantadas, 33 trazem a informação de que o assassino foi preso. Quase todas indicam que o suspeito já foi identificado. Nos sete casos em que as vítimas eram mulheres trans ou travestis, apenas dois traziam a informação da prisão dos suspeitos, exatamente nos casos de maior repercussão: a morte de Keron Ravach, de apenas 13 anos, e de Luanna Kelly, espancada até a morte por quatro homens. Ambos aconteceram em Camocim, no interior do Ceará.

Em 2019, a Agência Patrícia Galvão divulgou o relatório “Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel social e desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual“. É uma análise de 2.481 matérias sobre assassinatos de mulheres tentados ou consumados em todo o Brasil. Apenas 6,25% das notícias traziam críticas a políticas públicas ou aos sistemas de atenção/segurança/justiça. A grande maioria era somente factual.

Mulheres trans

O relatório também mostra a diferença com que a imprensa – especialmente os blogs policialescos nas cidades do interior da região –  trata a morte de mulheres trans e travestis. No levantamento da Marco Zero encontramos fotos de corpos expostos e matérias com nomes masculinos, desrespeitando a identidade de gênero das vítimas.

“A mídia participa do processo violento de transfobia. A travesti e a pessoa trans passam por dois processos de violência: a que a matou e o processo de desumanização do seu corpo, mesmo após a morte. É como se a mídia quisesse mostrar o que a sociedade quer ver. E se vivemos em uma sociedade transfóbica, esses corpos devem ser expostos da pior forma possível. São animalizados pelo sistema social, sempre no espaço da marginalização”, denuncia Dalia Celeste, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança em Pernambuco e analista na plataforma Fogo Cruzado em Pernambuco.

O período das matérias pesquisadas para essa linha do tempo vai desde março de 2020, início da pandemia, até os dois primeiros meses deste ano – extrapolando o monitoramento nacional de dados do “Um vírus, duas guerras“. Há uma profusão de casos na imprensa nesses dois primeiros meses de 2021 . Assim como a pandemia não acabou quando o ano virou, os casos de feminicídio não arrefeceram e seguem ocupando as páginas de jornais e sites.

Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.

Esta reportagem faz parte da série Um vírus e duas guerras, que monitora a violência doméstica e o feminicídio no país durante a pandemia. O trabalho tem como base as estatísticas das Secretarias Estaduais da Segurança Pública e é realizado pela parceria de sete mídias independentes: Amazônia RealAzMina#ColaboraEco NordesteMarco Zero ConteúdoPonte e Portal Catarinas.  

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