Por Lucy, 40.

Era outubro. Deu match. Depois de um bocado de conversa, combinamos de encontrar. Nesse dia chovia muito e fazia frio. Bateu uma certa preguiça porque encontro por meio de aplicativo sempre pode ser uma roubada, mas, como já estava na rua, fui.

Nesses encontros, a primeira visão é muito estranha. É sempre aquela expectativa se a pessoa vai corresponder à fotografia que colocou no perfil. Como já tinha visto uns vídeos, a surpresa não foi tanta e a figura me atraiu de primeira. Na conversa ele comentou que todos os relacionamentos que teve conheceu através do Tinder, o que me surpreendeu porque eu achava que o app era mesmo só para transar. Nascemos no mesmo ano, temos 43.

Por um momento mudei minha ideia dos aplicativos, talvez fosse mesmo só mais uma forma de conhecer pessoas. As relações estão se transformando e o que vai resultar de cada encontro nem sempre é previsível. 

No primeiro encontro sempre rola aquela dúvida: vamos transar ou não? Dei uma sondada onde morava e ele me contou que estava de mudança, que a nova casa ainda estava bastante caótica. Eu, por princípio, não levo o sujeito pra casa na primeira noite, por se tratar de um desconhecido. Apesar de parecer confiável, sou mulher e nunca se sabe o que pode acontecer: estupro, golpe, e outras violências são comuns na nossa sociedade. Por isso, sempre marco em lugares públicos e nunca levo para casa.

Depois seguimos conversando por mensagens. Ele propôs de passar o dia juntos e começamos a nos encontrar com mais frequência. Me perguntou se eu viajaria com ele e conheceu alguns de meus amigos e amigas. Conversamos sobre modelos de relacionamentos, mas sem estabelecer algum acordo entre nós. Apenas deixei claro que não gosto de ciúmes, de controle e não sou de morar junto. Comentamos sobre as falhas das relações tradicionais. Parecíamos nos entender.

Mas era fim de ano e ele começou a ter muito trabalho. Entrega de vídeos com prazos justos. Como eu já trabalhei muito com produção, aquilo me fazia sentido. Afinal, estamos todos sob o efeito da sociedade do cansaço, como bem observou Byung-Chul Han. Por outro lado, sabemos que, na maioria das vezes, o homem que se diz cansado ou ocupado é porque não está mais afim. Mas estava fluindo, estava legal. Fiquei na dúvida.

Depois de uma série de desencontros de viagens e uma postagem descuidada nas redes sociais, as mensagens começaram a esfriar. Já não me procurava mais. Sumiu. Entendi que tinha acabado. Me assustei com a indiferença. Foi como se tivesse tirado o caramelo da boca da criança. Percebi o corte e me senti ridícula por “sentir”. Então pedi para ele falar se não estivesse mais afim. Ele respondeu: Falo sim, pode deixar. E sumiu de novo.

Depois de uns dias, me deparei com um pensamento da psicanalista Maria Homem, sempre muito certeira, tocando na ferida das relações contemporâneas: 

“A gente tá fingindo que se conecta, e só assim a gente finge que se desconecta. Por que a gente tá fazendo fake-luto? Porque a gente não faz relação. A gente finge que faz um laço, e aí a gente também finge que encerra.” 

Era bem como eu estava sentindo, porque eu precisava finalizar sozinha, fazer um fake-luto de algo que eu não sabia se estava acontecendo. Era só eu que estava vivendo? Foi tudo fake?

Cheguei a enviar a citação e tivemos uma boa conversa, que deveríamos ter tido antes. Ele apontou que não definimos que tínhamos um relacionamento, muito menos do tipo monogâmico. Foi honesto e pediu desculpas pelo mal-entendido. A conversa foi muito esclarecedora, mas sem abertura para o encontro.

A situação estava clara: eu me envolvi emocionalmente e ele não (confirmando a equação de sofrência da Marília Mendonça). Levei um pé na bunda. Até aí tudo bem. Não tinha nada de errado, foi tudo sincero. Mas na hora de dizer “não quero mais” foi muito desajeitado. A estratégia do sumiço (ghosting**), de deixar a pessoa no vácuo, produz uma sensação violenta de indiferença.

Comportamentos como ghosting (sumiço), curving (enrolação), orbiting (não sai da sua volta, mas não fala contigo) e benching (banco de reserva) estão sendo muito comuns na comunicação através dos meios digitais. Mas isso acaba sendo um bombardeio de micro agressões.

Esse caso me fez refletir sobre algumas questões que afetam os relacionamentos contemporâneos. Uma delas é o afeto, outra a monogamia.  

Ele teve razão quando afirmou que o relacionamento era aberto. De fato, eu nunca falei em monogamia nem cobrei nada nesse sentido. Apesar de acreditar que quando está muito bom com alguém, dá vontade de curtir aquela pessoa específica, então tem uma monogamia natural que acontece pelo menos por um tempo. Mas isso parece ser um pensamento feminino. Ele disse que para a maioria dos homens, ele pode até estar gostando, mas vai querer variar.

De qualquer forma, não era essa discussão que me incomodava, mas sim a ideia de intimidade fria, o desaparecimento do desejo e a forma como isso foi comunicado.

Me fiz as perguntas que a psicanalista Regina Navarro sempre diz para fazer em uma relação: “Sinto-me amada? Sinto-me sinto desejada?” A resposta foi não. 

Acredito que o relacionamento pode ser aberto, fechado, poli, tri, de mil maneiras…desde que haja desejo e respeito. O que move o desejo? Difícil saber. O desejo é inconsciente, não temos controle sobre isso. Podemos até tentar entender o que move o nosso desejo, mas nunca o desejo do outro. E se o desejo do outro morre, não há o que fazer. 

E como comunicar quando isso acontece?

Tem um samba de carnaval de 1943 chamado Lealdade que deveria ser canção tema para todas as relações. A composição é de Wilson Batista, Haroldo Lobo e Jorge de Castro. Foi interpretado por Orlando Silva, por Caetano Veloso e pela Banda Eddie. Diz o seguinte:

“Serei, serei leal contigo
Quando eu cansar dos teus beijos, te digo
E tu também liberdade terás
Pra quando quiseres bater a porta
Sem olhar pra trás
Se o teu corpo cansar dos meus braços
Se o teu ouvido cansar da minha voz
Quando os teus olhos cansarem dos meus olhos
Não é preciso haver falsidade entre nós.”

Parece que essa é uma grande dificuldade e não é só de hoje. As pessoas não sabem se separar. Sumir é uma estratégia. Não dizer nada como se dissesse tudo. O meio tecnológico facilita isso.

O psicólogo João Marques, que costuma direcionar seus textos ao público masculino, observou o seguinte:

“Às vezes tem até um interesse genuíno, e quando não faz mais sentido ou mudamos de ideia, ao invés de informar, escolhemos ir sumindo aos poucos, fazendo o velho curving, que é o ato de estar à disposição, mas só minimamente, para manter a pessoa próxima. Não aceita mais nenhum convite para sair, enrola, conversa pobre, e vai desgastando a relação, tudo isso para não dizer “eu não quero mais”. Precisamos entender que a gente sempre tem um compromisso com qualquer pessoa, que é ser responsável afetivamente, e isso tem faltado.”

Esse é um trecho do texto “O roteiro clássico irresponsável afetivo e o jogo da escassez”, em que Marques ressalta a necessidade de responsabilidade afetiva por parte das pessoas.

Marques também coloca a questão do machismo (inevitável), e explica que “há um incentivo em tom de piada de fazer com que os homens apenas façam sexo e sumam em seguida.” 

Essa frase aponta um dado fundamental para se pensar, que é a questão do humor no coletivo masculino. O humor de bullying (humilhação) ou de vantagem (desprezo) em relação a uma outra pessoa destrói qualquer tipo de respeito. Uma piadinha que provoca o riso com ar de superioridade tem graça pra quem?

Na construção cultural ocidental as meninas são ensinadas a amar os homens e os meninos ensinados a desprezar as mulheres. Isso gera uma incompatibilidade total na vida adulta. 

Marques, quando reflete sobre a sedução tóxica masculina e a falta de limites, confirma:

“Você, homem, sabe que existe um aprendizado comum a todos nós que é o seguinte: vale tudo para conquistar uma mulher, mas não é conquistar porque você admira demais, é conquistar para contar mais uma na lista, ou se exibir para os amigos, a velha história da cumplicidade masculina que cultiva amor entre os homens e o desprezo pelas mulheres, afinal, se o homem não vê valor humano nas mulheres, porque ele iria se questionar sobre suas atitudes?”

Assim, muitos homens são dissimulados e as mulheres devem estar sempre atentas para detectar os sinais. Isso é emocionalmente cansativo. 

Conversando com amigos e amigas na faixa dos 40 sobre os aplicativos de relacionamentos, percebi que os homens gostam muito e as mulheres se cansam. Os homens estão adorando, pois ninguém controla ninguém, e a quantidade -afinal é isso que interessa – é imensa. Já as mulheres se cansam porque é um processo de garimpo, e quando encontram não dá pra relaxar. É legal variar também, mas a escolha não é tão imediata. É preciso estar sempre em estado de alerta, cuidar com golpe, violência e falsidade. E saber que ao entrar no jogo a regra é o descarte. 

Quando o jogo é honesto, o sexo casual funciona. E pode ser muito bom. Muitas vezes são as mulheres que querem transar sem envolvimento afetivo. O problema é quando há o que Marques chama de love bomber, um tipo de sedução que simula um envolvimento sem estar envolvido. A pessoa dá sinais de amor e depois desaparece.

Outro ponto que merece ser discutido com relação aos aplicativos e às relações contemporâneas é a questão do controle. Estabelecer uma relação livre e leve, sem cobrança, parece ser uma tarefa impossível. 

Novamente, João Marques, quando escreve sobre a dificuldade em lidar com um amor tranquilo, aponta:

“As mulheres são ensinadas a manter certo controle na relação, se não tudo perde o rumo. Isso é cruel, extremamente cansativo e é um controle ilusório, pois jamais teremos controle de ninguém. Mas isso é ensinado às mulheres como algo possível, então se cria uma ideia de que homem é um eterno imaturo, que precisa ser controlado, se não ele escapa, e o machismo reforça essa conduta nos homens.”

Será tão difícil acreditar na conexão e no afeto entre as pessoas sem precisar monitorar o tempo do outro para que funcione? 

Ter responsabilidade afetiva, ter cuidado com o outro, agir de forma inteira, limpa e íntegra é uma raridade. O machismo estrutural e a frieza do mundo digital estão contribuindo para um descarte em massa e sem cuidados. São violências contemporâneas que estão sendo naturalizadas e atropelam as manifestações de afeto, confiança e respeito. É preciso saber como sair de cena. Não é fácil ser livre.

Referências:

BATISTA, Wilson, LOBO, Haroldo e CASTRO, Jorge de. Lealdade [Música]. Gravado em disco Columbia por Orlando Silva (1943). Interpretada por Caetano Veloso (1986), João Gilberto (2009),  e Banda Eddie (2006). 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HOMEM, Maria. Sobre dizer adeus [Episódio de podcast]. Vibes em análise, dez 2021. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0ucjuaeImS8fetENsMrzf9

@maria.homem

MARQUES, João. O roteiro clássico irresponsável afetivo e o jogo da escassez, 2021. Disponível em: @joaomarques.psi

MARQUES, João. Sobre a dificuldade em lidar com um amor tranquilo, 2021. Disponível em: @joaomarques.psi

MARQUES, João. A sedução tóxica masculina e a falta de limites, 2021. Disponível em: @joaomarques.psi

MENDONÇA, Marília. Todo Mundo Vai Sofrer [Música]. EP Todos os Cantos Vol. 2. 2019.NAVARRO, Regina. O amor romântico em seus últimos dias. Ted Talks, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GYOWEmRh3zU @reginanavarrolins.

*A autora optou por usar um pseudônimo

**Ghosting é um termo usado para designar o término repentino de um relacionamento sem deixar explicações. Vem do inglês e é derivado da palavra ghost, que significa fantasma em português.

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