O 29 de janeiro marca, desde 2004, o Dia Nacional da Visibilidade Trans*, focado na conscientização e na visibilidade desta parcela da população, no país que mais discrimina e mata pessoas trans no mundo. Dentre os diversos desafios de ser uma pessoa trans ao longo de todas as fases da vida, a questão da empregabilidade figura como um ponto crítico que perpetua a exclusão social na idade adulta.
Instituições como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o projeto Transempregos, que conecta profissionais trans e travestis a empresas, lutam diariamente para promover esta consciência coletiva. Por exemplo, uma das ações é a promoção regular de campanhas voltadas à capacitação e à contratação de profissionais trans, como a que está rodando este ano no mês da visibilidade trans: “Empregabilidade Trans: Contrate uma pessoa trans para a sua empresa”.
Este cenário vem se modificando ao longo dos últimos anos, ainda que de forma tímida. Segundo o balanço feito pelo site Transempregos, o crescimento do número de empresas interessadas registrado na plataforma foi de quase 300% nos últimos seis anos, e uma das possíveis razões para isso é que a inclusão e a diversidade passaram a ser valorizadas como ativos importantes para as organizações.
Lucas Vieira de Linhares, 24 anos, é um homem trans que atua como analista de Suporte na empresa de tecnologia Involves. Mas até chegar nesta posição, enfrentou uma série de desafios. “Uma amiga precisou insistir muito para que eu aceitasse me aplicar à vaga na empresa. Sempre achei que eu não conseguiria um emprego como este. O preconceito marca a autoestima e, por conta disso, sempre desconfiei das minhas qualidades profissionais. Foi comum me sentir inferior às demais pessoas”, conta Lucas.
Os desafios até chegar à situação atual foram intensos. Os primeiros anos escolares foram conturbados para o jovem. “Eu nasci com o corpo para ser uma mulher. Mas, aqui dentro, não me reconhecia não fazia ideia de quem era de verdade. Quando estava no ensino médio, passei por uma situação muito grave com relação ao meu corpo, por não me reconhecer nele, e tomei a decisão de que iria montar um personagem para que eu pudesse aguentar viver por mais um tempo, e esse personagem foi o Lucas, o homem da minha vida”, conta.
Lucas criou, então, uma conta nas redes sociais por trás da qual se posicionava no mundo de acordo com o que sentia ser. “Passei um bom tempo sendo o Lucas das redes sociais e, por isso, perdi de certa forma a vontade de viver a vida que existia fora do computador. Então eu nunca fiz cursos, capacitações ou outras coisas que eu gostava pois nada era mais interessante do que a vida online: por mais que fosse virtual, eu me via naquele Lucas”.
A falta de perspectivas causada por todo o preconceito, o menosprezo e a marginalização ao longo da vida são fatores que influenciam fortemente no grau de escolarização das pessoas trans. “Me sentia deslocado na escola, me sentia ‘menor’ por todo o preconceito que sofria e não tinha vontade de estudar porque não tinha perspectiva de chegar aos 24 anos que tenho hoje. Parecia que algo iria acontecer que não me deixaria viver até essa idade, então eu não tinha sonhos ou vontade de fazer qualquer coisa”, desabafa Lucas.
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“Somos marginalizados demais, tratados como loucos, na maioria das vezes. Isso faz você acreditar que realmente não é capaz de nada, e que sempre vão te olhar como louco, diferente, doente, ou algo assim”.
“A dificuldade de acesso aos estudos sempre foi uma questão, e teve um grande impacto na minha vida, até hoje, porque eu não tenho nenhuma escolaridade além do meu ensino médio, que larguei quando comecei a trabalhar, e só consegui terminar em 2018, depois da prova do ENEM”, conta.
Cultura de valorização da diversidade
Thuany Schutz, gerente de RH na empresa de tecnologia Involves, explica que a empresa promove um ambiente mais inclusivo com a promoção da cultura que valoriza a diversidade. Além disso, há um grupo de discussão chamado Diversa, que organiza encontros semanais para a desconstrução de estereótipos de gênero. “Retiramos o preenchimento obrigatório de sexo no formulário de aplicação para vagas e fazemos divulgações em nossas redes sociais mostrando o time diverso que compõem a Involves”, para que todos se sintam à vontade e acolhidos em fazer parte”, pontua Thuany.
Segundo a executiva, a empresa passou por um processo de preparação para a entrada de trabalhadoras/es trans. “A nossa cultura é altamente focada no valor ‘eu sendo eu’, que preza por respeitar cada indivíduo com a sua singularidade, sem rótulos. Mas sabemos que, quando se fala em inclusão, há uma série de outros aspectos”, explica Thuany.
A superação passa por caminhos que se cruzam com o de pessoas e instituições, desde empresas que acolhem trabalhadoras/es diversos, até organizações que oferecem cursos de capacitação para essas pessoas discriminadas que não conseguiram continuar ou concluir sua educação.
“Posso ajudar minha mãe da forma que eu sempre desejei e tenho, além de respeito com o meu nome, um apelido, Luq, que eu sempre quis e nunca tive. É a realização de um sonho”, celebra Lucas.
“Hoje em dia eu lido muito bem com a minha sexualidade e também com a minha transição, amo cada pedacinho do meu corpo e vivo cada momento de mudança intensamente. Gosto muito mais de mim mesmo, me acho a pessoa mais linda do mundo e reconheço que posso conquistar muitas coisas”, conclui.
Em geral, a escolaridade das pessoas transmasculinas é inversamente proporcional à baixa escolaridade das Travestis e Mulheres Transexuais. A Antra estima que pelo menos 80% dessa população tenha concluído o ensino médio e seja a maior parcela da população trans nos empregos formais, com índices superiores a 70%, conforme apontado no dossiê divulgado neste 29 de janeiro.
*O Dia Nacional da Visibilidade Trans foi criado em 2004 a partir do lançamento de uma campanha nacional elaborada por lideranças do movimento de pessoas trans, em parceria com o Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde. O evento de lançamento da campanha “Travesti e respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida” levou 27 pessoas trans aos salões do Congresso Nacional, em Brasília, conferindo à data um sentido político de luta pela igualdade, respeito e visibilidade de pessoas trans.