Todos os anos, em 8 de março, é celebrado o Dia Internacional das Mulheres, data que marca a luta feminista contra o patriarcado e pela garantia de direitos, liberdade, acesso à saúde sexual e reprodutiva, direito ao aborto e enfrentamento de todas as violações e violências de gênero. Não é um dia para nos dar flores, chocolates ou felicitar as mulheres, embora esses simbolismos possam ser bem-vindos quando o respeito à nossa existência é praticado ao longo de nossas vidas cotidianas, todos os dias.

A data do 8M nos ajuda a centralizar as urgências que mulheres do mundo inteiro têm pautado em busca da equidade de gênero e enfrentamento das diversas formas de violência decorrentes dos lugares subalternizados em que historicamente temos sido colocadas.

Se afirmar enquanto feminista é um enorme desafio, devido aos processos de banalização, desqualificação e criminalização enfrentados pelos feminismos. Isso pode resultar no afastamento  de algumas mulheres dessas lutas ou favorecer um cenário onde feministas antigênero e aquelas ditas antifeministas passam a ganhar espaço nas redes sociais, ampliando uma agenda conservadora que terá impactos significativos contra as pessoas trans.

Partindo da ideia de que a luta feminista não é contra os homens, mas em favor das mulheres, e nunca no sentido de buscar privilégios, como algumas pessoas desinformadas podem pensar. Devemos pensar em como construir formas de proteção coletiva, prevenção, responsabilização e reparação  das injustiças, violências e violações, assim como a mobilização de esforços para impedir a repetição de ideais machistas, misóginos, feminicidas e transfóbicos.

De acordo com a pesquisadora Bruna Camilo, a “misoginia é um sentimento de aversão ao feminino e se traduz em comportamentos, atitudes e discursos que visam à manutenção das desigualdades entre gêneros, fortalecendo a crença na superioridade masculina e podendo levar a violências físicas, simbólicas e outras”. E tem sido através da misoginia como ferramenta do machismo e do patriarcado que mulheres cis têm sido posicionadas como seres de segunda categoria, em um cenário onde ainda há aquelas que sequer são reconhecidas como mulheres.

Violências patrimoniais, racistas, misóginas, capacitistas, transfóbicas, ou ainda simbólicas, sexuais, psicológicas e institucionais fazem parte de um sistema muito bem organizado para desmobilizar e enfraquecer nossas lutas. Mulheres sofrem diversas formas de violência, algumas diretas e muitas tão sutis que quase não se percebem, difíceis de diferenciar por usarem narrativas mais rebuscadas, acarretando uma série de dificuldades de identificação e punição. Algumas são compartilhadas e outras específicas de determinado grupo, como o racismo e a transfobia, por exemplo.

E se ela for negra, pobre, com deficiência, lésbica, trans, gorda, da favela ou do campo, esse lugar na hierarquia social vai diminuindo ainda mais pelo acúmulo das violências que se intercruzam e se retroalimentam, impedindo avanços significativos no enfrentamento das desigualdades, muitas institucionalizadas, e das injustiças praticadas contra as mulheres.

Cabe destacar que, enquanto feministas, não podemos nos dar ao luxo de hierarquizar opressões ou escolher qual será “a prioridade” do momento, pois é urgente traçar estratégias para combater todas as opressões que atingem as mulheres de forma efetiva, sem negociações que fragilizem ou mantenham outras mulheres em situações de violência e exclusão.

A interseccionalidade deve ser uma prática contínua e assertiva em nossa atuação compartilhada, com alteridade e empatia.

E neste contexto, é dentro da luta feminista que se constitui o transfeminismo. Cabe aqui afirmar que não se trata de um campo prático-discursivo-político separado ou destacado das lutas feministas, mas, sim, uma parte importante dela. Assim como o feminismo negro deu um passo adiante e fez os feminismos tradicionais repensarem suas estratégias e posições racistas, os transfeministas têm dado contribuições altamente potentes para ampliar o olhar sobre a busca pela emancipação e liberdade, assim como pelo reconhecimento da diversidade de gênero, sexual e corporal, considerando ainda o rompimento com a cis-binariedade e as normas rígidas de gênero que aprisionam mulheres e crianças, cis e trans.

O transfeminismo, portanto, é a ideia radical de que mulheres trans são mulheres. E é a partir desse entendimento que podemos pensar em formas de garantir que travestis e mulheres trans sejam consideradas como parte determinante da radicalidade da luta feminista e, por consequência, das mulheres. Avançar nos direitos trans amplia o acesso à cidadania para diversas pessoas e de forma alguma visa retroceder ou enfraquecer os direitos de meninas e mulheres cis.

O chamado dos transfeminismos é para que possamos realizar uma autocrítica que não deixará de fora, como sujeitas do feminismo, aquelas que estão fora do círculo da definição social da mulher aceitável e dócil, que são pobres, lésbicas, negras, mais velhas, profissionais do sexo, de comunidades originárias, travestis e aquelas que não participam do cânone estético e midiático trazido pela crescente globalização da violência explícita, sangrenta, mórbida; em outras palavras, a violência gore (se refere a conteúdo perturbador de violência extrema) que tem efeitos reais sobre os corpos de mulheres.

No contexto do Brasil, o país que mais assassina pessoas trans e que mais consome pornografia sobre nós, os movimentos transfeministas têm a responsabilidade política de desnecropolitizar nosso contexto cotidiano. Para isso, é necessária uma crítica radical às estruturas da violência que dividem e organizam a sociedade em corpos matáveis e sem direito a comoção ou luto.

Para desnecropolitizar-nos, é necessário fazer um trabalho coletivo de despatriarcalização e descolonização, e também antipunitivista, promovendo a descristianização e desneoliberalização que já se realizam em diferentes cantos do planeta por pessoas e grupos comprometidos com a sustentabilidade da vida, sem a naturalização de discursos violentos, regressivos e sectários. Discursos esses que baseiam suas lutas em identidades segmentadas ou na essencialização biológica ou geopolítica de determinados sujeitos como superiores a outros.

Para avançarmos, é fundamental compreendermos as narrativas e estratégias do movimento essencialista e antigênero. Devemos estar cientes dos impactos desse movimento, pois ele contribui para um  cenário contra os direitos das mulheres. 

Devemos fortalecer a solidariedade entre os movimentos feministas e trans, com foco na consolidação de redes e alianças e no entendimento dos valores transfeministas inegociáveis. E ainda que a mudança narrativa necessária seja um desafio, é importante focarmos em enquadramentos positivos, que reforcem a agenda comum e confrontem as concepções equivocadas sobre a vivência e as experiências materiais de pessoas trans e travestis.

Nosso trabalho seguirá nas intersecções, buscando radicalizar a democracia através da atuação feminista ampliada e conjunta com nossas parlamentares, ativistas, militantes, demais agentes do espaço público e instituições, governamentais ou não. Nosso compromisso, portanto, é encarar, com coragem e profundidade, os abismos que as desigualdades sistematizadas em uma estrutura machista e patriarcal organizaram entre nosso povo e entre as mulheres. Urge romper com práticas e ideologias conservadoras ou que estão sendo tecidas pela direita e pelo fundamentalismo religioso. Elaborar nossas contradições, abraçando aquilo que nos une, é um compromisso ético que se espera de qualquer mulher, sobretudo feminista.

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  • Bruna G. Benevides

    Militar antifascista, sargenta da Marinha brasileira, Travesti, feminista afrodescendente. Secretária de articulação pol...

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