Domingo, 20 de fevereiro de dois mil e vinte e dois. Rolê de domingo passado. Temos (ainda) o vírus medonho pandêmico e não é de boa ideia ir a lugares onde tem muita gente. Uma amiga que, como eu, estava sozinha em casa, sugeriu que fôssemos almoçar e um espaço novo na cidade. Bueno, vamos conhecer este lugar e papear sobre jornalismo, literatura, livros, escritos, reportagens, política, homens, essas coisas que amigas leitoras conversam quando se encontram.

Fomos. Primeiro nos perdemos mesmo com o guia de caminhos, passei a entrada. Não demorou, e voltamos para a rota.  Chegamos. Estacionamento desses que engolem a gente e eu odeio porque são claustrofóbicos. Imaginávamos um espaço cultural que expressasse cultura e arte, acessível para o povo. Nada, para estacionar ali, um assalto. Para comer, outros assaltos. Mas já que lá estávamos, fomos conhecer o que tem nos cardápios, nas lojas, assim.

Optamos por um prato menos escandaloso no valor e nos instalamos numa poltrona. À nossa frente, um homem cantava maravilhosamente. Ele era (é) de meia idade, bonito e no violão era perfeito.  Sorria quando aplaudíamos. Numa das pausas, ele nos olhou, sorridente, e eu disse a ele “fora B….!”. Ele sorriu mais. Conjecturamos: será que é de esquerda? Será que entendeu minha intromissão? Será que se liga nas questões que fervem na política? Sim, deve receber uns reles trocados pelas horas que musicaliza o ambiente, como são os músicos nestes espaços, explorado.

Bem, o local estava lotado de pessoas brancas, bem vestidas, bem tratadas e gastando bem. Pessoas negras serviam as mesas, corriam entre um cliente e outro e estavam nas cozinhas. Nada de novo de como são os espaços seletivos. 

Passaram algumas músicas e ele cantarolou Bella Ciao, bonito de ver. Talvez tenha compreendido, pensamos. Quando o jovem terminou sua apresentação, perguntamos se o fato de ter catado Bella Ciao tinha algum gesto de resistência, ou uma pequena resistência ali. Ele não entendeu. Explicamos. Então ele disse: “Não, nem sei o que quer dizer a letra… cantei porque acho a melodia bonita. Não gosto de política e não entendo nada disso”. Agradecemos.  “Não, eu não pegava mais”, disse a amiga. 

Bem, nada de novo no contexto. Lembrei de um homem que conheci pelo site de relacionamento Par Perfeito em 2013. Um mês de conversas esporádicas, uma semana de boa conversa sem entrar em questões outras senão a possibilidade de um bom encontro. Marcamos um almoço e ele me apanhou em frente de onde moro.

Primeiro contato ao vivo é sempre curioso e, como é evidente, cercado de imaginários por parte de ambos. Eu usava um vestido vermelho e ele elogiou a cor, disse que eu era mais bonita que na telinha, e assim. Eu disse que gostava da cor vermelha. Ele disse que a cor é bonita, pena que fosse usada por políticos. Como assim? “Vai dizer que tu és dessas que vota na Dilma!! Não, né?”. Gelei.

Perguntei porque pensava assim e ele fez seu discurso decorado… Puxei minhas posturas políticas e disse que sim, eu era feminista, de esquerda, petista e expliquei porque votaria na Dilma. Ele balançava a cabeça em reprovação. Eu disse que me levasse de volta que eu não queria mais almoçar. Ele engrossou a voz e disse que eu era radical, que não devia deixar isso estragar nosso almoço que não sei o quê… “Ou me leva de volta ou eu desço aqui mesmo!” Voltou. Sem mais uma palavra, saltei do carro sem olhar para trás. Ele, o macho que quer demonstrar superioridade, pisa forte e vai-se no seu carrão como se fugisse do diabo. 

Desde então, fiquei cuidadosa nessas ocasiões. Também abandonei redes de relacionamentos – haja dificuldade de encontrar homens politizados ou, pelo menos, não resistentes ao diálogo e com alguma noção de estar neste mundo cindido e volátil. Desde a polarização e agravando-se desde 2018, temos um problema para paquerar. A possiblidade de uma trombada é real.

Não, não dá para enamorar-se de um homem que defende o indefensável, que vota no imprestável, que flerta como fascismo.

Definitivamente, não dá. Não, não dá para uma entrega, uma dança, um tango e a soltura com alguém que defende fascistas. Seria broxante. Só de pensar é broxante. 

Com uma pessoa conservadora, de direita, eu converso se houver diálogo com argumentos e não de opinião pela opinião.  Nem todo conservador é pró fascismo; nem toda pessoa de direita aprova o sucateamento dos bens públicos, a devastação do ambiente, o negacionismo e o desmonte dos direitos sociais no Brasil. Come estes, eu converso e vamos aos argumentos. 

Mas com quem vota sem refletir, defende os absurdos como volta da ditadura e tudo o que vem com isto, é de extrema direita e se acha a última bergamota do pé, não tem diálogo.

Embora saibamos que em algum momento vamos ter que conviver e amainar as rusgas políticas, a realidade tem mostrado que não está fácil. Conviver com pessoas que tem os fakes como verdades e que defendem mentiras, não dá. Basta uma olhadela para si e para os lados: são raríssimas as famílias que mantiveram a paz nos grupos de WhatsApp, raras. Sair de um grupo familiar, ou de amigos ou outros já é coisa do cotidiano. E, não é?

Os sites de relacionamentos já foram uma forma segura para encontrar parcerias afetivas. Hoje, para além do receio de assaltos, golpes, e violências pode ser que do outro lado da telinha esteja um reacionário de carteirinha, extremista, um caloteiro ou mesmo fascista. Noto que mulheres estão/são mais cuidadosas nos seus perfis, dizendo de forma clara o que não querem. Já os homens, bem, segundo uma busca através do perfil no Tinder de um usuário, esta não é uma preocupação.

Dá para pensar… Tenho amigas que usam o aplicativo e são claras no perfil afirmando a verve democrática, portanto, com homens que flertam com o conservadorismo fascistóide o machismo, sem conversa. “Não é possível estabelecer um debate com fascistas, pois estão tão fascinados em suas ideias e crenças, por seu autoritarismo que não conseguem raciocinar fora do que lhe foi imposto e é bravamente repetido”.

Com a pandemia, estes sites de relacionamento deram um salto, o que é compreensível.  Acontece que como todas as tecnologias digitais, os modos de interações mudam e se adaptam aos usuários: novas segmentos identitários ou de interesses forçam a criação de grupos como lgbtqi+, encontro de casais, fator idade, ménage, dentre outros.

Observo que, no reino Unido, apps de namoro estão oferecendo o filtro de “vacinado” como bônus. Outra novidade é a interação nos “encontros às cegas”, ou conversas rápidas sem que um veja o perfil do outro. Acontece através das perguntas e foca mais na personalidade do que na aparência, ou seja, um ou outro pode descartar o encontro caso não goste das perspectivas ou ideologias de que está conversando. 

Vivemos um tempo de pressa, de individualismos, de comportamentos azedos. Lucy escreveu que “Comportamentos como ghosting (sumiço), curving (enrolação), orbiting (não sai da sua volta, mas não fala contigo) e benching (banco de reserva) estão sendo muito comuns na comunicação através dos meios digitais”.

Argumenta que os homens protagonizam estes ‘sumiços’ como e quando lhes convém, descuidados e sem responsabilidade afetiva pondo em evidência construções do machismo estrutural nos atributos de “machos” pegadores. 

Somado a isso, vivemos uma “sociedade marcada pela efemeridade, descarte e fluidez” e, “na era do amor líquido e dos relacionamentos virtuais, os indivíduos passam a manter vínculos afrouxados a fim de desfazê-los rapidamente”. No mundo digital, se tem benesses, também se compõe de superficialidades e relações que podem ser tóxicas. Nossas vidas estão configuradas pelos aparelhos hoje massificados e o celular passou a fazer parte da vida cotidiana, para o bem, e para o mal.

Bem, voltando ao que vinha dizendo antes, sim, encontros que se conectem e têm afeto são possíveis e acontecem, mas está difícil nesta polarização entre esquerda e direita, para ser bem explicativa.

Para além do machismo estrutural e das violências que as mulheres vivenciam o tempo todo, temos que tomar tento – pensar bem mais antes de dar um match e confirmar o encontro. Pode ser uma roubada. 

“A mulher é tão complexa que o homem tem medo dela”, disse um amigo numa conversa sobre relacionamentos. Não acho que somos complexas só porque queremos segurança, seja qual for, mesmo que seja não cair num encontro com um extremista que abomine nossos direitos. Seria o fim. 

E você, o que me diz? Teria soltura para uma relação amorosa nestas condições? Eu não tenho estômago, nem fígado. 

“eu tive que ir embora
eu estava cansada
de deixar que você
me fizesse me sentir
qualquer coisa
menos que inteira”

Rupi Kaur

Marlene de Fáveri, 20 de fevereiro de 2022. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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