O misoprostol, conhecido popularmente pelo nome comercial de Cytotec, é considerado um medicamento essencial para a realização de procedimentos obstétricos, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ainda que seja o medicamento mais seguro para a prática de aborto, sua comercialização é proibida no Brasil desde 2006, quando o uso passou a ser restringido ao ambiente hospitalar.

Nesta terça-feira (26), a Defensoria Regional de Direitos Humanos (DRDH) da Defensoria Pública da União (DPU) em São Paulo enviou recomendação à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que permita a venda em farmácia, sob prescrição médica com retenção de receita, de medicamentos à base de misoprostol para casos de aborto legal, como gravidez decorrente de estupro, risco de vida para a gestante e fetos anencéfalos.

Apresentando 18 argumentos, a DPU recomendou à Anvisa a revisão da Resolução nº 26, de 15 de fevereiro de 2005, que marcou a proibição da comercialização do produto em farmácias ao determinar que a compra e uso do medicamento contendo a substância misoprostol só poderiam ser feitos em estabelecimentos hospitalares devidamente cadastrados junto à autoridade sanitária.

“A regulamentação tem que estar de acordo com a lei e a Constituição. Dois direitos fundamentais estão sendo violados, primeiro o direito à saúde, a forma como foi regulamentada dificulta o acesso da mulher, isso sem entrar no debate da descriminalização do aborto, nas hipóteses em que o aborto já é há 70 anos previsto no nosso ordenamento jurídico como possibilidade legal. A mulher tem o direito à saúde, o direito a acessar o medicamento, mas a Anvisa tornou mais inacessível por causa da restrição ao uso hospitalar”, argumenta Fabiana Galera Severo defensora regional de Direitos Humanos em São Paulo.

De acordo com dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) do Ministério da Saúde, em 2014 foram realizados 187 mil abortos inseguros e 1,6 mil abortos legais no país. Atualmente há 85 hospitais cadastrados como referência para o serviço de aborto legal, como o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, que é responsável por 25% do total de abortos no Brasil.

Uma reportagem publicada pela Folha, no último sábado (23), apurou que mulheres de todo Brasil precisam viajar ao hospital, principal centro de referência no país em atendimento à violência sexual, para realizar o procedimento de aborto nos casos em que há garantias legais. O levantamento identificou que pelo menos 33 mulheres precisaram deixar seus estados — do Pará ao Rio Grande do Sul– no ano de 2017 em busca de atendimento no hospital. Em média, 40% dos pacientes da unidade são de fora da capital.

“Existe um afã de a qualquer custo impedir que as mulheres realizem o procedimento de aborto, e nesse afã, um dos custos é a própria saúde e vida das mulheres porque se isso não fosse uma questão, as mulheres teriam acesso à informação e medicamento que, com o uso adequado e orientado por uma médica/o, não oferece risco à saúde e não necessita de internação hospitalar. As resoluções da Anvisa dificultam o exercício pleno ao direito à saúde das mulheres, acabam atingindo as mulheres que têm o direito ao aborto garantido no ordenamento jurídico. Um direito que na prática não tem efetividade por causa de todas essas manobras da regulamentação de restringir ao máximo o acesso ao medicamento”, analisa a defensora.

Assinado por Fabiana Galera Severo e também pela defensora Viviane Ceolin Dallasta del Grossi, o documento pede ainda a promoção de informações seguras e de fácil acesso à população sobre o uso e os efeitos dos medicamentos com o princípio ativo misoprostol, avisando que é necessária a adequação do país aos protocolos da Organização Mundial da Saúde (OMS), com vistas a garantir o direito ao aborto seguro conforme a legislação atual.

Em 2008, o medicamento passou a ser incluído, juntamente com a mifepristona, na lista de medicamentos essenciais da OMS para a realização de aborto terapêutico. Em cada 100 mulheres que fazem um aborto medicamentoso ou farmacológico, somente 2 ou 3 terão que recorrer a um hospital para finalizar o procedimento, de acordo com a OMS. Em 2010 foi integrado à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename

Apesar da importância desse medicamento para salvar a vida das mulheres, no Brasil ele integra a lista de substâncias sujeitas a controle especial, regulamentadas pela Portaria 344/1998. Sua comercialização é considerada infração sanitária gravíssima e crime hediondo previsto no artigo 273 do Código Penal, sob reclusão de 10 a 15 anos, além de multa.

A recomendação também inclui pedido para que a agência revise as Resoluções 911/2006, 1050/2006 e 1534/2011, que dão direcionamentos para que não haja publicidade, divulgação, orientações e propagandas a respeito dos medicamentos à base de misoprostol direcionadas ao público, inclusive em sites, fóruns de discussões ou outros meios virtuais. Para a DPU, há violação do direito à informação, tanto na perspectiva das mulheres quanto dos profissionais de saúde.

“Isso é gravíssimo, porque uma mulher que sofre violência sexual e que busca a rede pública para resguardar seus direitos, ela não consegue ter informação segura e de forma oficial porque é proibido. Isso impacta no direito à saúde, mas também no direito a uma vida social democrática, as pessoas precisam ter direito à informação”, denuncia Severo.

“A resolução viola o direito à informação e assim atinge o direito à saúde e à vida das mulheres que são direitos fundamentais”, coloca a defensora.

Ouça a entrevista com Fabiana Galera Severo defensora regional de Direitos Humanos em São Paulo:


Audiência pública discute aborto legal

Para discutir as restrições de acesso ao aborto legal, a DRDH de São Paulo irá realizar audiência pública em 28 de março, com participação de órgãos e entidades governamentais e membros da sociedade civil. A recomendação à Anvisa é resultado das deliberações da segunda edição do Ciclo de Debates da DPU, que reuniu em São Paulo, em 15 de fevereiro, autoridades e sociedade civil para participar de um debate aberto e discutir perspectivas de divulgação e de atuação dos órgãos governamentais acerca do aborto legal. O ciclo vai acontecer mensalmente durante este ano.

A iniciativa vai possibilitar desdobramentos de atuação da DPU como audiências públicas, capacitações, seminários, recomendações, ajuizamento de ações civis públicas e outras ações.

Durante o último encontro, Beatriz Galli, membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e consultora da Ipas Brasil, afirmou que a Anvisa comete uma grande falta ao impedir a divulgação de informações sobre o uso desses medicamentos, inclusive contra recomendações da OMS sobre o acesso ao aborto legal. Ela citou também outras dificuldades elencadas pelas mulheres como a falta de informações em como exercer o direito ao aborto, como podem ser atendidas, falta de centros de referência que realizem o procedimento e a recusa de profissionais de saúde em prestar informações e atendimento.

Renata Reis, consultora e membro do Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), fez uma apresentação sobre medicamentos abortivos e o histórico em torno de seus usos no Brasil. Ela criticou todas as barreiras impostas pela Anvisa, por meio de resoluções que impedem publicidade, orientação e toda e qualquer propaganda a respeito do medicamento. Para ela, a falta de informações apenas prejudica mais ainda as mulheres que tentam realizar o aborto legal, pois não conseguem encontrar facilmente o que buscam pelas redes sociais e pela internet ou buscam ilegalmente, tornando o problema uma questão grave de saúde pública.

Assista ao debate:

https://www.facebook.com/DPUnacional/videos/238032397138567/


Confira alguns dos argumentos utilizados na recomendação:

– As mulheres têm direito ao aborto seguro nas hipóteses legais: gravidez em decorrência de estupro (CP, art. 128, II), gravidez com risco à vida da gestante (CP, art. 128, I) e fetos anencéfalos (ADPF 54).

– A OMS publicou sua segunda edição do “Aborto Seguro: orientação técnica e políticas para sistemas de saúde”, em junho de 2012, trazendo importantes diretrizes para a prestação de abortos médicos e enfatizando que as mulheres devem ter acesso aos métodos de abortamento seguro com tratamento mais seguro disponível.

–  A ampla recomendação internacional, inclusive pela OMS do aborto medicamentoso como mais seguro e mais barato para os sistemas de saúde, tanto pela sua não oneração como em razão do valor do medicamento, com menos sofrimento e risco para as mulheres. A combinação de misoprostol e mifepristona – ou somente da atuação misoprostol, nos locais onde a mifepristona não estiver disponível – é recomendada pela OMS como mais eficaz e segura, usada para realização de aborto e antecipação do parto.

– Alguns países já estão adaptando suas legislações para garantir o aborto medicamentoso, a exemplo da Argentina, que em dezembro de 2018, aprovou a venda de misoprostol para fins ginecológicos em farmácias com uso de receita médica.

– A venda de medicamentos que incluem o misoprostol na composição é restrita a estabelecimentos hospitalares credenciados, sendo que a marca comercial utilizada nesses locais é o Prostokos, um medicamento de produção nacional registrado na Anvisa.

– Não há registros na Anvisa para medicamentos com o princípio ativo mifepristona, tornando impossível sua incorporação ao protocolo de atendimento para a prática do aborto legal no país.

– Em 2006, por meio da Resolução nº 911, a ANVISA determinou a suspensão em todo território nacional das publicidades veiculadas por meio de fóruns de discussões, murais de recados e sítios na Internet dos medicamentos à base de misoprostol não registrados na ANVISA, sob a justificativa de o medicamento ser de venda sob prescrição médica.

– Também em 2006, a Resolução nº 1.050 da ANVISA passou a proibir, além de publicidade, orientações sobre medicamentos à base de misoprostol.

– Em 2011, a Resolução nº 1.534 do órgão determinou a suspensão em todo território nacional de propagandas irregulares dos medicamentos à base de misoprostol não registrados na Anvisa ou direcionadas ao público leigo, com propriedades e finalidades não registradas na agência, o que implica violação do direito à informação tanto pela perspectiva da mulher como dos médicos e demais profissionais de saúde.

– O Ministério da Saúde é responsável pela aquisição e distribuição dos medicamentos que compõem o Programa Saúde da Mulher, entre eles o misoprostol, ou seja, sua compra é centralizada, sendo que atualmente é adquirido o medicamento Prostokos, em caráter de mercado de um só vendedor, da empresa Hebron, sediada em Caruaru, Pernambuco.

– O misoprostol é distribuído aos estabelecimentos hospitalares devidamente cadastrados que possuem serviço obstétrico e realizam parto/aborto.

– As atuais normas restringem o acesso das mulheres ao aborto legal ao impedir sua realização fora dos hospitais junto a  médicas/os de confiança ou em serviços privados.

– As atuais normas que proíbem a disseminação das informações necessárias sobre cuidados com a saúde reprodutiva levam às mulheres a buscarem abortos clandestinos, predominantemente inseguros, traumáticos e frequentemente resultando em graves riscos para a saúde e a vida.

–  Em maio de 2017 o Brasil passou pelo terceiro Ciclo do Revisão Periódica Universal, do Conselho de Direitos Humanos da ONU (RPU), e recebeu quatro recomendações de outros Estados Nacionais que tratam diretamente das obrigações relacionadas ao aborto seguro e à saúde sexual e reprodutiva para todas as mulheres.

–  Há necessidade de atualização do protocolo brasileiro de atendimento no serviço público de saúde, para que seja adequado às melhores práticas internacionais, em especial o protocolo internacional da OMS, a fim de garantir o direito ao aborto seguro.

Serviço
Audiência Pública “Aborto Legal”
Data: 28/03/2019 às 13h
Local: Auditório da Defensoria Pública da União em São Paulo
End: Rua Teixeira da Silva, nº 217, 1º andar – Paraíso
(Próximo à estação Brigadeiro da Linha 2 Verde do Metrô)

 

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