Por Rose Serafim/Agência Eco Nordeste.

Figuras constantes nos núcleos familiares, empregadas domésticas são mulheres e podem ser alvo ou autoras de violência de gênero. Apesar de poucos casos irem parar na Justiça, leis já tratam sobre o assunto. Esta matéria faz parte do especial “Um vírus e duas guerras”, fruto de trabalho colaborativo entre as mídias independentes Amazônia Real (Amazonas); Projeto #Colabora (Rio de Janeiro); Eco Nordeste (Ceará); Marco Zero Conteúdo (Pernambuco), Portal Catarinas (Santa Catarina); Revista AzMina e Ponte Jornalismo (São Paulo).

O artigo 5º da Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) define, no primeiro ponto, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, esta que é compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Dessa forma, pouco se fala sobre o assunto, mas a relação com empregadas domésticas e situações de violência, a depender do caso, podem se enquadrar na legislação que trata sobre violência de gênero.

“O artigo certifica que a pessoa, a mulher no caso, que sofreu algum tipo de violência no âmbito da residência, no âmbito doméstico, pode ser classificado como violência doméstica. E quando ele diz que as pessoas esporadicamente agregadas, quando se abre esse parêntese, o legislador incluiu a empregada doméstica nesse tipo de violência”, explica a advogada Jéssica Oliveira, do escritório Oliveira & Vieira Advogados.

A Lei Complementar Nº 150/2015, que regula a atividade doméstica no País, já traz a possibilidade de rescisão de contrato por motivo de violência doméstica praticada pelo empregador, no artigo 27. Neste, a regra clarifica que essas violações estariam enquadradas no que é previsto pelo artigo 5 º da Lei Maria da Penha.

Todavia, em um país que registrou mais de 6 milhões de empregadas domésticas em janeiro de 2020, com a maioria delas atuando sem vínculo trabalhista formal, torna-se mais difícil aplicação de regras, sejam elas de cunho trabalhista ou relacionadas à violência de gênero.

Jéssica esclarece, ainda, que a violência de gênero cometida ou sofrida pela doméstica, precisa ter ocorrido no ambiente compartilhado por essa funcionária e a família contratante. “A empregada pode sofrer uma violência sexual, e é bom que fique claro que tem que ser exatamente no convívio familiar. Não pode ser fora do convívio em algum outro ambiente, que não seja um ambiente doméstico de fato”.

Agregada ao núcleo familiar

Uma dessas abordagens pela Justiça ocorreu em 3 de dezembro de 2020, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a aplicação da Lei Maria da Penha numa situação de violência sexual contra uma empregada doméstica em Goiás. O neto da patroa havia cometido o abuso. Na época, o ministro Sebastião Reis Júnior afirmou que, mesmo não existindo vínculo de parentesco entre o agressor e a vítima, o fato de ela estar agregada ao núcleo familiar, por conviver com a família da patroa, justifica o enquadramento do crime como um caso de violência doméstica contra a mulher. Na decisão, Reis enfatizou que é preciso levar em consideração a relação hierárquica entre agressor e vítima, além da diferente condição financeira da mulher e do abusador.

A Leidiane Pereira, 30, herdou a profissão da mãe e da avó e ganha o próprio sustento e o dos filhos desde a infância limpando a casa e cuidando das crianças de outras famílias. Após ser aprovada no curso de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (Urca), optou por ser diarista, mas manteve a forma de trabalho como opção de renda. Ela lembra de já ter passado por diversas situações de humilhação e assédio por parte das pessoas que sempre se referiam a ela como “um membro da família”.

“É como se fosse a família, mas não saio nos retratos da família. Não saio na foto do casamento, de aniversário. É como se fosse, mas não é (…) . Tenho muitas patroas que me seguem no Instagram, no Facebook, (e dizem) ‘você é como se fosse da minha família’. Aí eu penso: ‘é, mas eu não saio dos retratos da família, não fico lá na estante principal’. A gente nem pode sentar no sofá”, ressalta a diarista. De acordo com Leidiane, a falsa ideia de parentesco é comprada pelas domésticas que acabam, assim, ficando mais suscetíveis à violência.

Diversas formas de agressão

Da privação de comida e água à, falta de acesso aos banheiros da casa ou ouvir diversos insultos e desaforos de contratantes, a estudante ainda precisou reagir fisicamente a uma abordagem inesperada. “Era um senhor, pai do meu patrão. Estava operado na casa. E ele simplesmente esqueceu a toalha no quarto e me chamou: ‘ô Leidinha pra cá, Leidinha pra lá’. Eu estava lá no fundo da casa. Se ele passasse eu nem ia ver que ele estava sem roupa. Mas ele fez questão de me fazer entrar no banheiro e me puxou. Na hora, eu reagi mesmo e o empurrei”, conta a diarista universitária.

Leidiane explica que há diferenças na relação com patroas e patrões no ambiente de trabalho: “Os homens são muito violentos no sentido de quererem impor e a imposição deles não é uma exposição igual às mulheres, de ‘olha, se você não fizer isso eu não vou fazer isso para você’. É (uma imposição) física”.

Jéssica Oliveira explica que casos de violência de gênero contra empregadas domésticas precisam ser bem documentados para serem levados adiante. “A prova é muito importante nesses casos porque a violência doméstica contra a empregada doméstica na Lei Maria da Penha não é presumida. Tem que filmar ou mostrar mensagens do WhatsApp… Tudo tem que ser bem documentado”, do contrário, adianta a advogada, a situação será levada para o âmbito trabalhista.

Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.


Como é o monitoramento?

A série Um vírus e duas guerras  monitorou de março a dezembro de 2020 os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia do novo coronavírus. O objetivo é dar visibilidade a esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. 

No primeiro levantamento com 20 estados, os casos de feminicídios aumentaram em 5% em 2020. Somente nos dois primeiros meses da pandemia, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes.

De maio a agosto, a pesquisa apontou que 304 mulheres perderam a vida, mas houve uma queda de 11% em relação ao mesmo período de 2019. 

Um dos resultados do monitoramento é o relatório “Um Vírus, Duas Guerras: Soluções e Boas Práticas na Coleta e Divulgação de Dados sobre Violência Contra a Mulher na Pandemia”, que aponta desafios e sugestões de melhorias na coleta, organização e disponibilização dos dados sobre a violência de gênero. 

No terceiro e último monitoramento, a série Um vírus e duas guerras aponta que na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia. Mesmo sobrevivendo aos riscos do coronavírus, pelo menos 1.005 mulheres morreram entre os meses de março a dezembro de 2020 no país, revela monitoramento de mídias independentes.

Leia as reportagens por região:

Realização Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Ponte e Portal Catarinas 

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