O primeiro artigo que escrevi para o Catarinas falava sobre um caso de omissão do judiciário, denunciado a partir de um vídeo, em que pudemos ver a vítima em um processo criminal de estupro sendo violentamente atacada e humilhada em audiência pelo advogado de defesa, sem que houvesse qualquer intervenção. A denúncia gerou mobilização nacional e resultou na promulgação da lei 14.245/21, que tem como objetivo principal coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas no curso do processo, a Lei Mariana Ferrer.

Desde então, manifestei opinião sobre diversos outros casos de violência de gênero no judiciário que, mesmo após a lei, não pararam de acontecer. Dentre eles, o da menina de 11 anos que teve seu direito ao aborto legal negado, foi institucionalizada e pressionada por operadoras da Justiça de Santa Catarina para que mantivesse a gravidez indesejada.

A cobertura empática e combativa do Catarinas e do Intercept Brasil sobre essa triste história teve repercussão nacional e internacional, rendendo a merecida indicação ao Prêmio Gabo 2023. Mas também evidenciou o risco de tratar desses temas, colocando as profissionais na mira de práticas de intimidação e perseguição de todo o tipo. Além da pressão social e institucional sobre as jornalistas, as advogadas que atuaram no caso foram indiciadas no inquérito policial que apurou suposta violação de sigilo (e foi arquivado) e uma delas está respondendo a um processo disciplinar na OAB. Em contrapartida, não há notícia de responsabilização da promotora e da juíza que violaram gravemente seu dever funcional.

Tais práticas desnudam o manto de imparcialidade que boa parte da sociedade ainda enxerga no nosso sistema de justiça.

A discrepância de tratamento é exposta até mesmo nas possibilidades de sanção: se condenadas, as advogadas estariam sujeitas à pena de detenção de 1 a 4 anos e multa; para a juíza, que fez tudo o que (não) podia para impedir que uma criança grávida acessasse seu direito ao aborto legal, o reconhecimento de suas práticas desumanas no máximo poderá resultar na “pena” de aposentadoria compulsória com vencimentos.

Situações assim precisam ser trazidas à tona para que compreendamos que o judiciário é um sistema composto por pessoas, que são influenciadas pelas ideologias dominantes e inevitavelmente as levarão para o exercício profissional. Não é possível fazer uma “ruptura” e deixar todos os preconceitos na porta do Fórum.

Quem está lá dentro também está aqui fora, recebendo notícias falsas no WhatsApp, ouvindo piadas machistas e sendo diariamente convencida de que certas categorias de seres humanos são inferiores e por isso devem ser tratadas com mais severidade, enquanto outras permanecem em posições intocáveis de privilégios, ferozmente protegidas por seus pares.

O uso do sistema judiciário como forma de intimidação e desincentivo a denúncias é sintoma de um problema mais profundo, de estrutura, que reflete nas ações que ocorrem na superfície.

Além do caso citado, há atualmente uma decisão judicial que retirou do ar a série do Intercept que denuncia o uso por agentes públicos da Lei de Alienação Parental para favorecer homens acusados de violência doméstica e sexual e penalizar as mulheres que reportaram, muitas vezes com a perda da guarda dos filhos. Essas decisões têm em comum o argumento de que a quebra do sigilo processual é gravíssima e não deve acontecer em hipótese alguma. Um fundamento que superficialmente soa bastante razoável, visto que o sigilo é um instrumento de proteção. O que essas decisões “esquecem” de considerar é que a proteção deve servir a partes em vulnerabilidade, jamais a agentes públicos que violam seu dever funcional. O sigilo não pode existir para encobrir práticas de violência institucional, revitimização e abuso de autoridade. 

A cobertura da imprensa e a divulgação de informações dos processos citados são serviços de utilidade pública e não deveriam ser coibidos ou penalizados, pois neste contexto o sigilo foi levantado na tentativa de impedir a violação de direitos. Se permitirmos que a liberdade de imprensa e advocacia sejam cerceadas dessa maneira, como poderemos fiscalizar a atuação dos operadores de justiça? 

São inúmeras as hipóteses de atos de misoginia no judiciário, podendo envolver censura da publicização de violações de direitos, ameaças de investigações policiais, descredibilização de depoimentos, morosidade na movimentação, permissividade com condutas agressivas, dentre outras tantas.

E a única forma de combater essas práticas é tomarmos ciência de que elas acontecem, a fim de entendermos que nosso sistema de justiça não está acima do bem e do mal e sim acima de uma estrutura forjada por séculos de valores sexistas, classistas e racistas, que moldam a forma de pensar e de atuar das pessoas que integram o sistema.

Por isso, é muito importante que sejamos gratas aos movimentos sociais e àquelas pessoas que dedicam a profissão e a vida para garantir que vivamos em uma sociedade mais livre, justa e igualitária, como as jornalistas, advogadas, psicólogas e assistentes sociais feministas, que têm o exercício do seu ofício constantemente prejudicado pela misoginia que contamina todo o tecido social e, consequentemente, nosso sistema de justiça. 

É preciso que ofereçamos nosso apoio e atuemos na defesa dessas profissionais que trabalham arduamente para denunciar a prática de ações que enquadram mulheres em uma categoria inferiorizada da sociedade e, assim, movimentam estruturas na luta pela conquista de direitos. 

Deixo aqui meu agradecimento e meus parabéns pela coragem e pelo importantíssimo serviço prestado à comunidade.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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