Em 2008, quando cheguei a Florianópolis (SC), com frequência era interpelada pelas pessoas da seguinte forma: “Você não é daqui. De onde você é?”. A afirmação que precedia a pergunta sobre “de onde eu vinha” me intrigava.
No início, pensei ser um dom premonitório dos residentes da Ilha de Santa Catarina saberem, já no primeiro olhar, que “não sou daqui”. Depois fui me convencendo que o meu sotaque nordestino me denunciava e que, certamente, tratava-se disso. Então estava tudo certo, como sempre tive orgulho de ser soteropolitana, essa justificativa me bastava.
Contudo, ao longo dos anos de (con)vivência e pesquisas sobre o protagonismo negro em Santa Catarina, especificamente na capital, fui percebendo que o buraco era bem mais embaixo.
Em 2017, durante a pesquisa de campo que realizei no Morro da Caixa/Monte Serrat[1], outros elementos foram se desvelando e logo compreendi que a ideia de pertencimento à cidade de Florianópolis é marcadamente racializada, ou seja, o fenótipo das pessoas determina o reconhecimento das mesmas como parte ou não.
A colonização açoriana deu o tom aos elementos diacríticos de representação local. Um dos exemplos mais emblemáticos é chamar os que nascem na cidade de Florianópolis de “Manezinho” ou “Manezinho da Ilha”, uma referência aos descendentes da Ilha dos Açores. Contudo, não basta nascer na capital catarinense, é necessário ter os atributos físicos, fenotípicos que remetam à essa ancestralidade européia.
Ainda que a pessoa nasça em Floripa, é necessário ostentar atributos que lhe aproximem desse ideário da brancura, logo, a textura dos cabelos, cor da pele e olhos, formato dos lábios e nariz são levados em conta para que haja o reconhecimento de um dado pertencimento, ou não, à cidade.
Mas, afinal, as pessoas que nascem em Florianópolis e possuem outras descendências (não açorianas) são reconhecidos como no contexto da cidade? A historiografia de Santa Catarina, através da exaltação da colonização euro-branca, diretamente relacionada à noção de “pureza”, “civilização” e “desenvolvimento”, invisibilizou a presença e protagonismo das pessoas não brancas.
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“Na população catarinense (a não ser nas colônias, com o alemão ou o italiano) não há quase cruzamento, sendo raro encontrar, entre ela, o tipo indígena do norte do Brasil ou o traço fisiológico do negro, que ali não prevaleceu senão insignificantemente, em pequeno número de mestiços, porque o tráfico do africano nessas plagas apareceu tardiamente […]. De sorte que, pode afirmar-se, o povo catarinense é essencialmente ariano, com particularidade nos centros alemães ou italianos, como Joinville, Blumenau, Brusque, Nova Trento, Orleans e Nova Veneza, cidades e vilas que foram outrora colônias, e cujas populações hão de ser, no futuro, o fator de um novo tipo de brasileiro interessante, superior, perfeito… (VÁRZEA, 1985 [1900], p.22)”.
No contexto de europeização e negação da presença negra, o Morro da Caixa/Monte Serrat, comunidade com maior número de pessoas autodeclaradas pretas e na terceira posição entre os bairros com maior taxa de autodeclaração de pessoas negras (pretas e pardas), de acordo com o último censo do IBGE (2010), se constituiu como o território negro. Mais que isso, se estabeleceu como o Morro das Mulheres Negras.
Através das vivências das mulheres negras do Morro da Caixa/Monte Serrat é possível, não somente conhecer outras perspectivas sobre Florianópolis, como também compreender as estratégias de sobrevivência e a construção da identidade étnico-racial buscando recuperar e valorizar a ancestralidade negra.
Do passado recente das lavadeiras do Morro da Caixa/Monte Serrat aos dias de hoje das líderes comunitárias, educadoras, donas dos bares, entre tantas outras atividades, que as mulheres negras da comunidade direcionam suas pautas políticas por melhores condições de vida e pelo reconhecimento da sua negritude.
Ainda que se negligencie deliberadamente a presença da população negra local afirmando que “em Floripa não tem negros” haverá, na trajetória da cidade, o Morro da Caixa/Monte Serrat para subverter essa lógica. O Morro das Mulheres Negras travou grandes lutas com as elites locais para a implementação do transporte público, água encanada e luz para suas casas. Mas também reivindicou, através da arte, cultura, educação e política o reconhecimento da sua identidade negra.
[1] Opto por utilizar o termo Morro da Caixa/Monte Serrat com o objetivo de respeitar a compreensão de pertencimento dos moradores da comunidade, uma vez que uns reconhecem o território como “Morro da Caixa”, nome alusivo a primeira caixa d’água que abastecia o centro de Florianópolis e que foi instalada ali em 1910. Já outros, chamam o bairro de “Monte Serrat”, nome proposto pelo ativista padre Vilson Groh, na década de 1980, em homenagem à Nossa Senhora do Monte Serrat.
*Cauane Maia é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestra em Antropologia Social pela mesma instituição, bacharel em administração e graduanda em ciências sociais. Integrante do Cores de Aidê.