Xica Manicongo e a Inquisição que parece não ter fim
Xica Manicongo é a primeira travesti catalogada nos registros da Inquisição no Brasil
A patrulha de gênero, a perseguição e a Inquisição nunca deixaram de fazer parte do cotidiano das pessoas trans e travestis. Apesar de não haver mais fogueiras queimando em praças públicas, pessoas que fogem ao padrão ainda são castigadas e genocidadas apenas por serem o que são. Existem diversos dados alarmantes que tornam o Brasil um país altamente violento e insalubre para pessoas trans e em especial as travestis e mulheres trans, que enfrentam os piores índices de acesso à educação, ao trabalho e renda, à saúde, e a direitos básicos fundamentais como um todo.
À medida que políticas antitrans convertem pessoas trans no “bicho papão” do século 21, as colocando como uma suposta ameaça à humanidade (embora saibamos que é a cisgeneridade) e as retratando como antagônicas à luta das mulheres e crianças, revela-se um certo desespero da cisgeneridade em manter firme seu pacto cissexista diante do declínio e da falência que enfrenta. Ou como anteriormente afirmou o Papa Francisco: “pessoas trans são como bombas atômicas” que “aniquilam o conceito de humanidade”(sic). Sabendo-se que ao falar em humanidade, esse pensamento coloca a cisgeneridade como norma natural e a transgeneridade como ameaça.
Na recente declaração intitulada “Dignitas infinita”, o Vaticano renovou seu ataque às pessoas trans, ecoando uma história de perseguição que remonta à Inquisição. Na primeira visita ao Brasil no século 16, a Inquisição perseguiu, demonizou e matou Xica Manicongo em vida.
Nesta versão contemporânea do crime de sodomia, o Vaticano coloca pessoas trans como “violações da dignidade humana”, ao lado da proibição do aborto, de crimes graves contra a humanidade e de tragédias como a guerra. Este posicionamento constitui um ataque direto à autonomia corporal e aos direitos humanos.
Os impactos das declarações do Vaticano, combinadas à mobilização da extrema direita global e de feministas transfóbicas, são devastadores e contribuem para o aumento do horror vivido pelas pessoas trans. Isso fortalece a manutenção de um sistema de hiper patrulha antitrans, que também afeta negativamente as mulheres cisgêneras. Devemos nos perguntar de onde vem o mito de travesti perigosa, por exemplo.
A perseguição enfrentada pelas pessoas trans, especialmente travestis e mulheres trans, teve início no Brasil durante a invasão catequizadora colonial e alcançou níveis extremos nos últimos anos. Esse cenário é agravado pelo apoio de figuras bilionárias como JK Rowling e Elon Musk, além de países como EUA, Reino Unido e Rússia, que adotam políticas antitrans alarmantes. Tal situação é ainda mais preocupante com o forte apoio da relatora de violência contra as mulheres da ONU.
Apesar de gestos simbólicos recentes, como o lava-pés em uma travesti na Páscoa na Bahia e o acolhimento de travestis pelo Padre Júlio Lancelot em São Paulo, a Inquisição difundida pela Igreja Católica como método de coerção das dissidências sexuais e de gênero persiste, com o propósito de exterminar o que considera uma ameaça. Vale ressaltar que foi a própria Igreja Católica que, nos anos 1990, criou o mito da “ideologia de gênero”, o qual tem causado graves problemas aos direitos das mulheres, pessoas LGBTQIA+ e, em especial, às pessoas trans.
Por outro lado, em meio às lutas e desafios do dia a dia, fomos surpreendidas com a divulgação do enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti que escolheu apresentar Xica Manicongo, a primeira travesti catalogada nos registros da Inquisição no Brasil para seu carnaval de 2025.
Xica Manicongo representa uma figura emblemática na história trans do Brasil. Em 1591, na cidade de Salvador, capital do país à época, durante a primeira visita do Santo Ofício, surgiram as primeiras denúncias organizadas pela patrulha de gênero contra uma pessoa escravizada que foi trazida sequestrada para o Brasil. Xica Manicongo era vista como alguém que desafiava os dogmas religiosos da Igreja Católica ao se vestir com roupas “femininas” e era rotineiramente acusada de ser homossexual.
Embora o sapateiro que a mantinha escravizada permitisse que ela transitasse pelas ruas com as roupas que desejava e isso ser fato notório em toda a região, ela foi acusada de bruxaria e de praticar atos antinaturais (sodomia), sendo perseguida por isso. Tendo sido obrigada a vestir-se com roupas masculinas e vivendo sob intensa patrulha até sua morte. Após o episódio de Xica, vestir-se como roupas de outro gênero também passou a ser crime nos anos de 1600 – e continua sendo em vários países do Oriente Médio, como Dubai, por exemplo.
A criminalização da identidade de Xica imposta pela Inquisição foi o primeiro caso de transfobia catalogado no país, onde ela teve negada a sua dignidade humana ao ser proibida de viver e expressar sua identidade. Hoje no Brasil, negar a identidade, tratar pessoas trans por pronomes inadequados e/ou por um gênero diferente do que a pessoa se idêntica, embora seja o desejo perverso de diversos grupos antitrans, é crime e encontra proteção legal em diversos países ao redor do mundo e em mecanismos internacionais como a ONU e a OEA. Mesmo assim, muitas Xicas ainda seguem invisibilizadas e impedidas de serem quem são com medo das diversas fogueiras que a sociedade mantém acesas e prontas para nos jogar.
Embora inicialmente Xica Manicongo tenha sido erroneamente marcada como homem por pesquisadores cisgêneros que mantiveram uma visão colonizadora sobre o gênero ao terem acesso privilegiado aos registros da Inquisição, sua travestilidade não escapou à percepção de suas descendentes trans e travestis. Elas identificaram a mesma transfobia que vivenciam e que marcou a trajetória de Xica na baixa do sapateiro, na Bahia.
Foi a ativista negra travesti Majorie Marchi que, como fazem as madrinhas travestis, reimaginou e rebatizou a personagem histórica com o nome social de Xica Manicongo. Atribuindo assim sua verdadeira identidade e garantindo dignidade póstuma à nossa primeira Traviarca. E após a redescoberta de Xica, ela virou peça, tema de desfile de moda, cordel, música, poesia, cursinho e agora virou enredo, a maior homenagem que alguém poderia receber, ainda mais sendo uma travesti negra, e que vem do carnaval.
A vida Xica Manicongo se confunde com a de muitas Xicas, travestis negras que tentam sobreviver na “necropolis brasilis”. O país que mais assassina pessoas trans do mundo, sendo maioria de travestis e mulheres trans negras e jovens, muitas delas queimadas vivas, como Ester Vogue (2020), Roberta da Silva (2021) e Adaira (2024) entre outras. E fato é que essas perseguições históricas têm imposto diversos desafios para o processo de cidadanização das pessoas trans.
Os ataques ao gênero, a proibição nos esportes de alto rendimento, impedimentos do uso do banheiro e demais espaços segregados por gênero, além da propagação da “ideologia de gênero”, têm direcionado seu foco nas identidades transfemininas. Essa agenda, parte das políticas antigênero, prioriza a manutenção da criminalização das travestis.
As campanhas globais contra os direitos trans têm mantido o ataque e as perseguições contra as identidades transfemininas. A colonização cristã quase dizimou parte importante de nossa história ao redor do mundo, perseguindo Muxes, Hijras, Fafafines, travestis, mulheres trans e outras identidades transcestrais.
Portanto, acredito que deveria ser considerado tortura impor que qualquer pessoa seja obrigada a vivenciar uma designação de gênero que ela não se identifica como se fosse algo natural ou “essencializada”, ou exigir que se vistam e/ou expressem de determinada forma, mesmo que isso lhe traga toda sorte sofrimento ou as coloquem como subumanas, abjetas e matáveis. Como podemos observar, desviar as normas, os padrões, o lócus social e os papéis de gênero são o combustível da misoginia e da transfobia. E este é o crime que temos cometido simplesmente pelo fato de existirmos.
Hoje, no Brasil que também é o que mais consome pornografia trans e elege parlamentares trans do mundo, há mais de 300 projetos de lei antitrans tramitando e mais de 70 leis vigentes que perseguem pessoas trans em diversos municípios do Brasil. Temos visto se intensificar uma agenda global antitrans em plena atuação.
E dentro desse cenário, de perseguições e extrema violência, o anúncio da Paraíso do Tuiuti veio de forma providencial, amplificando o grito que há muito anda preso na garganta das pessoas trans e travestis. Parecia que estava se antecipando ao que viria a seguir na forma de mais um ataque vindo do Vaticano contra as pessoas trans, contra a liberdade do corpo de pessoas trans e mulheres, e a possibilidade de nossas existências de forma livre.
Ao resgatar a história de Xica Manicongo, a Tuiuti, nas palavras do carnavalesco Jack Vasconcelos, pretende, sobretudo, celebrar todas as Xicas que constroem o carnaval e que todo mundo conhece, mas que nunca estiveram em um lugar de serem celebradas e homenageadas.
Sobretudo pela possibilidade de transformar as potências destas pessoas na força motriz de um enredo arrebatador que pode mover as estruturas e reposicionar identidades marginalizadas no lugar de protagonismo.
O que não é apenas pioneiro, por se tratar da primeira escola do Rio de Janeiro a trazer uma travesti como enredo, mas extremamente pedagógico, instigante e desafiador. Afinal, será uma temporada pré-carnaval onde as pessoas estarão falando e ouvindo sobre as travestilidades.
Demonizadas pela Inquisição, criminalizadas e perseguidas (inclusive com mortes) na ditadura, sobreviventes da epidemia do HIV e da AIDS, patologizadas pelos saberes médicos e jurídicos, invisibilizadas pelos órgãos governamentais e nas estatísticas, exploradas no trabalho sexual e pelo pink money, e submetidas a todas as formas de transfobia recreativa em programas de TV e na internet, as travestis ainda assim sonharam em construir um futuro diferente, assim como Xica Manicongo.
Questionar “Quem tem medo de Xica Manicongo?” ou “Quem tem medo de Travesti?” é algo bastante ousado que temos feito ao longo de nossas vidas. E é gratificante que a Tuiuti tenha dado esse passo na busca por reparação e justiça para as travestis.
Mutas Xicas foram apagadas da história ou nunca foram descobertas. A primeira Rainha da Bateria do Carnaval, que inaugurou o post no final dos anos 1970 foi uma travesti (Eloína dos Leopardos), o primeiro livro escrito por uma travesti foi publicado nos anos 1980 (Rudy Pinho), a primeira parlamentar trans foi eleita em 1992 (Katia Tapety), em 1993 foi fundada a primeira instituição de luta trans (Astral/Antra); tivemos a primeira doutora em 2012 (Luma Andrade) e a primeira deputada estadual em 2018 (Erica Malunguino).
Somente em 2022 vimos as duas primeiras travestis eleitas para a Câmara Federal, e em 2024 o Brasil passou a ter sua Primeira Travesti Doutora Honoris Causa (Keila Simpson). Estas e muitas outras Xicas precisam ser conhecidas e referenciadas, inclusive as anônimas que apenas sonham com o direito de serem felizes.
De Xica escravizada à deputada federal Erika Hilton, todas temos sido perseguidas. Todas somos um pouco Manicongo e um pouco Hilton. Como Xica, seguimos resistindo de cabeça erguida, organizadas e coletivamente temos construído formas de sobrevivência com estratégias diversas para mudar essa realidade.
Temos no Brasil um dos movimentos trans mais organizados do mundo e com grandes conquistas, embora ainda haja muito trabalho a ser feito. Desmantelar os sistemas de opressão e patrulha que aprisiona corpos, cis e trans, e limita suas experiências enquanto seres humanos é um compromisso que todas as pessoas deveriam assumir.
É a transfobia que deveria ser reconhecida como uma violação da dignidade humana, já que segue sendo instrumentalizada para seguir perpetuando a Inquisição sem fim que vivemos enquanto travestis. Não somos perigosas, estamos em constante perigo. E enquanto houver essencialismo e rigidez nas identidades, papéis e expressões de gênero, haverá transfeminicídios, patriarcado, misoginia, racismo, transfobia e outras violências, e como consequência disso, mulheres, crianças e outras identidades seguirão em constante risco. Isso precisa ser interrompido!