Na última semana, as redes foram tomadas por postagens, majoritariamente femininas, manifestando indignação em relação à sentença proferida no caso de estupro denunciado por Mariana Ferrer, que absolvia o acusado por “falta de provas”. Causou espanto nas pessoas que o relato da vítima, provas testemunhais, laudos periciais, imagens de câmeras de segurança e até mesmo exame de DNA não fossem considerados suficientes para fundamentar uma acusação. Muitas não conseguiam entender como coisas assim podem acontecer.

Existe uma explicação: o judiciário, apesar de visto como um poder “acima do bem e do mal”, também sofre influência das ideologias dominantes, pois é formado por pessoas. Pessoas cujos valores e preconceitos orientarão (propositalmente ou não) suas decisões. Viver em um sistema capitalista, misógino e tomado pela cultura do estupro, que consiste na criação e propagação de factoides para justificar a prática de violência sexual contra determinadas mulheres, influencia em todos os aspectos da vida de todas e todos, não haveria de ser diferente no sistema de justiça criminal.

O sistema penal é machista por excelência. É masculino. É branco. É de classes privilegiadas. E como instrumento de manutenção das desigualdades que é, refletirá as opressões produzidas e reproduzidas no corpo social. Por isso, um caso com vasto conteúdo probatório pode resultar em absolvição, enquanto casos unicamente baseados no depoimento policial podem resultar em condenação.

A cultura do estupro faz com que histórias como a de Mari sejam a regra, não a exceção. Existe um motivo evidente para que a estimativa de crimes sexuais não reportados seja de 90%. A mulher que denuncia essas violências precisará estar preparada para ser revitimizada, sofrer todo tipo de julgamento e passar por um severo escrutínio moral de sua personalidade e comportamento, para, ao final, correr o risco de ter sua busca por reparação frustrada.

Um laudo médico, baseado em fotos do Instagram, que atestava a “personalidade narcisista e exibicionista” de Mariana, foi apresentado pela defesa e toda a argumentação foi construída em torno de alegados traços de comportamento da vítima que, em tese, justificariam o fato ocorrido.

Na audiência de instrução e julgamento, Mari proferiu uma fala marcante, que expressava a sua exaustão por figurar no papel de vítima de violência sexual em um processo criminal: “Eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados assim, pelo amor de Deus, gente! Nem os acusados de assassinato são tratados como estou sendo tratada, nunca cometi crime contra ninguém”. Mari se sentiu humilhada, constrangida, criminalizada. E, mesmo depois de enfrentar tudo isso, teve sua palavra desconsiderada, não foi ouvida.

O julgamento de um crime sexual dificilmente se aterá à gravidade dos fatos ocorridos e, na grande maioria dos casos, será transformado em avaliação de caráter da vítima e do acusado, baseada em estereótipos moldados pelo patriarcado. No “imaginário popular” estupros são crimes que ocorrem na calada da noite, em becos escuros, praticado por homens “tarados”, que não conseguem controlar seu impulso sexual, contra vítimas pudicas, de boa reputação e que não deixam dúvidas ao negar o ato.

A seletividade do sistema penal é construída através de critérios de raça, classe e gênero, determinando perfis específicos a serem reconhecidos como vítima e autor de crime. Um homem branco, rico e “de boa família” dificilmente será enquadrado no estereótipo de estuprador, enquanto uma mulher que sai à noite, consome bebidas alcóolicas ou manifesta qualquer tipo de autonomia, terá dificuldades em ser “aceita” como vítima de violência sexual.

Esse é o efeito da cultura do estupro: apesar da maioria das pessoas condenar veementemente a prática de crimes sexuais, há relutância em responsabilizar o agressor, pois o patriarcado ensina que, para não sofrer violência sexual, a mulher deve “se preservar” e adequar-se a padrões e limites, que garantem a sua manutenção na posição social designada, de filha/esposa/mãe, recolhida na vida privada e nas obrigações da família.

A violência sexual, assim como a física, apesar de teoricamente reprovada por todos, é validada quando cumpre a função de “corrigir” o comportamento da mulher que não se submete aos papeis predeterminados de gênero.

A cultura do estupro funciona como um mecanismo de controle informal, que mantém as mulheres reféns do medo da violência sexual, ao responsabilizar a vítima e propagar a ideia de que a forma mais eficaz de proteção seria não desviar das regras de comportamento impostas. Comportamento este que deve priorizar o recato, a negação da própria sexualidade, a passividade e a reclusão. Lembrando que 1/3 dos brasileiros acredita que “mulheres que não se dão ao respeito merecem ser estupradas”. Dessa forma, julgamentos são proferidos muito antes da questão chegar às instituições, e o judiciário, complementarmente, se encarrega de realizar o controle formal, reproduzindo os mesmos estigmas e os consolidando através de atos processuais.

A criminalização do estupro não foi inserida na legislação penal com a intenção de proteger as mulheres e a sua dignidade, mas para salvaguardar a moral sexual dominante, a unidade familiar e a linhagem dos filhos, de modo a garantir que todas sejam mantidas na função de reprodutoras dentro do sistema capitalista. Por isso, o direito penal se mostra disposto a socorrer somente aquelas vítimas que se encaixam no perfil de “vítima perfeita”, com critérios impossíveis de alcançar para a maioria das mulheres.

Apesar de entendimento jurisprudencial extenso no sentido de que a palavra da vítima tem maior relevância nos crimes sexuais, isso não impede que ela seja descartada a partir de julgamentos morais. Não à toa, informações sobre a “vida pregressa” da mulher são religiosamente apresentadas nesses processos como elemento probatório da defesa e muito dificilmente serão ignoradas pelo julgador, ainda que não devessem ter relevância.

A lógica processual é de inversão total do ônus da prova, colocando sobre as costas da vítima a responsabilidade de denunciar, reunir elementos que demonstrem o alegado e, o mais penoso, comprovar que seu comportamento, antes, durante ou depois do ato, não representava consentimento, nem explícito nem implícito. Porém, na maioria das vezes, as decisões que arquivam o processo ou absolvem o agressor não serão fundamentadas nesse sentido, podendo ser baseadas simplesmente na impossibilidade técnica de condenação, por “falta de provas”.

Para compreender as causas e as consequências da violência sexual contra a mulher no Brasil e no mundo, é indispensável entender que crimes sexuais não são fruto de desejo incontrolável. Não se trata de uma violência corporal apenas, mas de violência que dói na alma e tem a intenção de assim o ser. Crimes sexuais são instrumentos de dominação. São formas de humilhar, subjugar e controlar a vítima, retirando qualquer autonomia que ela possa ter sobre seu corpo, sua intimidade e suas vontades.

Estupro é um crime de ódio. É uma arma utilizada para manter a divisão sexual estabelecida pelo patriarcado através da dominação do corpo, reforçando a ideia de que a liberdade plena só é direito de quem está em posição de poder e esse não é o lugar das mulheres.

A violência simbólica difundida pela cultura do estupro somente será superada a partir da desconstrução dos paradigmas misóginos que definem o entendimento popular sobre em que consiste a violência sexual. É preciso destruir as estruturas (racistas, machistas e classistas) que sustentam o sistema social em que vivemos e que determinam que certas pessoas sejam vistas como inferiores e não possam contar com o amparo do Estado, enquanto outras são colocadas em posições de privilégio, a ponto de se tornarem imunes a qualquer mecanismo de controle, formal ou informal.

O caso de Mari Ferrer não é uma questão individual, mas sintoma que denuncia um problema estrutural. Problema esse que impede as mulheres de avançarem e alcançarem outros lugares na sociedade, que não aqueles definidos pelo capitalismo e pelo patriarcado, que reservam a elas os limites do espaço privado e, aos homens, o domínio de todos os espaços. Enquanto não houver entendimento de que todo corpo deve ser respeitado, em qualquer circunstância, e “justificativas” para a violência sexual seguirem sendo criadas e reafirmadas, não sairemos da posição de subalternidade. Essa luta não é só de Mari, é de todas nós. E é uma luta mais que urgente, pois a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil e a cultura do estupro é o alicerce que sustenta o caráter epidêmico dessas violências.

*Lívia Reis é bacharela em Direito, pós-graduada em Ciências Criminais, coordenadora do coletivo de apoio jurídico Nós Seguras e criadora do perfil @criminologiafeminista.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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