Por Bruna Mello/Amazonia Real

Rio Branco (AC) – A cada quatro horas, uma mulher acriana foi vítima de violência em 2020. Foram 1.964 denúncias de um crime que não deu tréguas mesmo na pandemia da Covid-19. De março a dezembro, o Acre registrou nove feminicídios. Todas mulheres eram da cor parda e tinham entre 17 e 50 anos.

Na conclusão da série Um vírus e duas guerras, que desde março procurou visibilizar, durante a pandemia do novo coronavírus, o fenômeno silencioso da violência contra a mulher e o crime de feminicídio, o estado do Acre mantém-se como um dos mais violentos do Brasil. Mesmo com reduções proporcionais das denúncias em 2020, elas não anulam o fato de que os números sempre estiveram em um patamar elevado. Os 2.501 casos registrados em 2019 já indicavam que as mulheres acrianas são obrigadas a conviver de perto com a violência.

A professora acriana M.C., que terá o nome preservado por ainda temer por sua vida, por pouco não desistiu de tudo. Casada e grávida do segundo filho, ela conta que sofreu de diversas formas no relacionamento com o ex-companheiro. “Eu não sabia o que estava fazendo, nada mais importava. Eu tinha um sentimento horrível sobre mim mesma e minha vida”, recorda-se. Ela entrou em depressão profunda, a ponto de seus pais precisarem visitá-la constantemente.

M.C. chegou a registrar um Boletim de Ocorrência após ser ameaçada certa vez e ter seu carro danificado pelo homem. Após uma conversa com a sogra e com a gravidez inesperada, ela decidiu retirar a queixa. Mas a violência por parte do marido se tornou psicológica, praticamente diária.

“As agressões eram no sentido de me diminuir. Ele falava do meu corpo, que meu seio ficou diferente e que não era como era antes. Vários tipos de coisas que ele falava e me deixava muito mal. Dizia que eu era louca. Ele inventava histórias, dizia que não tinha dinheiro. E até fez um empréstimo no meu nome”, afirma.

A professora disse que suportou calada as ofensas e uma gestação solitária, mas com o tempo a violência psicológica voltou a ser física. “Aguentei algumas situações por medo dele não pagar o empréstimo e pelas ameaças. Só que chegou nesse ponto que ele me agrediu na presença de outras pessoas. Me senti muito humilhada e fui à delegacia denunciar. Me separei”, diz.

A separação veio próximo ao parto e um puerpério difícil. Porém, a professora contou com o apoio da família e da Diretoria de Políticas Públicas para Mulheres, ligada ao governo estadual, que disponibilizou acompanhamento.

“Minha vida se resumiu a trabalho e a cuidar dos meus filhos. Eu não tinha felicidade. Aquilo tomava conta de mim”, lembra. “Eu não conseguia aceitar que minha vida tinha se transformado naquilo, a gente projetar ter uma família, investir num projeto, sonhar e, de repente, aquilo ser tirado de você e você ficar sozinha. É muito frustrante.” M.C. faz questão de agradecer à família, à psicóloga e ao psiquiatra, que estiveram próximos dela. “Se hoje eu estou aqui viva, é graças a todas essas pessoas.”

Um dos estados que mais mata  mulheres

O monitoramento Um vírus e duas guerras é realizado por sete mídias independentes: Amazônia RealAzMinaEcoNordesteMarco Zero,  Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. O levantamento tem ainda o objetivo de fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. 

Nos dois primeiros levantamentos, a série mostrou que de março, quando foi decretada a pandemia da Covid-19 no mundo, a agosto, o Acre registrou seis feminicídios, mantendo-o entre os Estados que mais matam mulheres no Brasil. No último quadrimestre, de setembro a dezembro de 2020, foram três mulheres assassinadas: duas no mês de setembro e uma em novembro. 

Infográfico produzida por Fernando Alvarus/Amazônia Real

Os retrocessos continuam

Maria Meirelles (Foto: Arquivo pessoal)

Assim como em todo o país, o Acre sofre com vários retrocessos em relação a políticas públicas para mulheres e ao próprio acolhimento das vítimas de violência. É o que explica a vice-presidente do Instituto Mulheres da Amazônia, Maria Meirelles. “O que a gente vê hoje é um cenário muito desfavorável no Brasil e no Acre. Tivemos um retrocesso absurdo nos últimos anos e que se intensificou no governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, vemos a violência contra a mulher aumentar disparadamente.”

Maria Meirelles acrescenta: “O Brasil é o quinto país em morte de mulheres e isso não é pouca coisa, tem mulher morrendo todos os dias, sofrendo violência, opressão, e não sabe como denunciar. Porque, ao mesmo tempo, a sociedade está se tornando muito conservadora e muito mais machista”.

No Acre, a Secretaria de Política Públicas para Mulheres se fundiu à de Direitos Humanos e passou a ser apenas uma diretoria. “Nós precisamos de um órgão apenas para tratar de políticas para mulheres, porque é uma violência estrutural e está aumentando muito. É muito grave”, alerta. 

O monitoramento Um vírus e duas guerras analisou as mortes de mulheres nos 24 estados e no Distrito Federal pela taxa de habitantes. A cada 100 mil mulheres, uma foi vítima de feminicídio: a taxa média de 2020 foi de 1,18. O Acre ficou em quarto lugar com uma taxa de 2,43 mulheres. Na frente estão o Mato Grosso, com 3,56, e Roraima 2,95.

Infográfico produzido por Fernando Álvarus/#Colabora

Como é o monitoramento?

A série Um vírus e duas guerras  monitorou de março a dezembro de 2020 os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia do novo coronavírus. O objetivo é dar visibilidade a esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. 

No primeiro levantamento com 20 estados, os casos de feminicídios aumentaram em 5% em 2020. Somente nos dois primeiros meses da pandemia, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes.

De maio a agosto,  a pesquisa apontou que 304 mulheres perderam a vida, mas houve uma queda de 11% em relação ao mesmo período de 2019. 

Um dos resultados do monitoramento é o relatório “Um Vírus, Duas Guerras: Soluções e Boas Práticas na Coleta e Divulgação de Dados sobre Violência Contra a Mulher na Pandemia”, que aponta desafios e sugestões de melhorias na coleta, organização e disponibilização dos dados sobre a violência de gênero. 

No terceiro e último monitoramento, a série Um vírus e duas guerras aponta que na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia. Mesmo sobrevivendo aos riscos do coronavírus, pelo menos 1.005 mulheres morreram entre os meses de março a dezembro de 2020 no país, revela monitoramento de mídias independentes.

Leia as reportagens por região:

Realização Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Ponte e Portal Catarinas 

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