A Educação em Direitos Humanos (EDH) é uma política pública com mais de duas décadas de existência e tem como principal objetivo a criação de uma cultura de Direitos Humanos. Dito de outro modo, trata-se de uma cultura em que os valores, princípios e normas dos direitos humanos são conhecidos, respeitados e valorizados pela população e pelos agentes públicos.

Conceitualmente, a EDH é uma proposta transversal que passa por diferentes setores e deve ser entendida não apenas como ações formativas pontuais, mas como um processo permanente que integra metodologias e conteúdos educativos, tanto para a população quanto para os trabalhadores da justiça, da segurança pública e os profissionais de ensino, seja no âmbito formal – educação básica e ensino superior –, seja na educação não formal.

Com isso em vista, entendemos que, ao falar de EDH, estamos tratando de um tema ideologicamente disputado. Falamos de igualdade de gênero, inclusão, diversidade, superação de variados tipos de preconceitos, democracia e de todo o conjunto de temas incluídos na agenda dos direitos humanos.

Talvez por isso, nos últimos anos, a EDH tenha passado por maus bocados. Durante o governo Bolsonaro, a área não sofreu ataques diretos – digamos, nominalmente –, mas foi praticamente sucateada, e importantes estruturas que compunham essa política foram descontinuadas pela gestão. Mais especificamente, já em 2019, o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, fundado em 2003, foi subitamente extinto por um decreto presidencial, encerrando 16 anos de trabalho do órgão colegiado responsável por monitorar e orientar a EDH no país. 

Além disso, a Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), que atuava com variadas pautas de direitos humanos no Ministério da Educação (MEC), foi descontinuada, e a EDH ficou relegada a uma pequena coordenação no antigo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.

Nas palavras de um integrante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) com quem conversamos para uma pesquisa, a EDH no antigo ministério era nada mais que um “puxadinho”.

E, de fato, sem verba, com uma equipe diminuta e sem interesse político, quase nada foi feito entre 2019 e 2022.

Não fosse o trabalho da sociedade civil organizada, é possível que a EDH tivesse sido completamente interrompida. Foram os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que, desde o início, atuaram para evidenciar e pressionar para que a EDH não se perdesse. Motivado por esse contexto, o Instituto Aurora para Educação em Direitos Humanos, organização inserida nessa luta, iniciou uma ação de monitoramento e publicização do cenário dessa política, chamada de Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil.

Feito esse contexto, cabe agora apresentar o panorama atual da EDH. Certamente, a política pública foi resgatada. O comitê nacional foi reformado em 2024, agora nomeado Comitê Nacional de Educação e Cultura em Direitos Humanos; o MDHC criou uma Assessoria Especial de Educação e Cultura em Direitos Humanos ligada ao gabinete ministerial, agora com uma equipe mais robusta e um aumento expressivo de verba; e a Secadi foi recriada, incluindo em sua estrutura uma Coordenação-Geral de Políticas Educacionais em Direitos Humanos, responsável por variados temas de direitos humanos associados à educação formal.

Sem dúvida, o cenário atual é promissor e tem potencial para ser um recomeço digno para a área. Mas é preciso ganhar mais espaços, sobretudo nos estados e municípios. Ao olhar o histórico da EDH ao longo desses 20 anos, salta aos olhos a fragilidade das instâncias formais e dos espaços institucionais da EDH. Até mais ou menos 2015, foram feitos esforços para a construção de comitês estaduais e planos estaduais de EDH, respectivamente órgãos colegiados ligados aos governos estaduais e documentos orientadores da política pública nos estados. 

Após isso, boa parte desses colegiados e documentos perdeu força e foi deixada de lado. Segundo uma pesquisa que realizamos em 2022, mesmo o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, de 2003) e as Diretrizes Nacionais para a EDH (de 2012) são pouco conhecidos pelos atores que operam a implementação dessa política nas unidades federativas.

Temos, então, um forte indicativo de que a institucionalização não tem sido suficiente para manter a EDH forte e estável ao longo do tempo. Existem alguns fatores que podem explicar essa fragilidade. Trata-se de uma política ligada a várias áreas, especialmente à política de educação e à de direitos humanos. Não à toa, de acordo com nosso levantamento, em oito estados brasileiros há duas secretarias responsáveis pela EDH. 

Isso não significa que essas secretarias trabalhem conjuntamente, nem que possuam uma orientação comum para a EDH. Outra hipótese está relacionada a uma aparente pessoalidade ligada à EDH, isto é, alguns atores estaduais servem como pontos focais e, sem eles, a política fica esquecida. Porém, essas são possibilidades difíceis de avaliar, pois nos faltam parâmetros para trabalhar mais objetivamente com a EDH.

Da nossa parte, temos apostado em algumas outras teses que servem também como caminhos para o fortalecimento do tema. De partida, é notório que existe pouca compreensão sobre o que é EDH por parte de representantes do poder público. Falta uma conceituação comum, ainda que exista um marco importante como o PNEDH. 

É certo que uma área que associa educação e direitos humanos deverá ter suas particularidades locais, não pretendemos generalizar indevidamente a EDH, porém, talvez seja possível estabelecer algo como um “consenso sobreposto”, um ponto comum a partir do qual as diferenças se estruturam, mas que, ainda assim, sirva como âncora.

Nesse sentido, um esforço conjunto entre MDHC e MEC para capilarizar essa política pelo território nacional – nos espaços de educação formal e não formal –, além de mobilizar os demais setores incluídos no Plano Nacional, isto é, Justiça, Segurança Pública, Judiciário e mídia, poderia ser de grande valia.

Por outro lado, a falta de processos, métricas e indicadores pré-definidos não permite a criação de parâmetros para avaliar os erros e acertos de uma política de EDH. O que efetivamente contribui, considerando todas essas áreas citadas no PNEDH, para a criação e nutrição de uma verdadeira cultura de respeito aos direitos humanos? O que funciona e o que não funciona, levando-se em conta que nem toda transformação promovida pela educação é mensurável? Entendemos que esse é um dos principais desafios para a manutenção da área.

Por fim, outro ponto de alerta está justamente relacionado ao que motivou nossa iniciativa de monitorar essa política pública: as informações sobre a EDH não são transparentes. Se observarmos as exigências da Lei 12.527/11, a Lei de Acesso à Informação, nenhum dos estados brasileiros têm uma prática de transparência no que diz respeito à existência e às atividades dos comitês estaduais, aos órgãos governamentais responsáveis pela implementação da EDH e à existência e vigência dos planos estaduais de EDH. 

Alguns estados possuem informações sobre alguns desses tópicos, mas nenhum cobre os três, os quais consideramos como uma espécie de tripé da institucionalização da EDH. Diante desse fato, incentivamos não apenas os governos estaduais a reverem as informações disponíveis, mas principalmente a sociedade civil organizada a utilizar esses dados para cobrar mais transparência.

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  • André Bakker da Silveira

    Gestor de pesquisa e projetos do Instituto Aurora e coordenador da pesquisa Panorama da Educação em Direitos Humanos no...

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